sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Pensamento do Dia

 


Não matarás

Os culpados pela opressão dos povos e pelas matanças das guerras não são os Alexandres, Humbertos, Guilhermes, Nicolaus e Chamberlains, que dirigem essas opressões e essas guerras, mas aqueles que os colocaram e os apoiam nessas posições de senhores da vida das pessoas. Por isso, o que se deve fazer não é matar os Alexandres, Nicolaus , Guilhermes, Humbertos, mas deixar de apoiar o regime social que os produz. E aquilo que apoia o actual regime das sociedades é o egoísmo das pessoas, que vendem a sua liberdade e a sua honra pelas suas pequenas vantagens materiais.

As pessoas que estão no último degrau da escala social, em parte devido à estupidificação, em parte devido às vantagens ela educação patriótica e falsamente religiosa, em parte devido às vantagens sociais, renunciam à sua liberdade e ao sentido da dignidade humana em benefício daqueles que estão acima delas e lhes propõem vantagens materiais. Em igual situação se encontram aquelas pessoas que num degrau da escada um pouco mais acima e que também , devido à estupidificação e principalmente às vantagens , renunciam à sua liberdade e á dignidade humana ; e também os que estão ainda um pouco mais acima, e assim continua até aos degraus mais altos, até às pessoas ou à pessoa que está no topo do cone e que já não tem mais nada a obter, para quem o único motivo de actividade é a sede de poder e a vanglória e que habitualmente está tão pervertida e estupidificada pelo poder sobre a vida e a morte das pessoas e pela adulação e o servilismo daqueles que o rodeiam que , sem parar de praticar o mal, está plenamente convencido de que é um benfeitor da humanidade.


São os próprios povos, ao sacrificarem a sua dignidade humana em troca das suas vantagens , que produzem esses homens , os quais não podem fazer outra coisa a não ser aquilo que fazem; e depois zangam-se com eles pelos seus actos estúpidos e maus. Matar esses homens é como mimar as crianças e depois açoitá-las.

Para que não houvesse opressão dos povos e não fossem necessárias as guerras e ninguém se insurgisse com aqueles que parecem causar esses males, e pudessem não os querer matar, seria necessário, ao que parece , muito pouca coisa: concretamente, apenas que as pessoas compreendessem as coisas como elas são e as chamassem pelos seus verdadeiros nomes ; soubessem que o exército é um instrumento de morte, e que a formação e direcção de um exército - precisamente aquilo de que se ocupam com tanta convicção os reis, imperadores e presidents - é a preparação do assassínio.

Bastava que cada rei, imperador ou presidente compreendesse que a sua função de dirigir exércitos não é uma ocupação honrosa e importante, como lhes incutem os seus aduladores, mas uma ocupação nojenta e vergonhosa de preparação de assassínios; e que cada pessoa individualmente compreendesse que o pagamento de impostos com os quais se pagam e se armam os soldados, e mais ainda a prestação de serviço militar, não são procedimentos indiferentes, mas procedimentos maus e vergonhosos não apenas de conivência mas de preparação no assassínio - e desapareceria por si mesmo esse poder dos imperadores, presidentes e reis que tanto nos indigna.

Não é portanto necessário matar Alexandre, Carnot, Humberto e outros, o que é preciso é explicar-lhes que eles próprios são assassinos, e principalmente não lhes permitir que matem pessoas que se recusam a matar por ordem deles.

