quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Vote em um, leve de quebra o interino

O Haddad vai governar junto com o Lula. Vai montar o ministério junto com o Lula
Lindbergh Farias

O Brasil vai ter que se encarar

Que semana!

O museu…

Bolsonaro…

Da intolerância à selvageria a partir do “nos” contra “eles”, taí a eleição mais crítica da história do Brasil com um pé na cadeia e outro na UTI. Taí o Brasil feito Estado Islâmico passivo, o que destrói patrimônio da humanidade não por ação mas por omissão.

O que assusta no nosso país não é o absurdo em si mesmo, é a dessensibilização para o absurdo a que chegamos.

Ardeu tudo como estava re-prometido e re-alertado que arderia? Ouçamos o diretor temerário do Museu Nacional. O que autorizou e conviveu com todas as gambiarras. O que se fez surdo a todas as súplicas e a todos os alertas. Mas não para cobrá-lo, veja lá! Não sai da televisão o homem que dirigiu o incêndio do nosso passado, mas para ditar-nos regras sobre como preservar o nosso futuro!

Mantenha-se lá atrás, na moita, intacta, a horda que não nos representa mas que se nos quer impor. A horda a quem entregaram a UFRJ como uma sesmaria particular, a ser explorada não só como trampolim para o proselitismo do ódio mas também para ser mamada. Deixem quietos os que comem os R$ 3,1 bi por ano que o favelão nacional a duras penas lhes entrega sem que mal-e-mal sobre 50 contos por mês para zelar pela parte que nos cabe do passado imemorial do Brasil e da humanidade.

Sim, o PSOL vive! Mas porque lhe é dado permanecer na sombra…

E o condenado? Tá ou não tá? Tribunais “superiores”? Tribunais “supremos”? Quanto vale a língua portuguesa no universo das nossas instituições? O Supremo Tribunal Federal não é onde as dúvidas acabam, é onde elas começam.

E então a facada…

Foi mesmo uma facada?

Nada a declarar! Chame-se os marqueteiros. Que coleção de palavras vamos por na boca do candidato tendo em vista os públicos junto aos quais ele não vai bem?

É um “lobo solitário”? Um miserável? Um debiloide? Mas e esses advogados todos desde o primeiro minuto? Foi deus ou foi o diabo?

Não interessa a resposta que possa haver. O que põe a desconfiança no ar é as perguntas não serem feitas.



Ó deus, os perigos são tão grandes e a democracia tão pequena. Jornalismo é importante demais para ficar nas mãos de quem tem medo de enfrentar ordens unidas…

Não, não é só aqui.

A internet deu a conhecer à humanidade o que ela é, e ela está detestando o que vê. O mundo sem edição está de ressaca de si mesmo. É por essa brecha que se esgueiram os 5as colunas. Não se aprendeu ainda a diferença entre o jornalismo, instituição da república se e quando é jogo jogado com regras, e a balburdia da rede, essa reprodução matemática da praça pública que como praça pública tem de ser ouvida. Na praça feita de bits as palavras declararam tecnologicamente a independência do seu contexto. Proporção, volumes, ênfases, tudo é “pós-produzível” como nunca. Todo xingamento-vírgula da linguagem chula de todas as línguas pode ser eternamente revisitado, amplificado, dissecado, monstrificado … e na viva voz do seu próprio autor. O disse-que-disse das marocas vem impresso, vem gravado, vem ao vivo. Até a cizânia hormonalmente dirigida é destilada com alcance global. Qualquer ouvido está ao alcance de qualquer sussurro. Qualquer impropério salva-se para todo o sempre do oblivion. A automatização da repetição customizada para cada ouvido é o triunfo dos goebels de todas as cores. O idiota de Nelson Rodrigues, cuja humildade ancorava-se na solidão da sua incapacidade de compreender, agora dispõe de ferramentas infalíveis de mútua identificação. Descobriu-se maioria, e esmagadora. O “grupo” unido, jamais será vencido!

