segunda-feira, 12 de julho de 2021

Brasil dos 'intocáveis'

 


A Venezuela ficou mais perto

A Venezuela das milícias e dos generais de Hugo Chávez e Nicolás Maduro continua longe, mas ficou mais perto depois da nota do ministro da Defesa e dos três comandantes militares contra o senador Omar Aziz.

Desde 2018, quando o general Villas Bôas soltou seu famoso tuíte prensando o Supremo Tribunal Federal, a cúpula militar mudou de passo. Naquela ocasião, tomando-se a intenção do general, ele se alinhava com o modo de combate à corrupção do juiz Sergio Moro. A nota de quarta-feira teve sentido diverso.

Presidindo a CPI da Covid, o senador Omar Aziz disse que há muito tempo “não via membros do lado podre das Forças Armadas envolvidos com falcatrua dentro do governo”. O senador acabara de dar voz de prisão a um ex-sargento da Força Aérea acusado por um cabo da Polícia Militar de ter pedido um pixuleco de US$ 400 milhões para comprar uma vacina indiana. Em torno do negócio, farfalhavam, dois oficiais da reserva do Exército.

Como o senador explicou, foi uma observação pontual. Quem viu o coronel da reserva e ex-deputado José Costa Cavalcanti construir a hidrelétrica de Itaipu sem mudar seu padrão de vida sabe do que o senador fala.



O ministro da Defesa e os três comandantes responderam com uma veemente rajada de adjetivos: vil, leviana, infundada, grave, irresponsável.</p><p>Até aí poderiam ser salvas trocadas, ainda que com exagero. O passo em falso esteve nas 20 palavras da última frase:

“As Forças Armadas não aceitarão qualquer ataque leviano às Instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro.”

Ganha um fim de semana em Caracas quem souber o que quiseram dizer. No limite, bastaria um cabo para fechar a CPI, o Congresso e os tribunais que se pusessem no caminho.

Feito isso, o que as Forças Armadas fariam com elas e com o país? Se a passagem do general da ativa Eduardo Pazuello com seu pelotão de militares for uma amostra, as coisas que vão mal haveriam de piorar.

Nos rolos das vacinas, salvo o cabo da PM mineira, não há militares em funções profissionais de suas Forças. Estão todos da reserva ou ocupavam cargos da administração civil. 

Faz tempo, quando viu as instituições democráticas ameaçadas, o general Castelo Branco, então chefe do Estado-Maior do Exército, disse:

“Não sendo milícia, as Forças Armadas não são armas para empreendimentos antidemocráticos. Destinam-se a garantir os Poderes constitucionais e sua coexistência.”

Repetindo: a Venezuela continua longe, mas vai ficando mais perto.

Circula na Câmara um anteprojeto de Emenda Constitucional que altera a relação das Polícias Militares com os governos estaduais.

Elas ganhariam autonomia financeira, administrativa e funcional.

Hoje, a maior patente das PMs é a de coronel. Elas passariam a ter três tipos de generais: tenente-general, major-general e brigadeiro-general.

Os comandantes das polícias militares são coronéis escolhidos pelos governadores. Passariam a ser escolhidos a partir de uma lista tríplice elaborada pelo terço dos oficiais mais antigos, com curso de estado-maior. Escolhido, o comandante terá um mandato de dois anos e para demiti-lo o governador deverá justificar o motivo relevante, “devidamente comprovado”.

O presidente da República pode nomear um procurador-geral que não está na lista tríplice de seus pares. Assim se deu com a escolha do doutor Augusto Aras. Os governadores não poderiam fazer o mesmo.

Caracas fica longe, e nada indica que essa mudança será aprovada pelo Congresso, mas ela existe.

Quando Bolsonaro diz que “ou fazemos eleições limpas no Brasil ou não temos eleições”, ele se afasta de qualquer modelo venezuelano.

À maneira deles, Hugo Chávez e Nicolás Maduro realizaram todas as eleições determinadas pelo calendário.

Quem defenderá as Forças Armadas?

Responsáveis pela defesa da pátria, última instância da segurança interna, as Forças Armadas são um pilar do estado de direito. Elas estão sob ataque. O desmonte que Jair Bolsonaro faz do Estado e da democracia é generalizado, mas as Forças Armadas são seu alvo prioritário: sem elas, não é possível desfechar o golpe que prepara. O desmonte é operado com mestria, por dentro das FFAA, com o auxílio de muitos militares, cooptados de várias maneiras. Para os mais disciplinados, há a manipulação da obediência ao presidente, chefe das Forças; para os patriotas, uma impostura de amor à pátria; para os iludidos, o espantalho da (fictícia) ameaça comunista; para os vaidosos, a bajulação; para os fisiológicos, cargos e verbas; para os corruptos, a oportunidade de se corromper.