Se as pessoas ainda não procedem assim , isso deve-se apenas àquela hipnose em que os governos diligentemente as mantêm , por instinto de autoconservação. E por conseguinte, não é através dos assassínios que se pode contribuir para que os homens deixem de matar os reis e de se matarem uns aos outros - os assassínios, pelo contrário, reforçam a hipnose- , mas fazendo-os despertar da hipnose.
Lev Tolstoi , "Os últimos Escritos"

O Jair que há em nós

O Brasil levará décadas para compreender o que aconteceu naquele nebuloso ano de 2018, quando seus eleitores escolheram, para presidir o país, Jair Bolsonaro. Ex-integrante do Exército onde respondeu processo administrativo sob acusação de organização de ato terrorista; deputado de sete mandatos conhecido não pelos dois projetos de lei que conseguiu aprovar em 28 anos, mas pelas maquinações do submundo que incluem denúncias de “rachadinha”, contratação de parentes e envolvimento com milícias; ganhador do troféu de campeão nacional da escatologia, da falta de educação e das ofensas de todos os matizes de preconceito que se pode listar.

Embora seu discurso seja de negação da “velha política”, Bolsonaro, na verdade, representa não sua negação, mas o que há de pior nela. Ele é a materialização do lado mais nefasto, mais autoritário e mais inescrupuloso do sistema político brasileiro. Mas – e esse é o ponto que quero discutir hoje – ele está longe de ser algo surgido do nada ou brotado do chão pisoteado pela negação da política, alimentada nos anos que antecederam as eleições.

Pelo contrário, como pesquisador das relações entre cultura e comportamento político, estou cada vez mais convencido de que Bolsonaro é uma expressão bastante fiel do brasileiro médio, um retrato do modo de pensar o mundo, a sociedade e a política que caracteriza o típico cidadão do nosso país.

Quando me refiro ao “brasileiro médio”, obviamente não estou tratando da imagem romantizada pela mídia e pelo imaginário popular, do brasileiro receptivo, criativo, solidário, divertido e “malandro”. Refiro-me à sua versão mais obscura e, infelizmente, mais realista segundo o que minhas pesquisas e minha experiência têm demonstrado.

No “mundo real” o brasileiro é preconceituoso, violento, analfabeto (nas letras, na política, na ciência… em quase tudo). É racista, machista, autoritário, interesseiro, moralista, cínico, fofoqueiro, desonesto.


Os avanços civilizatórios que o mundo viveu, especialmente a partir da segunda metade do século XX, inevitavelmente chegaram ao país. Se materializaram em legislações, em políticas públicas (de inclusão, de combate ao racismo e ao machismo, de criminalização do preconceito), em diretrizes educacionais para escolas e universidades. Mas, quando se trata de valores arraigados, é preciso muito mais para mudar padrões culturais de comportamento.

O machismo foi tornado crime, o que lhe reduz as manifestações públicas e abertas. Mas ele sobrevive no imaginário da população, no cotidiano da vida privada, nas relações afetivas e nos ambientes de trabalho, nas redes sociais, nos grupos de whatsapp, nas piadas diárias, nos comentários entre os amigos “de confiança”, nos pequenos grupos onde há certa garantia de que ninguém irá denunciá-lo.

O mesmo ocorre com o racismo, com o preconceito em relação aos pobres, aos nordestinos, aos homossexuais. Proibido de se manifestar, ele sobrevive internalizado, reprimido não por convicção decorrente de mudança cultural, mas por medo do flagrante que pode levar a punição. É por isso que o politicamente correto, por aqui, nunca foi expressão de conscientização, mas algo mal visto por “tolher a naturalidade do cotidiano”.

Se houve avanços – e eles são, sim, reais – nas relações de gênero, na inclusão de negros e homossexuais, foi menos por superação cultural do preconceito do que pela pressão exercida pelos instrumentos jurídicos e policiais.

Mas, como sempre ocorre quando um sentimento humano é reprimido, ele é armazenado de algum modo. Ele se acumula, infla e, um dia, encontrará um modo de extravasar. Como aquele desejo do menino piromaníaco que era obcecado pelo fogo e pela ideia de queimar tudo a sua volta, reprimido pelo controle dos pais e da sociedade. Reprimido por anos, um dia ele se manifesta num projeto profissional que faz do homem adulto um bombeiro, permitindo-lhe estar perto do fogo de uma forma socialmente aceitável.