A vitória parece para sempre liberta do convencimento. Os milênios de circuitos neurais estruturados pela repetição deixam passar como checado e selecionado tudo que aparece em letra impressa ou em imagem gravada mais depressa que os raciocínios que, um por um, têm de abrir as suas próprias picadas. Remar contra a maré passou de “elitismo” a “fascismo”. O máximo que se tolera de quem se depara com o absurdo é uma justaposição “plural”. De cretinices ou não, pouco importa, desde que mediada por uma expressão absolutamente lobotômica. O debate político, ensina-se nas escolas todas, e nas de jornalismo em particular, vem empacotado. Deve evitar qualquer tipo de participação do cérebro. Por isso tem hoje, no Brasil e fora do Brasil, a razoabilidade das discussões de casal.

Mas a realidade está aí fora, rugindo, e não admite meias-solas. Quanto tempo poderá durar esse esconde-esconde? Os humilhados e ofendidos estão sendo traídos na sua hora mais escura, escancaradamente. 16,38%! Não é o esgotamento do estado num país miserável que apavora, é ninguém encarar de frente a causa do esgotamento do estado que põe o mercado em pânico.

E o tiroteio? Como vencer a guerra do Brasil? A desesperança e o medo que se palpa no ar respondem menos à gravidade desse desafio que à recusa em reconhece-lo como o que é.

Mas agora que a “campanha negativa”, de destruição de pessoas, está temporariamente interditada, que tal experimentar o cotejamento de receitas? Bolsonaro, afinal, existe mais porque dá alguma resposta do que pelas respostas que dá; porque reconhece os problemas do tamanho que são mais que pelos remédios que propõe para eles.

A verdade está na cara. Não há funcionário intrinsecamente bom nem funcionário intrinsecamente ruim; há funcionário demissível e funcionário indemissível. Não há quem vote sempre errado nem quem vote sempre certo. Existe democracia, onde o eleitor vota antes, vota durante e vota depois do momento marcado para a eleição, e existe essa fraude que só gera sangue, suor e lágrimas que os usurpadores de mandatos impingem ao Brasil em nome dela.

Este país só vai ter cura se e quando se encarar como o que é. Vai ter de parar, desembarcar acusadores e acusados do “sistema” cujo comando todos disputam e extirpar, de comum acordo, a raiz torta que lhe produz todos os galhos tortos. Só então vai poder embarcar de novo numa navegação que tenha rumo.

Candidato tutelado

Terminou ontem o ato que todos sabiam como iria acabar. O ex-prefeito Fernando Haddad foi anunciado como candidato do PT à Presidência da República para, se vencer, exercer o poder em nome de Lula e com o Lula. O ex-presidente continua sendo a primeira pessoa, agora na chapa encabeçada por Haddad. Na carta, o próprio ex-presidente definiu: “Haddad é meu representante nessa batalha.” Ele fica assim numa situação inusitada, só comparável ao que aconteceu com Héctor Cámpora na Argentina.


Cámpora assumiu em maio de 1973, depois de ter vencido as eleições como representante de Juan Domingo Perón. Ficou dois meses no cargo, permitiu a volta do ex-presidente, renunciou e convocou novas eleições, que elegeram Perón. A diferença entre os dois casos é que Cámpora tentava contornar o veto militar ao ex-presidente. Aqui, o que impede Lula de ser candidato é uma lei que ele mesmo sancionou, e em cuja tramitação o PT teve papel central. A impugnação de Lula é decorrência de uma lei democrática e não uma conspiração das elites, como disse ontem o candidato Fernando Haddad.

Só havia pessoas brancas no campo de visão da imagem transmitida pelo PT, quando Haddad relacionou, entre os vários motivos pelos quais Lula estaria sendo impedido, o de ter permitido a ascensão dos negros. “Será que é porque eles tiveram que se sentar com um negro no avião?” perguntou. Outro motivo teria sido a reação da elite ao fato de o partido ter tirado o Brasil do mapa da fome.

Demagogias assim são comuns em período eleitoral. Normalmente, elas se chocam com os fatos. A Pnad de 2015 mostrou que, no último ano que o PT governou o Brasil, nos 12 meses, a renda dos 10% mais pobres caiu 7,1%. A recessão provocada pelo próprio PT levou à inflexão no movimento virtuoso de redução da pobreza, que havia começado com o Plano Real e se acentuado com os programas sociais da era Lula.

