Um dos livros que li naqueles bancos do metrô de Munique foi o mais comentado e discutido na época, a primeira grande biografia de Hitler, de Joachim Fest, historiador e redator-chefe do mais importante jornal alemão: o Frankfurter Allgemeine Zeitung.
Na capa, o título “HITLER” em letras garrafais levava alguns passageiros com mais de 60 anos a puxar conversa. Segundo parte deles, Hitler errou ao começar uma guerra contra o resto do mundo, mas tinha salvado a Alemanha da humilhação e decadência política, econômica e social após um injusto Tratado de Versalhes ao fim da Primeira Guerra. Envergonhados, se escondiam atrás da narrativa de que o Holocausto teria ocorrido longe dos grandes centros e de que ninguém sabia da existência dos campos de concentração e extermínio. Para poder ler sem interrupção, encapei o volume com alguns quadrinhos de Pato Donald e pude terminar em paz esse livro sensacional, que me deu uma perspectiva histórica da insanidade de Hitler e de quem acreditava nele.
Para evitar uma amnésia conveniente, discutia-se semanalmente a participação e a responsabilidade alemãs na mais sangrenta guerra da história e na “solução final”, o genocídio friamente planejado e executado de 6 milhões de judeus. Essa lavagem de roupa suja de sangue em escala nacional acontecia em escolas, universidades, cinema, televisão, teatro, revistas e jornais, expondo feridas para tentar curá-las.
Carl Gustav Jung definiu o arquétipo da sombra como o lado sombrio da personalidade. Ninguém escapa, não somos tão bons como pensamos ser. Vale para o indivíduo, vale para nações inteiras. Algumas, como a Alemanha, procuram tornar consciente seu passado e encarar sua sombra. Outras jogam para debaixo do tapete suas mazelas, suprimindo a sombra nacional para valorizar apenas o discurso patriótico de um destino iluminado.
O país da liberdade de expressão, os Estados Unidos, por mais livre e democrático que seja, ainda sofre com a herança da escravidão: o racismo sistêmico que divide o país como uma falha geológica. Lá, alguns estados aprovaram leis que proíbem a discussão em sala de aula de temas raciais que possam causar nos alunos “sensação de desconforto, culpa, ansiedade ou alguma forma de estresse psicológico”. Em 1921, em Tulsa, Oklahoma, aconteceu o Massacre da Black Wall Street. Trinta e cinco quarteirões foram incendiados, deixando mais de uma centena de mortos por uma turba que não se conformava ao ver uma comunidade negra prosperar. Até hoje, o currículo de história em Oklahoma não cita uma das maiores chacinas com motivação racial dos Estados Unidos “para não provocar estresse, culpa ou ansiedade nos alunos”.
Eu cresci nos anos 1970 aprendendo a história de um Brasil gigante pela própria natureza. Éramos tão bons quanto queriam que fôssemos, só luz e nada de sombra. A escravidão era apenas um capítulo de um livro colorido em que as ilustrações de Debret davam a impressão de um mundo de paz e harmonia. A Guerra do Paraguai fez do Duque de Caxias um herói nacional, e 1964 era apenas uma revolução. Por mais que tenhamos avançado na busca da nossa consciência nacional, temos ainda muita coisa debaixo do nosso tapete para resgatar.
Enquanto isso, na Alemanha, que fez de tudo dentro e fora das salas de aula para confrontar os monstros de seu passado, a insanidade reaparece. Segundo Alexander Gauland, fundador do partido Alternativa para a Alemanha, “nenhum outro povo foi tão enganado sobre seu passado como o alemão. O passado deve voltar a ser do povo alemão para podermos nos orgulhar das conquistas de nossos soldados nas duas grandes guerras”. Seu partido conquistou 12,6% dos votos nas últimas eleições nacionais. Quando um povo manipula sua história, ele perde o medo de repeti-la.
Do meu lado, se me encontrarem andando de metrô por aí, estarei lendo tudo sobre escravidão, Guerra do Paraguai e continuarei tentando entender por que os militares querem tanto se meter a governar.
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