Foi algo parecido que aconteceu com o “brasileiro médio”, com todos os seus preconceitos reprimidos e, a duras penas, escondidos, que viu em um candidato a Presidência da República essa possibilidade de extravasamento. Eis que ele tinha a possibilidade de escolher, como seu representante e líder máximo do país, alguém que podia ser e dizer tudo o que ele também pensa, mas que não pode expressar por ser um “cidadão comum”.

Agora esse “cidadão comum” tem voz. Ele de fato se sente representado pelo Presidente que ofende as mulheres, os homossexuais, os índios, os nordestinos. Ele tem a sensação de estar pessoalmente no poder quando vê o líder máximo da nação usar palavreado vulgar, frases mal formuladas, palavrões e ofensas para atacar quem pensa diferente. Ele se sente importante quando seu “mito” enaltece a ignorância, a falta de conhecimento, o senso comum e a violência verbal para difamar os cientistas, os professores, os artistas, os intelectuais, pois eles representam uma forma de ver o mundo que sua própria ignorância não permite compreender.

Esse cidadão se vê empoderado quando as lideranças políticas que ele elegeu negam os problemas ambientais, pois eles são anunciados por cientistas que ele próprio vê como inúteis e contrários às suas crenças religiosas. Sente um prazer profundo quando seu governante maior faz acusações moralistas contra desafetos, e quando prega a morte de “bandidos” e a destruição de todos os opositores.

Ao assistir o show de horrores diário produzido pelo “mito”, esse cidadão não é tocado pela aversão, pela vergonha alheia ou pela rejeição do que vê. Ao contrário, ele sente aflorar em si mesmo o Jair que vive dentro de cada um, que fala exatamente aquilo que ele próprio gostaria de dizer, que extravasa sua versão reprimida e escondida no submundo do seu eu mais profundo e mais verdadeiro.

O “brasileiro médio” não entende patavinas do sistema democrático e de como ele funciona, da independência e autonomia entre os poderes, da necessidade de isonomia do judiciário, da importância dos partidos políticos e do debate de ideias e projetos que é responsabilidade do Congresso Nacional. É essa ignorância política que lhe faz ter orgasmos quando o Presidente incentiva ataques ao Parlamento e ao STF, instâncias vistas pelo “cidadão comum” como lentas, burocráticas, corrompidas e desnecessárias. Destruí-las, portanto, em sua visão, não é ameaçar todo o sistema democrático, mas condição necessária para fazê-lo funcionar.

Esse brasileiro não vai pra rua para defender um governante lunático e medíocre; ele vai gritar para que sua própria mediocridade seja reconhecida e valorizada, e para sentir-se acolhido por outros lunáticos e medíocres que formam um exército de fantoches cuja força dá sustentação ao governo que o representa.

O “brasileiro médio” gosta de hierarquia, ama a autoridade e a família patriarcal, condena a homossexualidade, vê mulheres, negros e índios como inferiores e menos capazes, tem nojo de pobre, embora seja incapaz de perceber que é tão pobre quanto os que condena. Vê a pobreza e o desemprego dos outros como falta de fibra moral, mas percebe a própria miséria e falta de dinheiro como culpa dos outros e falta de oportunidade. Exige do governo benefícios de toda ordem que a lei lhe assegura, mas acha absurdo quando outros, principalmente mais pobres, têm o mesmo benefício.

Poucas vezes na nossa história o povo brasileiro esteve tão bem representado por seus governantes. Por isso não basta perguntar como é possível que um Presidente da República consiga ser tão indigno do cargo e ainda assim manter o apoio incondicional de um terço da população. A questão a ser respondida é como milhões de brasileiros mantêm vivos padrões tão altos de mediocridade, intolerância, preconceito e falta de senso crítico ao ponto de sentirem-se representados por tal governo.