Haddad dirigiu-se a quem “está sentindo a dor de não poder votar em Lula” e ofereceu-se como interposta pessoa. Voltou a repetir o clichê de que “Lula fez o que eles não conseguiram fazer em 500 anos”. Esse “eles” inespecífico faz parte da estratégia política do PT. Assim o eleitor entende como quiser. “Nós temos um líder”, disse Haddad, mais uma vez subserviente. E disse que quer “olhar no olho do povo” para lembrá-lo dos bons tempos do Lula.

Do lado, séria e sem olhar na direção de Haddad, a ex-presidente Dilma foi citada rapidamente. A estratégia do partido é avivar a memória do período de crescimento no governo Lula e apagar a lembrança de que a recessão começou no período Dilma. A narrativa do PT é que ela cometeu erros pontuais, mas foi impedida de governar pelos que perderam a eleição de 2014. A verdade é bem mais complexa. Nos anos de crescimento do governo Lula, a política de ampliar o gasto público foi a semente da crise aprofundada pelos erros da gestão Dilma. Na última eleição, a economia já estava em forte desaceleração, na véspera de cair na recessão no começo de 2015.

A aposta petista é que a memória brasileira é curta e o eleitor, ferido pela recessão e pelo desemprego, verá Haddad como o novo rosto de Lula. O ex-ministro precisou da autorização expressa de Lula para dar cada passo que deu. E será, até o fim, um candidato tutelado a partir de uma cela da Polícia Federal em Curitiba. Até agora, conseguiu um feito importante que foi vencer as muitas correntes internas do PT. Tem apenas 26 dias para convencer o eleitorado a levá-lo ao segundo turno.

As duas principais campanhas continuarão sem seus titulares. O candidato do PSL permanecerá no hospital ou em recuperação. O PT deixou claro ontem, mais uma vez, por atos e palavras, que é Lula quem decide e manda. Nesta estranha campanha, tanto Lula quanto Bolsonaro conseguiram transformar seus dramas em alavancas. O PT apresenta a prisão de Lula como uma punição injusta que ele recebe por ter distribuído bondades ao povo. Bolsonaro, depois de meses de defesa de um projeto belicoso, subiu na esteira de um ataque a faca que sofreu. O Ibope de ontem mostrou que Bolsonaro subiu quatro pontos, desde a última pesquisa, e está com seis pontos a mais na espontânea. Sua rejeição caiu pouco, apenas 3 pontos, e ainda é a mais alta, 41%. Nada está cristalizado, contudo. O voto ainda é volátil e vai se mover em várias direções nos próximos dias.

Brasil de amanhã


Os problemas que se escondem por trás do pleno emprego nos países ricos

“O desemprego é o menor em mais de 48 anos. Grande notícia para os empregados, e EMPREGOS, EMPREGOS, EMPREGOS!”, tuitava Donald Trump, eufórico, em março deste ano.

À primeira vista, o presidente dos EUA tem mesmo motivos para estourar o champanhe. A taxa de desemprego em seu país, inferior a 4%, faz história ao cair pelas tabelas: nos últimos 60 anos só houve um período, no final dos anos sessenta, em que o percentual se manteve tão baixo por um período prolongado. Não é um caso isolado. Theresa May pode se vangloriar de que, apesar das incertezas do Brexit, a desocupação no Reino Unido está agora no menor nível desde 1975. A Alemanha, com a menor taxa desde a reunificação e em dificuldades para encontrar mão de obra qualificada, exibe cifras de sonho. E o Japão, com um percentual de desempregados que em maio caiu a 2,2%, também atinge mínimos inexplorados em mais de um quarto de século.

Seriam esses indicadores excepcionais a prova de que a crise iniciada há uma década passou de vez, ao menos nas grandes economias ocidentais? E, talvez mais importante, podem os trabalhadores comemorar a conquista de um mercado trabalhista próximo ao pleno emprego? Não exatamente.

Porque a exuberância destas cifras – na zona do euro, o desemprego também caiu: é de 8% na média dos 19 países, menor índice desde 2008 – esconde uma realidade com muitos matizes. Os dados sobre remuneração, trabalho temporário, empregados pobres e população sob risco de exclusão não melhoraram no mesmo ritmo. E muitos economistas se perguntam se a taxa de desemprego perdeu força como o principal indicador da saúde do mercado de trabalho.