Bolsonaro mandou que o general Paulo Sérgio deixasse impune o general Eduardo Pazuello, que subiu num palanque; temeroso da quebra da hierarquia, o comandante do Exército obedeceu e abriu a porta para a anarquia militar. O presidente do Superior Tribunal Militar, general de quatro estrelas Luis Carlos Mattos, fez pior: deu entrevista revelando-se bolsonarista entusiasmado e ameaçando ruptura democrática. Paulo Sérgio deixou o colega de alto-comando impune sem que Bolsonaro precisasse sequer dar a ordem.

Pouco tempo atrás, um coronel do Ministério da Saúde contratou uma obra milionária, sem licitação, com empresa suspeita. Mais recentemente, quatro coronéis do ministério, antes subordinados ao então secretário-executivo, coronel Elcio Franco (a esta altura, suspeito), foram acusados de corrupção. E todos, incluindo Franco, foram nomeados por Pazuello (também suspeito). Um dos encontros para atravessar vacinas foi intermediado por um coronel da “Abin paralela” do presidente; outro, por um coronel presidente de uma ONG bolsonarista.

Diante dos escândalos, o general Hamilton Mourão declarou que “o Ministério da Saúde sempre foi um lugar onde a corrupção andou” e que “você não consegue da noite para o dia desmanchar uma estrutura” (sete dos oito suspeitos na “estrutura” foram nomeados no atual governo). O vice-presidente também achou banal o presidente ser acusado (e culpado) de crime de prevaricação: “Todos os presidentes sofreram alguma acusação”. Já a prisão de Roberto Dias levou as Forças Armadas a emitir uma nota intimidatória para proteger militares mentirosos. Com atitudes assim, nunca um militar corrupto será preso. Não é de admirar que a aprovação das FFAA tenha caído 12 pontos em dois anos.

Bolsonaro, classificado pelo ex-presidente Ernesto Geisel como “mau militar” e forçado a sair do Exército por planejar explodir bombas em quartéis, é inimigo das Forças Armadas e investe contra elas. É espantoso que tenha o apoio ostensivo de tantos militares. Ainda mais espantoso é quão raros são os militares que se mostram dispostos a resistir.

É compreensível que homens de farda íntegros se sintam constrangidos em tomar atitudes que possam ser percebidas como indisciplina. Mas se esses militares íntegros não resistirem e não defenderem as FFAA, Bolsonaro as transformará em sua milícia pessoal. Os civis, sozinhos, não têm condições de defender as Forças Armadas.

Mundo tem 11 mortes por fome por minuto

Um ano e meio após o início da pandemia de covid-19, o número de pessoas que morrem de fome está ultrapassando o de vítimas do coronavírus, afirmou na sexta-feira a organização humanitária Oxfam.

Segundo relatório elaborado pela ONG internacional, estima-se que atualmente 11 pessoas morram de fome por minuto. "Esse número supera a atual taxa de mortalidade pandêmica, que é de sete pessoas por minuto", aponta a ONG.

Cerca de 155 milhões de indivíduos vivem atualmente sob níveis extremos de insegurança alimentar, 20 milhões a mais do que no ano passado, aponta o relatório, intitulado "O vírus da fome se multiplica". O número de pessoas que vivem em condições de fome estrutural aumentou cinco vezes desde que a pandemia começou, para mais de 520 mil.

A ONG calcula ainda que, até o final de 2021, cerca de 12 mil pessoas poderão morrer diariamente de fome associada à pandemia, potencialmente mais do que os óbitos pela própria covid-19.

"O pior ainda está por vir, a menos que governos enfrentem com urgência a insegurança alimentar e suas raízes", alertou a organização em comunicado.

"As estatísticas são chocantes, mas devemos lembrar que esses números são compostos por indivíduos enfrentando sofrimentos inimagináveis. Uma única pessoa já seria demais", disse a presidente e diretora executiva da Oxfam America, Abby Maxman.


A Oxfam listou os países que considera serem mais vulneráveis à fome no mundo e onde a crise alimentar já existente foi agravada pela pandemia do coronavírus. Afeganistão, Etiópia, Sudão do Sul, Síria e Iêmen – todos dilacerados por conflitos – viram aumentar os níveis extremos de fome desde o ano passado, diz o relatório.

Venezuela, República Centro-Africana e Sahel também estavam na lista de polos da fome da Oxfam, assim como Índia e Brasil, que atualmente amargam altos índices de infecção e morte por covid-19.

