terça-feira, 12 de novembro de 2019

O poder de quem tem caneta cheia

O presidencialismo de coalizão no Brasil terá vida longa? A interrogação leva em conta a propensão do atual governo em manter certa distância dos políticos, temendo pressão por espaços e cargos na estrutura. A esfera parlamentar quer ganhar proeminência e maior independência do Executivo. Aliás, nessa direção age o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ao procurar impor a pauta dos deputados com um avançado programa reformista.

Há uma premissa verdadeira, desprezada pelo presidente Bolsonaro: “Quanto mais extensa a aliança em torno do Executivo, maior sua probabilidade de garantir a governabilidade”. Essa relação de troca tem marcado o equilíbrio entre os dois Poderes, com o presidencialismo alimentando-se da base política, e esta comendo do seu pasto. Bolsonaro considera isso “velha política”.

Presidencialismo mitigado, ou parlamentarismo à francesa, até foi tentado pelo presidente Michel Temer. Mas o DNA do presidencialismo está bem presente em nossa cultura. Sua semente viceja em todos os espaços, e o termo “presidente” ecoa grandeza, uma aura de todo-poderoso, a caneta do homem que manda e desmanda.


O culto à figura do presidente e a atores com o poder da caneta faz parte da glorificação. Tronco do patrimonialismo ibérico. Herdamos da monarquia os ritos da Corte: admiração, bajulação, respeito e mesuras, o beija-mão.

O sociólogo francês Maurice Duverger defende que o gosto latino-americano pelo sistema tem a ver com o aparato monárquico. O milenar império inca e depois o poderio espanhol plasmaram a inclinação pelos regimes autocráticos.

O presidencialismo aqui agrega doses de autocracia. Já o parlamentarismo europeu se inspirou na ideologia liberal da Revolução Francesa, o que explica a frieza europeia ante o presidencialismo. Essa disposição monocrática no Brasil começou com a Constituição de 1824, que atribuiu a chefia do Executivo ao imperador. A adoção do presidencialismo, na Carta de 1891 – que absorveu princípios da Carta americana de 1787 –, só foi interrompida entre 1961 e 1963, quando o país teve ligeira experiência parlamentarista.

Assim, o presidencialismo se eleva ao altar mais alto da cultura política – o mandatário na condição de protetor, benemérito. De acordo com o sociólogo Thomas Marshall, os ingleses construíram sua cidadania abrindo, primeiro, a porta das liberdades civis, depois, a dos direitos políticos e, por fim, a dos direitos sociais. Entre nós, os direitos sociais precederam os outros. A densa legislação social (benefícios trabalhistas e previdenciários) foi implantada entre 1930 e 1945, no ciclo de castração de direitos civis e políticos. Portanto, o civismo e o sentimento de participação ficaram adormecidos por muito tempo no colchão dos benefícios sociais. Imaginar o parlamentarismo aqui só mesmo ante uma ruptura mais acentuada entre o Executivo e o Legislativo. E com a aprovação popular. Por enquanto, temos de conviver mesmo com o fardão presidencialista.

Pensamento do Dia


Bolsonaro não consegue terceirizar reação a Lula

Em conversas privadas, Jair Bolsonaro havia combinado com ministros e auxiliares que reagiria às provocações de Lula com racionalidade. Mas a racionalidade do presidente vira superstição cada vez que ele tem que passar por baixo de uma escada. E Lula, um político movido a intuição, arma uma escada atrás da outra. Menos de 24 horas depois da abertura da cela de Curitiba, Lula e Bolsonaro já estavam pendurados nas manchetes chamando um ao outro de miliciano e de canalha.

Bolsonaro chegou a combinar que as respostas a Lula seriam produzidas por ministros como Sergio Moro. Mas essa tática da terceirização das reações às provocações de Lula tem poucas chances de prosperar. Moro recebeu sinal verde do Planalto para se firmar como um contraponto a Lula. Até porque o ex-juiz da Lava Jato foi chamado pelo petista de "canalha" e "mentiroso". Mas é improvável que Bolsonaro se mantenha em silêncio.