“Faz tempo que somos muito críticos com a taxa de desemprego, porque não reflete variáveis como os desanimados que pararam de procurar emprego por causa das más condições”, diz Florentino Felgueroso, pesquisador da FEDEA(Fundação de Estudos de Economia Aplicada, com sede em Madri). Na hora de desentranhar as cicatrizes da crise, esse doutor em Economia insiste sobretudo na menor duração dos contratos – de um mês, uma semana ou mesmo de algumas horas – criados durante a recuperação da Grande Recessão, um fator que influi diretamente na redução da renda dos empregados. “A menor duração dos contratos é um fenômeno global que veio para ficar. Tem a ver com as novas tecnologias, que possibilitam a existência desses contratos. E os sistemas produtivos estão se adaptando, com fenômenos como a uberização da economia”, prossegue Felgueroso.

Uma fatia cada vez menor do bolo vai para os empregados, e isso não é de hoje. Segundo o FMI, a participação dos trabalhadores na renda caiu de mais de 50% da renda total, no começo deste século, para menos de 40% em 2015. Essa tendência decrescente começou já em meados da década de 1970.

A frágil ascensão dos salários esteve na semana passada entre os principais temas da reunião que executivos de bancos centrais e demais mandarins das finanças promovem anualmente em Jackson Hole (EUA). Por que nem salários nem preços crescem mais se o desemprego está tão baixo, conforme preveria a teoria econômica tradicional?
Menos poder negociador

Disso falou Alan Krueger, ex-presidente do Conselho de Assessores Econômicos do presidente Obama, segundo quem o atual Governo limita o cada vez menor poder de negociação de trabalhadores e sindicatos, ao mesmo tempo em que aumenta o das grandes corporações. Como exemplo, Krueger disse que um em cada quatro assalariados norte-americanos assinou restrições que o impede de trabalhar para a concorrência, dificultando sua capacidade para procurar salários maiores. E destacou que o salário mínimo nos EUA há 10 anos se mantém invariável em 7,25 dólares por hora (30 reais), e que, descontada a inflação, caiu 20% desde 1979.

O percentual de trabalhadores pobres duplicou na Alemanha desde 2005. Ao falar das feridas de desigualdade deixadas pela crise, Sara de la Rica, catedrática da Universidade do País Basco (Espanha), distingue três tipos de países: Espanha, Alemanha e os anglo-saxões. No primeiro, o golpe foi especialmente duro para quem perdeu seu emprego. “Muitos não puderam encontrar outro, e as condições dos que conseguiram costumam ser muito piores. Aqui, a desigualdade se acentuou entre os que mantêm seu emprego e os que não”, explica.

Na Alemanha, por outro lado, o ajuste se centrou no número de horas trabalhadas: demite-se pouco, mas as empresas que mais sofrem negociam cortes de horas (e salário). “Portanto, também cresceu a desigualdade, mas não o desemprego”, acrescenta De la Rica. Finalmente, nos EUA e Reino Unido, as condições do mercado de trabalho se ajustam muito mais rapidamente, tanto em períodos recessivos como nos de crescimento. “Lá, o desemprego subiu muito, mas se recuperou rapidamente. A desigualdade é gerada sobretudo pelos trabalhadores que não perdem o trem do progresso e da inovação”, conclui.

Trump comemora agora o feito de um desemprego que não para de cair. Mas ele mesmo criticava esse indicador em 2012, quando era apenas um bilionário que apresentava reality shows e fazia críticas furiosas ao presidente Obama. “A taxa de desemprego só cai porque mais gente que está fora do mercado de trabalho parou de procurar emprego. Não é uma recuperação real. Cifras mentirosas”, escrevia no Twitter à época.