No Brasil, o percentual da população que vive em extrema pobreza quase triplicou desde o início da pandemia, passando de 4,5% para 12,8%, aponta a Oxfam. "No final de 2020, mais da metade da população – 116 milhões de pessoas – enfrentava algum nível de insegurança alimentar, das quais quase 20 milhões passavam fome", diz o relatório.
As causas da crise

Segundo a Oxfam atribuiu o aumento a uma combinação de três fatores: conflitos armados em curso em diversas partes do mundo, o impacto econômico da atual pandemia e à crise climática global. Tal combinação de fatores teria aprofundado a pobreza e a insegurança alimentar nos locais já afetados pelo problema, além de criar novos epicentros da fome pelo mundo.

Cerca de dois terços das 155 milhões de pessoas que enfrentam níveis extremos de insegurança alimentar vivem em países com conflitos militares.

A Oxfam aponta que, apesar da pandemia, os gastos militares globais aumentaram no ano passado em 51 bilhões de dólares – seis vezes mais do que a ONU afirma ser necessário para acabar com a fome no mundo.

De acordo com o relatório, os efeitos econômicos da pandemia, combinados com o aquecimento global, causaram um aumento de 40% nos preços globais dos alimentos – o maior em mais de uma década.

"Os governos devem se concentrar no financiamento de programas urgentes de resposta à fome e proteção social para salvar vidas agora, em vez de fechar negócios no setor armamentista que só perpetuam os conflitos, a guerra e a fome", apelou a ONG. "Precisamos de mais ação para criar formas mais justas, resilientes e sustentáveis de alimentar o mundo."

Por vezes desanimo. Não desanimamos todos?

Há três dias, descendo uma rua de Lisboa com a minha filha de 3 anos, Kianda, fomos interrompidos por uma simpática velhinha. Kianda vinha conversando alegremente com as irmãs imaginárias, que por esta altura já são três, Nurita, Karen e Liza (felizmente meninas imaginárias não se alimentam de comida real). A velhinha achou graça ao falatório:

— Muito falas tu — disse, sorrindo para a menina. — De que tanto falas?

Kianda olhou-a, muito séria:

— Tu vais conseguir! — retorquiu. — Tu vais conseguir vencer os monstros.

A senhora estremeceu:

— Que monstros?

Kianda ergueu o punho direito, como sempre faz quando se transforma em super-heroína:

— Os vampiros!

A velha senhora estremeceu, quase em lágrimas:

— A voz das crianças é a voz de Deus…

Deixamos a pobre mulher atordoada, convicta de que recebera uma mensagem divina, e prosseguimos o nosso passeio.

— Porque disseste aquilo à senhora? — perguntei.

— Não fui eu. Foi a Liza.

Liza ou Deus, tanto faz. Gosto de pensar que o breve encontro mudou a vida daquela pessoa. Talvez a velhinha tenha chegado em casa decidida a enfrentar os vampiros, quaisquer que eles fossem, todos nós conhecemos algum — e os tenha vencido. Espero que sim.

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Vladimir Putin decretou que só os vinhos espumantes russos podem, a partir de agora, receber no país a designação de champanhe. O legítimo champanhe francês, lenta e laboriosamente criado na região de Champagne, na França, passará a ter no rótulo a designação de “vinho espumante”.

Acho um golpe de gênio. Vale para tudo. Amanhã, Vladimir Putin pode, por exemplo, decretar que só o sistema político vigente na Rússia tem legitimidade para ser classificado como democracia. Tudo o resto, incluindo as avançadas democracias do norte da Europa, terão de ser classificadas como oligarquias, plutocracias, ou democracias autoritárias. O mesmo decreto poderia acrescentar que a expressão magnata só pode ser aplicada aos milionários russos. Os milionários americanos terão de ser chamados oligarcas. “Direitos humanos”? Só na Rússia. O resto do mundo que se contente com a expressão “direitos humanos para humanos direitos”. “Carnaval”? Só na Rússia. Os brasileiros que usem a expressão “festas profanas da quaresma”. “Feijoada brasileira”? Apenas em Moscou. Os brasileiros que usem a expressão “feijoada russa do Brasil”. E por aí fora.

De certa forma, a ideia de Putin aprofunda o conceito de “fatos alternativos”, criado por Donald Trump e os seus ideólogos, para designar aquilo a que até então todos nós chamávamos, ingenuamente, “mentiras”. São, portanto, “mentiras melhoradas”. Mentiras melhoradas, é claro, são mentiras muito mais daninhas que as mentiras comuns.

“Aprimorar o mal para torná-lo pior”. Eis um lema que Vladimir Putin, Donald Trump ou Jair Bolsonaro poderiam adotar.