País de caricatura

O país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco. A sátira de Swift nas suas engenhosas viagens cabe-nos perfeitamente. No que respeita à política nada temos a invejar ao reino de Lilipute
Machado de Assis, Diário do Rio de Janeiro, de 29/12/1861

A herança bolsonarista é profunda

Assumir a cadeira presidencial em 2023 será bem mais difícil do que em qualquer outro período da história recente. Claro que sempre é complicado governar o Brasil, um país complexo, desigual, com um sistema político que exige muitas negociações e com parte dos parlamentares interessados mais em negociatas do que no interesse público. Isso faz parte do jogo. Mas o bolsonarismo deixou uma herança que amplia os obstáculos à governabilidade em dois sentidos: ele não resolveu ou aprofundou os problemas do país e, pior, criou travas para a resolução das grandes questões nacionais.

O primeiro sentido da herança negativa do bolsonarismo está expresso no conjunto de problemas que ele deixou ou agravou em quatro grandes áreas de políticas públicas. A primeira refere-se às políticas sociais, cujas estruturas construídas em décadas foram desmontadas. Pegue-se o exemplo da saúde e da educação e se constata que o desastre foi enorme, com consequências de curto e longo prazo.

O fracasso na saúde ficou bem claro com a má condução da política nacional contra a pandemia de covid-19. Se não fosse o SUS, com seus profissionais qualificados e sua estrutura que ajudou a construir os serviços nos estados e municípios, talvez tivéssemos um número mais próximo de 1 milhão de mortes. Mas se não tivesse havido o negacionismo e a descoordenação federativa produzida por quem deveria zelar para cooperação entre os níveis de governo, a quantidade de óbitos teria sido bem menor. Especialistas calculam que em torno de 400 mil mortes poderiam ter sido evitadas, para não falar daqueles que estão até hoje sofrendo sequelas terríveis da doença.

Os problemas da política sanitária bolsonarista não estão apenas no combate à covid-19. A cobertura vacinal do país está caindo vertiginosamente e a dengue explodiu neste ano, o que revela que o país não tem estratégias para combater doenças que atingem muita gente. Igualmente desastrosa é a gestão dos insumos de saúde, com a falta de vários medicamentos básicos no SUS, como não acontecia desde o início da década de 1990. E os programas para grupos mais vulneráveis, como a população indígena, tiveram um retrocesso gigantesco.

O fato é que o país está menos preparado agora para epidemias ou pandemias que podem nos assolar nos próximos anos, algo que, infelizmente, tem condições críveis de ocorrer. O esgarçamento do SUS vai aumentar a mortalidade e piorar a saúde dos mais pobres, com fortes efeitos sociais, além de afetar o capital humano disponível, com consequências ruins para a produtividade da economia.


Na educação, a situação é ainda pior. O bolsonarismo lavou as mãos para a crise educacional gerada por quase dois anos de escolas fechadas, com cerca de 5 milhões de alunos não tendo acesso ao ensino remoto. O governo federal teria de ter ajudado governos estaduais e municipais num país com grande desigualdade territorial, do mesmo modo que desde o governo FHC a União tem atuado para reduzir tais disparidades. As grandes questões educacionais foram deixadas de lado para que discussões sem nenhum impacto no aprendizado dos estudantes ganhassem centralidade. Junto com o abandono da educação básica houve a redução drástica do apoio à ciência e à tecnologia, o que nos condena ao subdesenvolvimento.

Para fechar esse ciclo de maldades, o MEC se tornou um antro de corrupção por meio do uso de emendas do Orçamento Secreto. Cabe frisar que o desastre bolsonarista na educação tem mais efeitos de longo prazo do que qualquer erro de política econômica. Perder quatro anos de política educacional significa reduzir a capacidade de desenvolvimento econômico e social do país, com menos oportunidades, ascensão social e produção de capital humano. Imagine oito anos num cenário como esse, qual seria o resultado?