Pobre só cresce em número

O próximo presidente assumirá um país com 22,83 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza – contingente 470 mil menor que o registrado no fim do ano passado e equivalente a 10,95% da população do país

A sociedade líquida

A ideia de modernidade ou sociedade “líquida” deve-se, como todos sabem, a Zygmunt Bauman. Para quem quiser entender as várias implicações do conceito, a leitura de Estado de crise (Zahar, 2016), onde Bauman e Carlo Bordoni discutem este e outros problemas, pode ser útil. A sociedade líquida começou a delinear-se com a corrente conhecida como pós-moderno (aliás, um termo “guarda-chuva” sobre o qual se amontoam diversos fenômenos, da arquitetura à filosofia e à literatura, e nem sempre de modo coerente). O pós-modernismo assinalava a crise das “grandes narrativas” que se consideravam capazes de impor ao mundo um modelo de ordem e fazia uma revisitação lúdica e irônica do passado, entrecruzando-se em várias situações com pulsões niilistas. Mas para Bordoni, o pós-modernismo também conheceu uma fase de declínio. Era um movimento de caráter temporário, pelo qual passamos quase sem perceber, e que um dia será estudado, assim como o pré-romantismo. Servia para assinalar um acontecimento em andamento e representou uma espécie de balsa que levava da modernidade a um presente ainda sem nome.

Para Bauman, entre as características deste presente nascente podemos incluir a crise do Estado (que liberdade de decisão ainda têm os Estados nacionais diante dos poderes das entidades supranacionais?). Desaparece assim uma entidade que garantia aos indivíduos a possibilidade de resolver de modo homogêneo os vários problemas do nosso tempo, e com sua crise, despontaram a crise das ideologias, portanto, dos partidos e, em geral, de qualquer apelo a uma comunidade de valores que permita que o indivíduo se sinta parte de algo capaz de interpretar suas necessidades. Com a crise do conceito de comunidade, emerge um individualismo desenfreado, onde ninguém mais é companheiro de viagem de ninguém, e sim seu antagonista, alguém contra quem é melhor se proteger. Este “subjetivismo” solapou as bases da modernidade, que se fragilizaram dando origem a uma situação em que, na falta de qualquer ponto de referência, tudo se dissolve numa espécie de liquidez. Perde-se a certeza do direito (a justiça é percebida como inimiga) e as únicas soluções para o indivíduo sem pontos de referência são o aparecer a qualquer custo, aparecer como valor (fenômenos que abordei com frequência nas Bustinas), e o consumismo. Trata-se, porém, de um consumismo que não visa a posse de objetos de desejo capazes de produzir satisfação, mas que torna estes mesmos objetos imediatamente obsoletos, levando o indivíduo de um consumo a outro numa espécie de bulimia sem escopo (o novo celular nos oferece pouquíssimo a mais em relação ao velho, mas descarta-se o velho apenas para participar desta orgia do desejo). Crise das ideologias e dos partidos: alguém já disse que estes últimos se transformaram em táxis que transportam caciques políticos ou chefes mafiosos que controlam votos, que escolhem em qual embarcarão com desenvoltura, segundo as oportunidades que oferecem — o que até torna compreensíveis e não mais escandalosos os vira-casacas. Não somente os indivíduos, mas a própria sociedade vive em um contínuo processo de precarização.

O que poderá substituir esta liquefação? Ainda não sabemos e este intervalo ainda vai durar muito. Bauman observa que (com o fim da fé numa salvação proveniente do alto, do Estado ou da revolução) os movimentos de indignação são típicos de períodos de intervalo. Estes movimentos sabem o que não querem, mas não o que querem. E recordo aqui que um dos problemas levantados pelos responsáveis pela ordem pública a propósito dos black blocs é a impossibilidade de rotulá-los, como se fazia antes com os anarquistas, os fascistas, as Brigadas Vermelhas. Eles agem, mas ninguém sabe mais quando e em que direção. Nem mesmo eles.

Existe um modo de sobreviver à liquidez? Existe e é justamente perceber que vivemos numa sociedade líquida que, para ser compreendida e talvez superada, exige novos instrumentos. Mas o problema é que a política e grande parte da intelligentsia ainda não entenderam o alcance do fenômeno.

Por ora, Bauman continua a ser uma “vox clamantis in deserto”.
Umberto Eco, "Pape Satan Aleppe - Crônicas de uma sociedade líquida" 

Paisagem brasileira

Estrada, Alfredo Vieira

De pai para filho: por que sobrenome ainda deve contar nestas eleições

Danielle Dytz Cunha, Flávio Bolsonaro, Marcelo Crivella Filho, João Campos, Fernando James Collor... Em comum, eles têm sobrenomes conhecidos no mundo político e a ambição de seguir os passos dos pais. Contam, além disso, com a "sorte" de poder sonhar alto - dão seus primeiros passos nas urnas já tentando vagas na Câmara e no Senado.