Nesta segunda-feira, de passagem por Campina Grande, na Paraíba, Bolsonaro até declarou: "Não vou polemizar. Ele (Lula) continua condenado". Essa frase está impregnada de lógica. Um presidente da República não deveria dar cartaz a um líder oposicionista que acaba de deixar a cadeia e ainda frequenta a cena política como um corrupto de terceira instância à espera de que o Supremo anule a sua sentença. O diabo é que a lógica de Bolsonaro é regulada pelo fígado.

Outro ponto notável é que as reações do governo, venham de Moro ou de Bolsonaro, cuidam de poupar o Supremo Tribunal Federal. Assim como o PT, Bolsonaro tem interesses a defender no Supremo. Moro diz que cabe ao Congresso reintroduzir a prisão na segunda instância no ordenamento jurídico. Bolsonaro adota um tom abaixo do timbre do ministro.

"Eu não voto", disse o presidente ao ser indagado sobre a hipótese de o Congresso ressuscitar a prisão antes do julgamento de todos os recursos. Esse desejo de adular o Supremo, consequência direta do escudo que a Corte forneceu a Flávio Bolsonaro, o filho investigado do presidente, faz com que alguns adoradores de Jair Bolsonaro comecem a enxergá-lo como uma espécie de ex-Bolsonaro.

Dois bicudos

Bolsonaro no Planalto e Lula livre são uma combinação explosiva. O presidente é o que a direita insana sempre pediu a Deus: um líder populista civil (no caso híbrido), que sabe pouco, fala muito e não tem pruridos para defender os maiores absurdos e abrir fogo contra a cultura, o meio ambiente, a mídia, os direitos humanos e parceiros internacionais tradicionais.

O outro é o único que a esquerda conseguiu produzir: também populista e sem pruridos, boa lábia, capaz de mover as massas
Eliane Cantanhêde 

O Inferno

A democracia não é o paraíso. O notável pensador político, Norberto Bobbio, em O Futuro da Democracia, apontava pelo menos seis promessas (ou ilusões) não cumpridas pela democracia. Por sua vez Rousseau, afirmava: “Se houvesse um povo de deuses, seria governado democraticamente, mas aos homens não convém tão perfeito governo”.

Em contrapartida, a ausência da democracia é o inferno sob formas de tirania, entres as quais, a mais perversa: sistema totalitário.

Neste sentido, a nossa experiência histórica tem muito a dizer pelas agruras sofridas: uma democracia jovem, submetida a uma transição arriscada, mais lenta e menos segura do que prometia a estratégia da transição do governo militar para o governo civil.

Com evidentes sinais de consolidação (integração da sociedade civil, estado de direito, sociedade econômica, gestão pública e sociedade política), eis que a direita e a esquerda populistas ameaçam, globalmente, as democracias liberais, desta vez, chegando ao poder, não pela força, mas pelos instrumentos da democracia representativa. Uma vez instaladas no governo, as lideranças “legitimadas” pelo voto, enfraquecem à exaustão a teia protetora das instituições democráticas a ela sobrepondo o poder despótico.

O que nós temos a dizer dos que duvidam da solidez da nossa democracia? É provável que nenhuma democracia nascente tenha sido tão testada: a enfermidade letal do Presidente Tancredo Neves, o governo fraco de Sarney, mas ao qual se deve a capacidade de superar crises; cooperar decisivamente com o processo constituinte; suportar uma oposição virulenta; sobreviver à recessão e à super-inflação.

O que veio depois? A maior crise, até então, do presidencialismo: o impeachment de Collor e mais uma vez um governo provisório de Itamar Franco, objeto de todos os preconceitos, que eliminou a inflação graças ao engenhoso plano de estabilização sob à lúcida liderança do Ministro da Fazenda e sucessor, Fernando Henrique Cardoso.

Seguem-se o fenômeno e a tragédia: o operário e retirante nordestino chega ao Palácio do Planalto nos braços do povo com um projeto de poder a ser viabilizado por uma corrupção sistêmica. As instituições e os ritos democráticas prevaleceram: colocaram Lula na cadeia, destituíram a Presidente, empossaram Temer.