A segunda herança perversa do bolsonarismo reside no fracasso das políticas ambientais. O meio ambiente é um ativo do país para o seu futuro econômico, para sua posição geopolítica e para garantir a diversidade natural que faz parte da civilização brasileira. O que temos tido nos últimos anos é o desmonte dos órgãos ambientais federais, o aumento do desmatamento, o crescimento do garimpo ilegal na Amazônia e a ameaça constante à preservação de todos os ecossistemas. O país estava virando uma referência internacional e já se tornou um mau exemplo.

Toda a população brasileira irá sofrer com isso: os mais pobres e os ruralistas, com a mudança climática que afetará a produção de alimentos; os trabalhadores e os bancos, pois o Brasil está perdendo muitos investimentos e financiamentos por não ter um selo verde no momento; os povos indígenas e os que moram no Sudeste, porque o que se perde de floresta pode significar menos água para os que vivem nos grandes centros.

A política externa é a terceira herança nefasta produzida pelo governo Bolsonaro. Em poucas palavras, o Brasil se isolou completamente dos principais circuitos geopolíticos e é visto como um pária pelos países mais importantes do mundo ou de nossa região. Já não é mais chamado para as reuniões do G7 - para a próxima, o Senegal foi convidado e nós, não.

O isolacionismo tem vários efeitos negativos, como deixar de participar de decisões globais de grande relevância, receber menos investimentos ou mesmo ter a possibilidade de sofrer sanções explícitas ou implícitas dos governos ou de suas sociedades, reduzir os intercâmbios científicos, em suma, ser desimportante e malvisto lá fora cobra um preço interno de menor desenvolvimento no presente e no futuro.

O desenvolvimento econômico e social fecha o ciclo de problemas estruturais que foram ampliados durante o bolsonarismo. No curto prazo, a inflação só aumenta e está fora do controle, e só voltará a níveis razoáveis em 2024 (se tudo der certo). Para reduzir esse problema, os juros foram aumentados, o que vai implicar um custo fiscal alto para o quadriênio que vem, num Orçamento já apertado, que não consegue garantir recursos adequados nem para investimento nem para evitar o sucateamento da máquina pública federal.

Completa esse quadro um alto desemprego, que não cairá para menos de 10% nos próximos dois anos, e uma queda da renda real da população, com maior impacto entre os mais pobres, cada vez mais pauperizados e sem acesso a bens básicos, além de terem perdido a esperança de ascensão iniciada com o Plano Real - na verdade, é pior do que isso: a fome voltou a ser um fenômeno amplo no Brasil.

Essas dificuldades de curto prazo alimentam-se da ausência de um projeto econômico e social de longo prazo. O governo Bolsonaro não tem um plano estratégico para o país, movendo-se mais pelos humores populistas do presidente frente às intempéries políticas. Num dia, propõe-se a privatização da Eletrobras - num modelo que vai aumentar o custo da energia no país -, enquanto noutro se intervém na direção da Petrobras. Numa semana o assunto é a liberdade econômica, na seguinte é a criação de um auxílio aos caminhoneiros - embora o que se mantém mesmo no Brasil são os subsídios às empresas, método já assimilado por Paulo Guedes. E o tema das várias desigualdades brasileiras? Este só aparece como estratégia populista e assistencialista. Com mais quatro anos de bolsonarismo, seremos mais pobres, mais desiguais e menos ricos.

É possível pensar que uma mudança de governo poderia alterar essa situação. Os mais esperançosos poderiam, ademais, acreditar que um segundo governo Bolsonaro seria capaz de evitar parte dos problemas criados por ele mesmo - o tom da campanha vai mostrar que é preciso ser muito Poliana para embarcar nessa tese. De todo modo, qualquer uma dessas hipóteses enfrenta um obstáculo maior. Existe uma segunda herança do bolsonarismo que não advém dos seus erros e fracassos nas políticas públicas. O pior legado bolsonarista é ter criado uma lógica política que dificulta bastante a saída da crise atual.