Centenas de filhos, maridos, esposas e netos de políticos registraram suas candidaturas na Justiça Eleitoral até o dia 15 de agosto - a data limite.
Só com avanço econômico, social e cultural é que se passa para uma situação de voto esclarecido

São muitos os estreantes. João Campos (PSB), 24 anos, filho do ex-governador de Pernambuco Eduardo Campos, morto em um desastre aéreo quando concorria à Presidência em 2014, vai encarar sua primeira eleição já como candidato a deputado federal.

Danielle Dytz Cunha, filha do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, que está preso, também não pensou "pequeno" e estreia na política disputando vaga na Câmara dos Deputados pelo MDB do Rio de Janeiro.

Já Marcelo Crivella Filho conta com o apoio do pai, que é prefeito do Rio de Janeiro, para alcançar uma vaga de deputado federal. É a primeira eleição dele.

Eduardo Bolsonaro, filho do candidato à Presidência Jair Bolsonaro, tenta se reeleger como deputado federal.

O irmão mais velho dele, Flávio Bolsonaro, está no grupo dos que tentam alçar voos maiores que em 2014: quer saltar direto de deputado estadual no Rio de Janeiro para senador.

Irajá Abreu, filho da senadora Kátia Abreu, que é vice na chapa de Ciro Gomes à Presidência, vive situação parecida e tenta trocar a Câmara dos Deputados pelo Senado.


Enquanto tenta se eleger governador de Alagoas, o senador Fernando Collor quer garantir um sucessor no Congresso, seu filho Fernando James Collor, candidato a deputado federal.

Os dois vão percorrer o Estado nordestino juntos para tentar derrotar outra dupla de pai e filho com tradição na política: Renan Calheiros (MDB), que tenta a reeleição ao Senado, e Renan Filho, que quer se reeleger governador de Alagoas.

No Pará, outro político tradicional do MDB, Jader Barbalho, candidato ao Senado, percorre o Estado em campanha com o filho Helder Barbalho, que tenta se eleger governador. Os dois lideram as intenções de voto.

E, enquanto o ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral segue preso, acusado de comandar um esquema de corrupção, o filho dele, Marco Antônio Cabral, faz campanha para se reeleger deputado federal.

O professor de ciência política Claudio Couto, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), faz um paralelo do fenômeno do "mandato de pai para filho" com famílias que há gerações seguem a mesma profissão.

"A política é uma atividade profissional que precisa ser desempenhada em tempo integral. Assim como em outras profissões em que a gente vê médico filho de médico, advogado filho de advogado, não é diferente na atividade política", diz.

"E, assim como em outras profissões, há uma vantagem em seguir a profissão dos pais: você tem uma rede formada que facilita do ponto de vista de ter aliados, apoiadores, financiadores e um aprendizado que vem desde a infância."

Mas será que, em meio ao clamor por "renovação", o parentesco com políticos tradicionais vai contar a favor nas urnas em outubro?
Sistema político que favorece eleição de parentes

Dados referentes à última eleição indicam que, para a Câmara, o sobrenome contou, e muito, na última disputa. Levantamento feito pelo Transparência Brasil, instituto voltado ao monitoramento de órgãos públicos, revelou que 49% dos deputados eleitos em 2014 eram filhos, netos, esposas ou maridos de políticos com mandato - um aumento de cinco pontos percentuais em relação aos eleitos em 2010.

Entre os deputados federais com até 35 anos, 85% dos eleitos em 2014 são herdeiros de famílias políticas.

Para especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, o sistema político-eleitoral brasileiro continuará a favorecer candidatos que tenham fortes ligações com lideranças partidárias, ainda que haja uma rejeição popular à política e a políticos tradicionais.

Três fatores contam particularmente a favor das candidaturas de parentes de políticos influentes: o fato de o nome ser mais facilmente lembrado pelos eleitores, acesso a financiamento para a campanha e o controle da máquina partidária nos redutos eleitorais, com a mobilização de cabos eleitorais e da militância.

