quarta-feira, 1 de julho de 2020

Pensamento do Dia


Taras

“A economia é uma disciplina afinada com a ideia e a produção de fetiches e taras. Então, por que não dizê-los? Uma tara do momento é aquela pela busca dos “cenários pós-covid”. Fala-se em recuperação em V, em L, em U, em W. Mas o que significa “pós-covid”? Ao mesmo tempo, no Brasil, o fetiche fiscal não se desgarra de muitos economistas. Mas e a dívida? Mas e o déficit? Mas e a dívida e o déficit? Mas e a dívida, e o déficit, e a inflação? A situação atual, que é de transição para algo que não sabemos o que é, não permite enxergar com clareza. É também verdade que, confrontadas com a incerteza, as pessoas muitas vezes se agarram àquilo que conhecem, projetando no futuro o passado. Contudo, é importante algum esforço e desprendimento para julgar o que do nosso passado econômico importa – se é que alguma coisa – para imaginarmos o que vamos enfrentar nos próximos meses e anos.


Antes, contudo, vou repetir algo que já escrevi algumas vezes neste espaço e já disse outras tantas mais no meu canal do YouTube. De nada adianta pensar nas letrinhas da retomada se não há um entendimento subjacente da epidemia e algum acompanhamento dos estudos científicos publicados sobre ela. Muitos economistas preferem pensar que nada precisam entender do assunto para traçar seus diagnósticos e suas previsões. É curiosa essa crença de economistas na autonomia da razão econômica em relação não só às Humanidades, mas a outras ciências. Afinal, na sua formação, a economia como disciplina sofreu a influência de grandes médicos, como John Locke (1632-1704) e François Quesnay (1694-1774), apenas para citar esses dois, cuja obra e pensamento influenciaram Adam Smith (1723-1790). Portanto, a ligação entre a medicina e a economia se estende pela história do pensamento econômico, retornando às suas origens. E, embora pareça divagar aqui, o desvio se justifica porque ignorar as origens da crise econômica para formular políticas públicas e previsões de crescimento é não apenas profundamente equivocado, mas dissonante da própria história da economia como ciência social.

O fetiche fiscalista é outra manifestação do mesmo mal. É claro que temos de nos preocupar com o tamanho do déficit público e com a trajetória da dívida. Mas o que isso significa? Vamos propor o que em termos de medidas econômicas para responder a essas preocupações?

Que o governo retome a defunta agenda de reformas, que nada faria neste momento para sustentar a economia? Que o Estado brasileiro não cumpra o seu papel constitucional de atender aos mais atingidos pela crise, seja por meio de programas de transferência de renda, seja por meio de repasses para a saúde, seja por meio de recursos destinados à educação, sobretudo para permitir que crianças sem acesso às escolas e sem acesso digital possam dispor de algum meio para o aprendizado? Vamos insistir que parte importante de nossos males vêm do sistema Simples, que as empresas sofrem muito com a carga tributária, que é preciso rever todas as políticas públicas para melhorar a eficácia? Nada disso é compatível com a urgência da falta de recursos hospitalares, das filas de quem não consegue receber o auxílio emergencial. É ainda menos compatível com uma ideia que tem de estar clara: a inação do governo é fator determinante da forma de recuperação da economia e do que venha a acontecer com o déficit e com a dívida pública.

Governo que não age à altura da crise atira o país contra a parede. Não à toa, o FMI revisou a projeção para o encolhimento do PIB brasileiro de 5,3% esse ano para 9,1%, chegando bem perto do quadro de depressão econômica sobre o qual venho falando há meses. Quedas do PIB dessa magnitude não precisam de nada mais para fazer um estrago considerável nas contas públicas. A arrecadação salta do precipício, elevando o déficit de forma abrupta. O encolhimento da renda decorrente da redução do PIB diminui o denominador da razão dívida/PIB, elevando-a. Ainda que seja impossível quantificar o estrago da inação, é possível dizer que a falta de medidas adequadas, ou a insuficiência delas, gera precisamente a deterioração tão temida pelos fiscalistas. Por que eles apontam, então, em outras direções, como se essa não fosse determinante de suas ideias fixas?

Por fim, o fetiche do teto. Escrevi sobre ele na semana passada, em modo catabólico – o artigo chamava-se “A Bioquímica do Teto”. Retomo-o agora em modo anabólico: a síntese do teto metaboliza produtos com alto grau de toxicidade para a economia brasileira, impedindo que as ações necessárias de combate à crise aguda e à crise crônica que dela sobrevirá sejam articuladas. Francamente? É duro ter de repetir isso quase toda semana.