Dito isto, os esbirros juvenis e insensatos ao contrário de ameaçar, fortalecem a democracia. O STF vai dar a palavra final sobre a prisão de condenados em segunda instância. A decisão será acatada e respeitada.

Resta a última instância: o oitavo fosso do quinto círculo do inferno de Dante onde os corruptos vão arder para sempre.
Gustavo Krause 

O bom e velho faroeste

Dia desses assisti a um filme de faroeste. Mas não gostei. Tinha tiro demais. Muito sangue jorrando. Muita desordem. Ora, o “velho oeste” norte-americano era um lugar organizado!

Segundo me recordo das aulas de história, tudo começou quando descobriram ouro na California, em 1848. Em 1862, Abraham Lincoln emitiu o “Homestead Act”, através do qual seria doada a propriedade de terras no oeste a quem se dispusesse a ocupá-las por pelo menos cinco anos.

Os assentamentos decorrentes deste ato eram rigidamente controlados pelo governo – os pioneiros, tão logo se estabeleciam, eram obrigados a enviar ao Congresso toda a documentação da área. A partir daí criava-se um conjunto de regras locais, e eram institucionalizados os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, com a eleição do prefeito, do juiz e do xerife.


Naqueles velhos tempos o porte de arma era objeto de controle rigoroso. Em 1870, por exemplo, quem chegasse a Wichita, no Kansas, era obrigado a ir até a Delegacia e registrar sua arma. Há uma fotografia de um aviso na entrada de Dodge City, datada de 1879, segundo o qual o porte de armas de fogo era estritamente proibido.

É curioso, isso: segundo consta, atualmente o porte de armas de fogo é permitido em 49 dos 50 estados norte-americanos! E eis que o velho oeste, ao contrário do que vemos nas telas do cinema, era muito mais responsável!

Aliás, sobre violência, esqueça os tiroteios e mortes: em média as cidades fronteiriças registravam apenas dois homicídios por ano. E nas cinco maiores cidades do velho oeste aconteceram apenas 45 homicídios entre 1870 e 1885.

Vamos a alguns exemplos concretos: em Abilene, uma das mais violentas cidades do velho oeste, não se registrou sequer um homicídio entre 1869 e 1870. E as famosas Ellsworth e Dodge City foram as únicas em toda a região nas quais foram registrados mais que cinco homicídios por ano.

E os assaltos a banco, tão comuns nos filmes de faroeste? Tudo mentira! Segundo constatou o historiador Larry Schweikart, da Universidade de Dayton, aconteceram apenas quatro deles em nada menos que 15 estados, entre os anos de 1859 e 1900! Por incrível que pareça, nos tempos atuais há mais assaltos a banco em qualquer grande cidade brasileira ao longo de um único ano do que em toda uma década daqueles tempos de faroeste.

Diante de toda estas mentiras, larguei para lá o filme de faroeste. Fui assistir a um outro, sobre a Guerra do Vietnã. Também não gostei. Tiro demais. Muita gente morrendo. E novamente a realidade sendo distorcida – afinal, o Vietnã não era assim tão violento!

Ora, com todos aqueles tiroteios e explosões, o Exército dos EUA perde durante uma guerra cerca de 53,67 soldados por dia. Já o Brasil, por exemplo, usufruindo de uma paz absoluta, perde 119,46 habitantes assassinados por dia – mais do que o dobro!

Resolvi fazer umas contas. Verifiquei quantos soldados norte-americanos morreram em combate na Guerra do México, Guerra Hispano-Americana, I Guerra Mundial, II Guerra Mundial, Guerra da Coréia, Guerra do Vietnã, Guerra do Golfo, Guerra do Iraque e Guerra do Afeganistão. Cheguei a 666.056 baixas ao término de uns 34 anos de batalhas terríveis. Enquanto isso, em apenas 16 anos (1990 a 2006), 697.668 civis brasileiros morreram a tiros, facadas ou pauladas pelas ruas deste tranquilo país.

Foi assim que joguei fora os filmes de guerra e faroeste que tinha, e fui assistir ao “Deu a Louca no Mundo”, de Stanley Kramer.
 Pedro Valls Feu Rosa