Paul Pierson, um grande cientista político americano, definiu um conceito que cabe bem a essa segunda herança do bolsonarismo, a mais profunda de todas. Trata-se do termo “path dependence”, cujo significado é que algumas trajetórias ganham uma força institucional e/ou social difícil de ser revertida. Bolsonaro estabeleceu uma lógica política que será um obstáculo à mudança quem quer que seja o novo presidente.

Entre seus elementos estão a (re)politização das Forças Armadas, o fortalecimento de uma oligarquia parlamentar pela constitucionalização do jogo individualista (quando não secreto) das emendas orçamentárias, a produção de uma visão autoritária contra as instituições em pelo menos 20% da população, o fortalecimento de grupos religiosos que atuam contra a secularização do Estado e o incentivo ao armamentismo da sociedade, facilitando inclusive à formação de milícias políticas e de bandidagem.

Esse “path dependence” retrógrado e autoritário criado por Bolsonaro será uma barreira às grandes transformações pelas quais o Brasil precisa passar para dar certo no século XXI. A saída dessa armadilha política será o maior problema do próximo presidente, talvez até para Bolsonaro, porque em algum momento a população cobrará resultados de políticas públicas, e não adiantará mais falar em nome de Deus, da Pátria e da Liberdade ou chamar os adversários de comunistas.

A eleição presidencial deste ano é a mais comprada desde 1994

Bolsonaro, à época aluno na Academia Militar de Agulhas Negras, certo dia tomava banho junto com outros cadetes quando um sabonete caiu no chão. Depois de abaixar-se para apanhá-lo, nunca mais foi o mesmo. Carrega marcas do episódio até hoje.

Quem me disse? Não revelo. Se tenho provas? Não, não tenho. Mas, Damares Alves, ex-ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, tem provas do tráfico internacional de crianças no arquipélago de Marajó para uso sexual? E, no entanto…

No entanto, ainda sem dispor de imunidade para dizer o que lhe venha à cabeça uma vez que se elegeu senadora, está por aí leve e solta para continuar espalhando mentiras e influenciando pessoas a votarem no presidente que a tirou do anonimato.

Adianto desde já que a história do sabonete que traumatizou Bolsonaro é brincadeira. Se me inspirasse no que ele costuma dizer, é “só força de expressão”. Faço jornalismo “dentro das quatro linhas” da verdade, e jamais deixarei de fazê-lo.

Damares, Bolsonaro e muitos dos que os cercam são traficantes assumidos de mentiras e de falsas verdades. E se ainda não foram processados pelo que dizem é porque a justiça entre nós é ceguinha da silva. Ou finge que não vê ou finge que é surda.

Nessa reta final de campanha, com um presidente em desespero por lhe faltarem votos, está sendo exponencial o crescimento de falsas notícias distribuídas pelos mais variados meios. O Tribunal Superior Eleitoral disse que estaria pronto para combatê-las.

Ou não está ou não quer. Parece desejar que o tempo passe rápido e que, com ajuda de Deus, não ocorram coisas piores até 30 de outubro como atos de violência. Proclamados os resultados, empossados os eleitos, o resto pode esperar, e esperar por anos.

Não leva em consideração que o estrago já terá sido feito e que dificilmente será revertido. Estão para nascer juízes com coragem para destituir um presidente que se beneficiou de mentiras. Quantos votos o falso kit-gay não deu a Bolsonaro há quatro anos?

Trump firmou-se como aspirante a candidato reciclando a mentira de que Barack Obama nascera na África. Surfou na mentira de que Hillary Clinton participava de orgias nos fundos de uma pizzaria em Washington. Ao final, se elegeu, mas não só por isso.

A diferença, e não para melhor, é que fake news, agora, se paga com fake news. Quem for mais competente para mentir poderá celebrar. A vantagem está do lado de quem, além do desassombro em mentir, dispõe da máquina pública e não tem escrúpulos.

Nos seus estertores, essa é a campanha presidencial mais suja que o Brasil já viu desde 1994. É também a eleição mais comprada por um governante à vista de todos.