Desigualdade geométrica

Uma parte da população sofreu perda de renda ou vive sob ameaça de uma perda iminente de renda, enquanto outra está cheia de dinheiro graças a um aumento grande e involuntário de poupança
Neil Shearing, economista-chefe da Capital Economics

Insinceridade geral

Com toda a ambiguidade que imprime às suas manifestações, o presidente Jair Bolsonaro não conseguiu disfarçar, já na segunda-feira, o desfecho que só viria ontem: o convidado e nomeado estava dispensado da posse. Na nota com que se despediu do seu terceiro ministro da Educação, Carlos Alberto Decotelli, depois de uma reunião improvável em que teria tido paciência para ouvir detalhes técnicos da estrutura curricular da pós-graduação, os elogios feitos pelo presidente se destinavam a consolar a si mesmo, por tê-lo escolhido, e a eximir de culpa os militares, por tê-lo indicado.

Motivação igual teve para dar-lhe a tribuna de 24 horas em que ainda contaria com audiência para se explicar. O que, convenhamos, foi atitude mais elegante do que a da Fundação Getúlio Vargas, que o renegou muitas vezes depois de prestar-lhe homenagens anos a fio pelos cursos que promoveu na instituição. Constatou-se que a FGV foi mais relapsa que a Abin.

Para ser ministro da Educação não é necessário ter doutorado. Mas é preciso ter decência. Este caso não deu para desentortar, como já se fez com tantos outros, inclusive nesta gestão, mas pode ainda inspirar o pensamento sobre o processo e o método de formação do governo Bolsonaro.


A fábula de como se faz um governo aleatório, sem critério e sem identidade, encontrou a simbologia máxima. Convite feito e aceito, ganhou a desculpa da urgência pelo rumo imediato exigido pela área em causa, a começar pela sua atividade mais elementar, o funcionamento das atividades em sala de aula. Nenhum filtro, nenhuma informação ou análise mais profunda sobre alguém que havia ingressado na história do Brasil há apenas cinco dias, levando na bagagem de chegada uma bomba de detonar a partida.

Saudado como técnico e gestor, Decotelli tinha um currículo composto por falsos brilhantes que, na insinceridade geral dos dois ambientes, o acadêmico e o do governo Bolsonaro, abalou as estruturas. Mestrado com tese de trechos copiados sem a citação do autor; doutorado contestado pela banca de Rosário; pós-doutorado, conhecido como posdoc no meio científico, inexistente em universidade alemã. O nomeado retocou a maquiagem, mas não ficou bem para a posse.

Enfeitar o currículo com estas lantejoulas é um clássico nacional. O pós- doutorado pode ser só um atraente turismo científico e, em muitos currículos, não passa disto. Em outros, é uma espécie de emprego temporário para doutores até aparecer coisa melhor. No conjunto desta obra, porém, pesou muito. O mestrado e o doutorado têm significados, sobretudo para quem pretende seguir a carreira acadêmica, mas não pesam para ser gestor público.

Há outras demonstrações de competência acadêmica além dos títulos, como há demonstrações de competência específicas na gestão pública ou privada. Mário Henrique Simonsen possuía de sobra as duas condições. Não tinha nem mestrado nem doutorado e estava fazendo, às pressas, uma graduação formal numa escola qualquer do Rio quando já era um economista respeitado e constava do catálogo de Harvard como professor visitante.

Para o currículo da plataforma Lattes não bastam os créditos do curso, é preciso ter defendido e aprovado tese para receber o título. Na vida acadêmica, a maioria já fez a assepsia. Na iniciativa privada e na administração, os titulares negligenciaram as correções.

Nos governos Collor, Lula, Dilma e Bolsonaro houve escândalos de currículos falsos ainda na memória de todos. Passaram a borracha e continuaram nos cargos.

Comparado com Ricardo Vélez, o primeiro, que saiu sem entrar, e com Abraham Weintraub, o segundo, que fugiu do País, Decotelli não pode ser culpado pela desdita do governo e mais um atraso no início de um plano de recuperação do funcionamento do MEC.

Quem seleciona é que não sabe o que quer nem para onde vai.