"Da mesma forma que para um parlamentar que já está no poder é mais fácil se reeleger, quem tem um parente na estrutura de poder consegue se eleger mais facilmente", afirmou à BBC News Brasil Juliana Sakai, diretora de operações do Transparência Brasil.

"Além do próprio nome, que torna a pessoa mais conhecida do eleitorado, tem a questão de que o voto é totalmente ligado ao financiamento da campanha."
Um nome para lembrar

Em outubro, a população terá que optar por um candidato a deputado federal, a deputado distrital ou estadual, senador, governador e presidente da República. Só para deputado federal são mais de 8 mil candidatos em todo o Brasil.

Em São Paulo, o eleitor escolherá dentre 1.675 concorrentes. Ou seja, uma das principais tarefas de quem disputa uma eleição é simplesmente conseguir ter o nome lembrado. Os candidatos que têm sobrenomes conhecidos largam com vantagem na corrida eleitoral.

"Para a Câmara, são muitos os candidatos e muitas as vagas para cada Estado para preencher as 513 cadeiras. Portanto, serão mais votados os candidatos mais lembrados. Existe um eleitorado que vai rejeitar políticos com sobrenomes de pessoas investigadas, mas esses políticos acabam, mesmo assim, sendo mais escolhidos que outros mais desconhecidos", avalia Sakai.

"Um dos desafios que os políticos têm é se tornarem conhecidos do eleitorado. Quem já tem o nome conhecido já resolveu esse problema de antemão", reforça Claudio Couto, da FGV.

Supremo dá a Bolsonaro imunidade para ofender

Tomado por suas declarações, Jair Bolsonaro produz preconceito como a bananeira produz bananas. Mas a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal concedeu ao capitão, por 3 votos a 2, imunidade para manter sua produção de ofensas e incitações contra negros, refugiados, gays e mulheres.

A Procuradoria-Geral da República denunciara Bolsonaro por conta de uma palestra no Clube Hebraica do Rio de Janeiro. Coisa de abril de 2017. Durante o envento, o presidenciável contou que visitara um quilombo. “Olha, o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador eles servem mais.”

Lero vai, lero vem, afirmou que, se viesse dois homens se beijando na rua, bateria em ambos. Mais: “Prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí. Para mim, ele vai ter morrido mesmo''. Sobre estrangeiros, disse que o Brasil não pode acolher todo mundo, pois não é “casa da mãe Joana”.

Os ministros Luiz Fux, Marco Aurélio Mello e Alexandre Moraes encaixaram as declarações de Bolsonaro sob o guarda-cheva da liberdade de expressão e da imunidade parlamentar. Vencidos, Luis Roberto Barroso e Rosa Weber votaram a favor da conversão do palestrante em réu.

O indeferimento da denúncia vale por um atestado de idoneidade moral. Doravante, quando alguém tentar grudar em Bolsonaro a pecha de preconceituoso, o capitão invocará em seu benefício a imunidade do Supremo.


Há mais: com base nas mesmas declarações, a Justiça do Rio de Janeiro condenou Bolsonaro a pagar indenização de R$ 50 mil por danos morais coletivos a comunidades quilombolas. A decisão do Supremo servirá de matéria-prima para que Bolsonaro recorra.

Há pior: Bolsonaro já responde a ação penal na Suprema Corte por ter afirmado que não estupraria a deputada Maria do Rosário (PT-RS) porque a colega é “muito feia.” Invocou em sua defesa o escudo da imunidade parlamentar. Já pode requerer ao Supremo que, por coerência, envie a ação para o arquivo. Instituiu-se uma espécie de vale-tudo comportamental.

Os jovens, esses infelizes

Os jovens estão sofrendo. Não confio muito no povo das humanas para pensar nisso: muita ideologia e pouca abertura para pensar a realidade. Trabalho com jovens há 22 anos. Eles estão cada vez mais sofridos: mais inseguros, ansiosos, medicados. Pesquisas de comportamento apontam para o mesmo diagnóstico.