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Por vezes desanimo. Não desanimamos todos? Mas depois presto (também eu), atenção à voz das crianças. Talvez Kianda, Liza ou Deus, estivesse, afinal, falando comigo. Conosco. Vou conseguir. Vamos conseguir. Havemos de vencer os monstros!

Hitler no metrô

No início dos anos 80, eu estudava na Alemanha e todo dia pegava o metrô para assistir às aulas. Aproveitava aqueles 40 minutos para ler tudo o que me caía nas mãos, tentando dominar a língua, decifrar um pouco da cultura e história e entender a tragédia que parecia ainda onipresente no dia a dia alemão, a Segunda Guerra, distante apenas 36 anos.

Um dos livros que li naqueles bancos do metrô de Munique foi o mais comentado e discutido na época, a primeira grande biografia de Hitler, de Joachim Fest, historiador e redator-chefe do mais importante jornal alemão: o Frankfurter Allgemeine Zeitung.

Na capa, o título “HITLER” em letras garrafais levava alguns passageiros com mais de 60 anos a puxar conversa. Segundo parte deles, Hitler errou ao começar uma guerra contra o resto do mundo, mas tinha salvado a Alemanha da humilhação e decadência política, econômica e social após um injusto Tratado de Versalhes ao fim da Primeira Guerra. Envergonhados, se escondiam atrás da narrativa de que o Holocausto teria ocorrido longe dos grandes centros e de que ninguém sabia da existência dos campos de concentração e extermínio. Para poder ler sem interrupção, encapei o volume com alguns quadrinhos de Pato Donald e pude terminar em paz esse livro sensacional, que me deu uma perspectiva histórica da insanidade de Hitler e de quem acreditava nele.

Para evitar uma amnésia conveniente, discutia-se semanalmente a participação e a responsabilidade alemãs na mais sangrenta guerra da história e na “solução final”, o genocídio friamente planejado e executado de 6 milhões de judeus. Essa lavagem de roupa suja de sangue em escala nacional acontecia em escolas, universidades, cinema, televisão, teatro, revistas e jornais, expondo feridas para tentar curá-las.


Carl Gustav Jung definiu o arquétipo da sombra como o lado sombrio da personalidade. Ninguém escapa, não somos tão bons como pensamos ser. Vale para o indivíduo, vale para nações inteiras. Algumas, como a Alemanha, procuram tornar consciente seu passado e encarar sua sombra. Outras jogam para debaixo do tapete suas mazelas, suprimindo a sombra nacional para valorizar apenas o discurso patriótico de um destino iluminado.

O país da liberdade de expressão, os Estados Unidos, por mais livre e democrático que seja, ainda sofre com a herança da escravidão: o racismo sistêmico que divide o país como uma falha geológica. Lá, alguns estados aprovaram leis que proíbem a discussão em sala de aula de temas raciais que possam causar nos alunos “sensação de desconforto, culpa, ansiedade ou alguma forma de estresse psicológico”. Em 1921, em Tulsa, Oklahoma, aconteceu o Massacre da Black Wall Street. Trinta e cinco quarteirões foram incendiados, deixando mais de uma centena de mortos por uma turba que não se conformava ao ver uma comunidade negra prosperar. Até hoje, o currículo de história em Oklahoma não cita uma das maiores chacinas com motivação racial dos Estados Unidos “para não provocar estresse, culpa ou ansiedade nos alunos”.

Eu cresci nos anos 1970 aprendendo a história de um Brasil gigante pela própria natureza. Éramos tão bons quanto queriam que fôssemos, só luz e nada de sombra. A escravidão era apenas um capítulo de um livro colorido em que as ilustrações de Debret davam a impressão de um mundo de paz e harmonia. A Guerra do Paraguai fez do Duque de Caxias um herói nacional, e 1964 era apenas uma revolução. Por mais que tenhamos avançado na busca da nossa consciência nacional, temos ainda muita coisa debaixo do nosso tapete para resgatar.

Enquanto isso, na Alemanha, que fez de tudo dentro e fora das salas de aula para confrontar os monstros de seu passado, a insanidade reaparece. Segundo Alexander Gauland, fundador do partido Alternativa para a Alemanha, “nenhum outro povo foi tão enganado sobre seu passado como o alemão. O passado deve voltar a ser do povo alemão para podermos nos orgulhar das conquistas de nossos soldados nas duas grandes guerras”. Seu partido conquistou 12,6% dos votos nas últimas eleições nacionais. Quando um povo manipula sua história, ele perde o medo de repeti-la.

Do meu lado, se me encontrarem andando de metrô por aí, estarei lendo tudo sobre escravidão, Guerra do Paraguai e continuarei tentando entender por que os militares querem tanto se meter a governar.