Ditadura privou uma geração inteira de educação política

Segundo o Datafolha, metade da população brasileira não sabe o que foi o AI-5, nem quem o decretou, quando, onde e por que. A mesma metade ouviu falar de uma "guerrilha", mas não tem ideia das circunstâncias que a levaram a acontecer e do que gerou de violência e atingiu até quem, dos dois lados, não tinha nada a ver. E mais dessa metade não conhece a expressão "milagre brasileiro", nem sabe que, por trás do festival de obras da ditadura —usinas, estradas, pontes, tudo gigantesco e inflado por bilhões em propaganda—, havia uma sensação geral de grossa corrupção. Corrupção essa que nem a censura à imprensa conseguia esconder.


Os que hoje acreditam que a ditadura foi uma maravilha ignoram que, por muitos dos 21 anos que ela durou, militares na ativa e de qualquer patente evitavam andar fardados na rua, para não se exporem a uma hostilidade muda. Por sorte, não tinham de andar muito, porque, naqueles 21 anos, não lhes faltavam carros oficiais, gabinetes refrigerados e sinecuras em recém-criadas estatais. Mas o carioca observava suas súbitas mudanças de endereço, da região do Maracanã, onde tradicionalmente moravam, para os bairros à beira-mar.

O povo percebia as trapaças do regime para simular legalidade, como os atos que instituíram o voto indireto, a nomeação de senadores e governadores e a constante mudança nas regras do jogo a favor do partido do poder, a Arena. Na primeira oportunidade que lhe deram para votar, em 1973, o povo aplicou-lhe memorável tunda, elegendo uma esmagadora maioria de deputados da oposição consentida, o MDB.

Em 1º de abril de 1964, muitos brasileiros tinham, como eu, 16 anos. Só iríamos votar para presidente da República em 1989, aos 41. Uma geração inteira foi privada de educação política.

Foi também privada de opinião, representação e participação. Enfim, foi uma privada.
Ruy Castro

Circo Brasil


O inferno são os outros e a Covid também

Tem sido comovente assistir à coesão nacional em torno da luta contra a Covid-19. No início, quando havia mais casos no norte do País, o sul abanou a cabeça em sinal de reprovação. Aquela gente do norte, realmente, não sabia comportar-se. Agora, que há mais casos a sul, no norte já se lamenta a irresponsabilidade dos sulistas. Sou um grande apreciador de xenofobia, cujo potencial cómico me encanta. A ideia segundo a qual, por nascermos de um lado ou do outro de um risco, adquirimos certas características sempre me pareceu engraçada. Mas esta xenofobia inter-regional consegue ser ainda mais hilariante. É gente do mesmo país, ainda para mais de um país muito pequeno, que arranja maneira de se considerar superior a quem nasceu noutra freguesia, uns metros mais para baixo. Deve dar trabalho – e esse é capaz de ser o melhor argumento contra a discriminação. Discriminar requer um esforço que eu sou demasiado preguiçoso para fazer. A segregação tendo em conta a cor da pele já me parece demasiado cansativa: ir buscar o Pantone, comparar a pele do outro com a minha, determinar quantos tons de bege acima do meu é que o potencial discriminado tem a desfaçatez de ostentar, dar o desconto para o bronzeado, no verão, e passar a discriminar de acordo com esse cálculo, é trabalhoso. Embirrar com a área geográfica já envolve mapas, e com isto das uniões de freguesias uma pessoa ainda dá por si a discriminar-se a si própria, o que é aborrecido (embora, no meu caso, justificado).

João Fazenda

O mesmo fenómeno aconteceu quando, nos primeiros meses, se dizia que os idosos não respeitavam o dever de recolhimento. Era uma inconsciência dos idosos, dura e justamente punidos na internet com azedos memes. Agora, vão aumentando os casos entre os jovens, e é a inconsciência juvenil que os memes castigam. Além da geografia e da faixa etária, houve outros pretextos para divisão. Quando os sindicatos organizaram a manifestação do 1º de Maio, vi vários católicos a insurgirem-se contra o desrespeito pelas regras de afastamento social. Um mês depois, a propósito do foco de infecção no Santuário de Fátima, imagino que haja sindicalistas indignados com a incúria dos crentes. Eu, que sou uma pessoa de meia-idade, ateu e não-sindicalizado, tenho estado muito bem. Até porque, quando havia mais casos no norte, refugiei-me na minha qualidade de lisboeta, e agora que há mais casos no sul, recordei a todos que a minha família é do norte. Não sou culpado de nada, o que é excelente – e raro.