Acho que alguns elementos dificultam a abordagem do tema. Cito um: a eterna indagação metodológica --há de fato uma piora na condição psicológica dos mais jovens (mais depressão, mais ansiedade, mais suicídios) ou o que temos são mais dados e mais acesso a medicamentos?

Mesmo tipo de dúvida: existem mais gays ou os gays se mostram mais? Tem mais mulher apanhando ou mais mulher denunciando que apanha?


O fato é que os jovens —principalmente os de classe social mais alta, mas não somente— têm ao seu dispor uma maior quantidade de ferramentas e profissionais especializados neles. Com isso, um maior "discurso do mestre", como diria Lacan, sobre a "condição jovem".

Mas o fato é que, muitas vezes, parece que esse aumento de discurso especializado apenas piora a questão: uma tagarelice gigantesca enche os nossos ouvidos sobre, por exemplo, se os pais devem ou não dizer X aos filhos. Quais as consequências de mandar o filho calar a boca? Você precisa ser PhD para educar os filhos.

A especialização nos jovens parece ter criado um sintoma novo na humanidade: ser jovem é um sintoma em si. À medida que cresce o mercado de especialistas em jovens, aumenta a geração e a circulação de dinheiro "graças" ao sintoma que ser jovem implica em si mesmo. Com isso, não assumo que haja má-fé nesses profissionais, apenas descrevo um circuito de discurso e dinheiro que se auto-alimenta.

Nelson Rodrigues apontava, nos anos 1960, o surgimento da "razão do jovem" como sendo o fato de que um jovem teria razão sobre qualquer absurdo (tipo, devemos abandonar tudo e ir para a então guerra do Vietnã) apenas porque era jovem. A juventude fazia dele um oráculo a priori.

Essa lembrança nos remete diretamente a algo hoje plenamente instalado em nossa cultura que é a ideia de que jovens de 15 anos têm a capacidade de emitir opiniões críticas sobre temas complexos como amor, justiça, política, família, economia, ética e afins.

Jovens, pela própria condição (com algumas exceções), pouco entendem dessas coisas pelo simples fato de que não tiveram tempo de acumular experiências de vida.

Outra questão é a diminuição do número de filhos, logo, de jovens. Os pais, neuróticos e ansiosos, afogados no que o sociólogo Zygmunt Bauman (1925 - 2017) chamava de "medo líquido", vigiam esses infelizes todo o tempo. Atormentam os coitados, com demandas de "evolução" por parte desses mesmos infelizes. Vigiados o tempo todo, esses infelizes devem dar conta de tudo que a humanidade não deu até hoje: salvar o mundo, ser ético todo o tempo, ter afetos corretos e limpos, profissões sustentáveis ecologicamente, opiniões certas sobre temas incertos.

Tendo um ou dois filhos no máximo, esses pais inseguros e infantis (o amadurecimento é recurso escasso no mundo parque temático em que vivemos) concentram todas as suas taras e projeções narcísicas sobre os ombros desses infelizes.

As escolas em geral, por sua vez, cedem ao marketing escondendo a miséria contemporânea dos jovens.

Prometendo jovens cada vez melhores, fazem uma mistura grotesca de preparação para uma vida futura sem preconceitos, com a inteligência artificial como parceira, ao lado do ato de abraçar árvores como ética espiritual superior.

Arriscaria dizer que as escolas estão hoje entre as instituições mais perdidas na face da Terra. Não avançam um milímetro além da autoajuda e da pedagogia positiva (nome diferente para a miséria motivacional praticada em palestras no mundo corporativo).

O mundo "em rede" só piora a demanda de ser aceito. Se, antes, a ansiedade do reconhecimento e do afeto era uma "obrigação" que os ligava a um máximo de 30 pessoas a sua volta, hoje, com todos os "likes", esses jovens viram um poço de ansiedade por reconhecimento, relevância e afeto. Até a pizza que comem deve ser reconhecida como uma "pizza que vale no Instagram" ("instagramworthy").

Enfim: talvez a primeira coisa a ser feita é reconhecer que nunca existiram tantos jovens infelizes caminhando sobre a Terra. Engraçado: justamente quando o mundo se transformou num parque temático de "inteligência", riqueza, direitos, tolerância e esbanjando gente bacana.

Luiz Felipe Pondé