Primeiras letras

Com as toupeiras, aprendemos a fazer túneis.
Com os castores, aprendemos a fazer diques.
Com os pássaros, aprendemos a fazer casas.
Com as aranhas, aprendemos a tecer.
Com o tronco que rolava encosta abaixo, aprendemos a roda.
Com o tronco que boiava à deriva, aprendemos o barco.
Com o vento, aprendemos a vela.
Quem nos tem ensinado os muitíssimos males?
De quem aprendemos a atormentar ao próximo e a humilhar ao mundo?
Eduardo Galeano

A pandemia e a vida banal

Números do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, divulgados ontem pelo Ministério da Economia, revelam que 331.901 vagas de trabalho com carteira assinada foram fechadas em maio. No trimestre, foi 1,478 milhão de empregos formais, desde março. Reflexo da pandemia no Brasil, que registrou a primeira morte em 17 daquele mês. O agravante é o fato de que o coronavírus também destruiu atividades produtivas no mercado informal, que funcionavam como válvula de escape para 36 milhões de trabalhadores sem carteira assinada.

Apenas uma parcela desses atingidos será capaz de se reinventar, porque economizou recursos para travessia, dispõe de conhecimentos ou condições de adquiri-los ou tem uma vocação inata para empreender e se adaptar às circunstâncias. Outra, a grande maioria, permanecerá dependendo da ajuda do governo para sobreviver, até que a economia volte a crescer numa escala capaz de absorvê-los, novamente, no mercado de trabalho, o que pode não acontecer. Infelizmente, nosso país tem uma tradição de descartar mão de obra e substituí-la nos ciclos de modernização, desde a abolição da escravatura.


É aqui que a relação entre o chamado “novo normal” e a “vida banal” se bifurcam. A superação das dificuldades pela via do esforço pessoal faz parte do imaginário da nossa sociedade, seja pelo serviço público, seja pela carreira profissional bem-sucedida no setor privado, ou por meio do empreendedorismo. Em época de confinamento, palestras e debates sobre esse assunto se multiplicam, com dicas e recomendações que funcionam como uma espécie de manual de sobrevivência na pandemia. Entretanto, a maioria dos que foram expelidos do mercado não terá a menor chance de encontrar uma saída imediata por essa porta. Uma dimensão da crise é o escancaramento da relação entre pobreza e desigualdades; a outra, como se sabe, são as ameaças à nossa democracia.

A propósito, o professor Pedro Cláudio Cunca Bocayuva, do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um velho amigo, me fez observações instigantes sobre a conexão entre os efeitos da pandemia e a chamada “vida banal” no cotidiano das periferias e favelas das grandes cidades brasileiras. É aí que o drama econômico e social da pandemia está se desenrolando da forma mais iníqua. Sem a esfera pública e suas políticas, adverte, a cautela no consumo, o empreendedorismo e a filantropia não dão respostas à pobreza, porque não levam em conta as desigualdades. E ainda prescindem da democracia.

Como será a via da igualdade de oportunidades e do acesso público à saúde, à educação, à cultura, ao saneamento e à mobilidade no pós-pandemia? A nova agenda proposta pela crise sanitária e econômica, segundo Bocayuva, passa não apenas pela renda básica, pressupõe o cooperativismo, a solidariedade no uso dos bens públicos, o compartilhamento de conhecimento e das inovações tecnológicas, as mudanças de padrão energético, de preservação ambiental e de garantia dos direitos sociais, em bases democráticas. Por toda a economia de serviços, cultura, educação, pesquisa, ensino, infraestrutura. Como num rap, conexões, fluxos, trânsitos, controles, uso do espaço, planejamento e instalação de equipamentos urbanos, retomada das atividades sociais, a produção, o consumo, os resíduos, a reposição e a reciclagem, para ele, tudo precisa ser repensado, no contexto das grandes mudanças em curso, das relações humanas à pesquisa.

De certa forma, o que está acontecendo nas favelas do Rio de Janeiro e periferias de São Paulo, em termos de busca de respostas e de autoproteção contra as iniquidades em que essas comunidades vivem, diante do avassalador avanço da pandemia, aponta para uma nova agenda, que não está sendo considerada. A velha agenda social-democrata e social-liberal para a pobreza, ou seja, a focalização dos gastos sociais nos mais pobres e os programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, por incrível que pareça, está sendo capturada eleitoralmente pelo presidente Jair Bolsonaro.

Primeiro, com a distribuição do auxílio emergencial de R$ 600 aprovado pelo Congresso, que já lhe garantiu uma mudança de base de apoio, conquistando uma parcela do eleitorado de baixa renda do Nordeste, que lhe era hostil e tinha saudades do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. É gente que não se identificava com Bolsonaro pela via da narrativa ideológica — centrada na família, na fé e na ordem —, mas foi atraída naturalmente, pelo interesse material imediato. Ou seja, a velha agenda da esquerda está tão superada que passou às mãos de Bolsonaro. Como nos governos anteriores, porém, isso não significa uma solução duradoura para a população de baixa renda, porque não garante a superação das desigualdades e, sem outras medidas, a médio prazo, estreita ainda mais os gargalos da economia.

Um vírus duradouro

Ao longo de nossa história, o Itamaraty é um exemplo de sucesso ininterrupto, até mesmo durante regimes autoritários. Na ditadura Vargas, em plena II Guerra, o Itamaraty desempenhou suas funções com seriedade e competência. Alguns de nossos diplomatas são considerados heróis por terem salvado vidas de judeus. Com Oswaldo Aranha, nossa política externa foi determinante na criação da ONU. Apesar da pressão contrária dos Estados Unidos, fomos o primeiro país a reconhecer o governo independente e marxista de Angola; fizemos acordo nuclear com a Alemanha; reconhecemos o governo Comunista da China. Não devemos esquecer a ruptura com Cuba em 1964, mas com exceção da demissão arbitrária de alguns diplomatas, é preciso reconhecer que os 21 anos de ditadura não enfraqueceram nossas relações exteriores, nem desestruturaram o Itamaraty.

A democracia a partir de 1988 foi o grande momento de nossa política externa. O restabelecimento de relações com Cuba foi um dos primeiros atos do governo democrático de Sarney. Ele construiu a aliança com a Argentina e, junto com Raúl Alfonsín e Julio Sanguinetti, fez o Mercosul. Collor colocou o Brasil na liderança mundial da defesa do meio ambiente, quando isto ainda não era um tema palpitante. Fernando Henrique e Lula solidificaram nossa presença no mundo. O primeiro formou um time com Lampreia; o segundo formou quase uma instituição com Celso Amorim, a Lulamorim, no cenário mundial. Os dois presidentes e seus ministros colocaram a presença brasileira no ponto mais alto de nossa história. O primeiro foi tratado no nível dos presidentes de países ricos, o segundo conseguiu ser o líder dos presidentes dos países pobres, e com isto ganhar o respeito dos grandes do mundo. O primeiro criou a Bolsa Escola, reconhecida na autobiografia de Clinton, onde é citada em português em todos os idiomas em que foi traduzida; o segundo, com o nome de Bolsa Família, mostrou ao mundo uma política social inovadora. Nada disto seria possível sem a história de nossa política externa e sem o Instituto Rio Branco formando nossos diplomatas.
Fui professor e conferencista em diversas universidades, no Brasil e no exterior, em nenhuma tive um conjunto de alunos com o brilhantismo, a competência e o espírito público dos que encontrei e com os quais convivi naqueles dois anos no Instituto Rio Branco. Tenho orgulho de dizer que o atual ministro não foi meu aluno. Seu desempenho é uma tragédia que vai demorar mais do que a provocada pelo corona vírus. Está quebrando nossa fama e nosso prestígio de neutralidade, independência, solidariedade, eficiência e progressismo. O Itamaraty está contaminado por um vírus cuja consequência nefasta será mais duradoura porque ele infeccionou o Brasil, não apenas os brasileiros.

Ele está desarticulando a máquina do Ministério das Relações, fazendo o Brasil virar motivo de chacota no cenário internacional e na comunidade diplomática do mundo. Além de nos tirar das tradicionais posições de independência e conciliação, nos afasta das posições sintonizadas com os rumos da história, na ecologia, nos direitos humanos e na luta contra a tragédia da pobreza. Suas posições desastrosas pela oposição e preconceito em relação à China, Cuba, Argentina, estão levando ao isolamento e fazendo do Brasil um pária. Em relação à China, é além disto uma estupidez pro tudo que este país representa no cenário mundial e nas relações comerciais com o Brasil. Só um inimigo do Brasil seria capaz de provocar tantos problemas para o país.

Em fevereiro, ouvi de um diplomata estrangeiro que ele sentia mais modernidade e diálogo em diplomatas do talibã do que no Itamaraty de Bolsonaro. Depois de respirar, ele disse: “E vocês já foram os melhores do mundo”. E lembrou os nomes dos chanceleres nos últimos anos: Fernando Henrique Cardoso, Luiz Felipe Lampreia, Celso Amorim, Antônio Patriota, José Serra, Aloysio Nunes.

O trabalho mais difícil no mundo hoje, depois de profissional da saúde, é ser diplomata brasileiro servindo no exterior. E já foi um dos trabalhos mais respeitados e admirados.

O grave é que o estrago feito pela incompetência da diplomacia levará décadas para ser recuperado. Este é um vírus duradouro.

Um dia, os defensores de Bolsonaro poderão alegar que no dia 1º de janeiro de 2019, educação, saúde, economia, finanças não estavam bem, mas terão de reconhecer que o desastre nas relações exteriores foi um crime de Bolsonaro contra o Brasil, sob a incompetência do chanceler que ele escolheu e sob a impotência de líderes civis.

Bolsonaro avacalha a direita

Em menos de dois anos o governo de Jair Bolsonaro avacalhou a direita e foi além, avacalhando até o atraso. Com três ministros da Educação decapitados, cinco secretários de Cultura, “gripezinha” e piromania florestal, a charanga do capitão bateu no vexame do “doutor” Carlos Decotelli. Um secretário de Cultura papagueando o nazista Joseph Goebbels e um ministro da Educação com currículo bombado desonram até o atraso. Não só pela apropriação dos títulos acadêmicos. Decotelli presidiu o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação no governo do capitão e na sua gestão construiu-se um edital viciado para a compra de 1,3 milhão de computadores, laptops e notebooks para a rede pública de ensino. A Controladoria-Geral da União impediu a consumação da maracutaia, mas ninguém explicou quem armou o golpe. Tratava-se de uma despesa de R$ 3 bilhões.


A direita brasileira já produziu grandes administradores como Carlos Lacerda (vindo da esquerda). Até o atraso deu ao país políticos notáveis, como Bernardo Pereira de Vasconcelos no Império. Ele foi à tribuna do Senado em abril de 1850 para dizer que havia “terror demasiado” em relação à epidemia de febre amarela. Morreu uma semana depois, de febre amarela.

No segundo turno da eleição de 2018 o candidato Jair Bolsonaro teve 58 milhões de votos. Ali estavam eleitores que simplesmente não queriam a volta do PT ao Planalto e também conservadores que acompanhavam a vaga agenda do candidato. Era o jogo jogado. No dia 1º de janeiro de 2019, feliz, esse eleitorado ganhou Sergio Moro no Ministério da Justiça. No pacote estavam também a contabilidade de Fabrício Queiroz, os delírios do chanceler Ernesto Araújo e, meses depois, os de Abraham Weintraub.

Essa paçoca não é conservadora, nem de direita, sequer atrasada, é chumbrega, inepta. Pretende ser um governo com militares, quando é acima de tudo um governo com uma milícia desconexa. Orgulha-se de ter equipado sua cúpula com generais e nomeia para o Ministério da Educação um doutor de titulação forçada por baixo de cuja mesa, na atual administração, passou um edital viciado de R$ 3 bilhões. No século passado Carlos Lacerda dizia que o Serviço Nacional de Informações não funcionava às segundas-feiras porque naquele dia não circulavam os jornais matutinos. O Gabinete de Segurança Institucional de Bolsonaro não consulta os relatórios da CGU.

Decotelli não foi o primeiro hierarca a inflar currículo. Dilma Rousseff nunca concluiu seu doutorado na Universidade de Campinas, e o governador Wilson Witzel jamais teve vínculo com Harvard. Contudo, o doutor exagerou: sua dissertação de mestrado tinha indícios de plágio, o doutorado argentino e o pós-doutorado alemão não haviam sido concluídos.

Para quem viu a passagem pela administração pública de grandes conservadores, muitos direitistas e até mesmo alguns ilustres representantes do atraso, só resta parodiar os versos de Casimiro de Abreu:

“Oh, que saudades que eu tenho/ Da aurora da minha vida/ Da minha direita querida/Que os anos não trazem mais”.