segunda-feira, 2 de março de 2020

Brasil em prece


Um campeão de desemprego

O Brasil é o campeão do desemprego entre as dez maiores economias do mundo, mesmo com a criação de vagas no trimestre encerrado em janeiro. Convém lembrar esse fato antes de festejar a melhora. A desocupação baixou de 11,6% no período de agosto a outubro para 11,2% nos meses de novembro a janeiro. Um ano antes eram 12% os desempregados. Nesse intervalo mais longo, a população desocupada encolheu para 11,9 milhões, com redução de 712 mil pessoas. Se as condições do País forem comparadas com as de um número maior de economias, ainda assim o Brasil ficará muito mal. O desemprego brasileiro é mais que o dobro da média da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Essa média ficou em 5,1%, em dezembro. Só um dos 36 sócios da organização, a Turquia, tinha situação pior que a brasileira, com desocupação superior a 13%.

Também no fim do ano, os desempregados eram 4,2% nas sete maiores economias, 6,2% na União Europeia e 7,4% na zona do euro – neste caso, por causa das altas taxas na Espanha (13,7%), na Itália (9,8%) e na França (8,4%).


Mas em qualquer desses países a condição dos desocupados é bem melhor e menos angustiante que a dos brasileiros, graças a redes de proteção social. É mais confortável também, pode-se acrescentar, e mais segura que a de muitos brasileiros com empregos precários ou ocupados por conta própria. No Brasil, nem sequer o Bolsa Família tem sido assegurada aos mais necessitados, como comprovou a fila de ingresso formada a partir de maio de 2019.

Não basta, para entender e avaliar a situação brasileira, acompanhar os números do desemprego e sua lenta redução. É preciso examinar os outros dados incluídos na Pesquisa Mensal por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua). Mesmo com alguma melhora durante um ano, as porcentagens e os números absolutos mostram um quadro desastroso.

Além de escassa, a ocupação é na maior parte insegura e de baixa qualidade. No trimestre encerrado em janeiro, 40,7% dos trabalhadores ocupados, ou 38,3 milhões de pessoas, estavam em situação de informalidade. Um ano antes eram 41%. A melhora, portanto, foi quase insignificante. O número dos subocupados por insuficiência de horas de trabalho, de 6,6 milhões, ficou estável na comparação interanual. O grupo dos desalentados, de 4,7 milhões, também ficou estável.

Somando-se os desocupados, subocupados e desalentados, chega-se a 23,2 milhões de trabalhadores. Se a cada um deles forem associadas, duas pessoas, a conta mostrará 69,6 milhões de brasileiros, cerca de um terço da população, em condições muito precárias. Na maior parte das famílias, um desempregado, desalentado ou subocupado é suficiente para complicar a situação do conjunto, já forçado a suportar más condições de moradia e serviços de saúde em geral deficientes.

A melhora lenta do mercado de trabalho reflete – e realimenta – o baixo ritmo de crescimento econômico. O governo pouco se ocupou desse problema em 2019, só estabelecendo algum incentivo ao consumo a partir de setembro. Mesmo esse pequeno incentivo produziu algum efeito positivo.

Mas a duração desses efeitos parece ter sido tão curta quanto a dos estímulos. O único impulso duradouro à atividade econômica tem sido proporcionada pelo Banco Central, com a redução de juros e de expansão dos canais de financiamento. A liberação de R$ 135 bilhões a partir de março, com a liberação de recursos bancários, poderá dar um novo empuxo às atividades.

Com o dólar caro e a vida ainda apertada, qualquer novo estímulo aos negócios dificilmente resultará, a curto prazo, em mais viagens de domésticas à Disney. Quanto a isso o ministro da Economia pode ficar tranquilo. Antes dessas viagens, maior crescimento produzirá mais impostos e ajuste mais rápido das contas públicas. Vale a pena o governo apostar nessa possibilidade.

Tropa digital

Aqueles grupos que participaram da campanha de eleição estão, ainda hoje, com a mesma energia. São pequenos grupos, mas que continuaram na mesma dinâmica de eleição. O presidente não, no outro dia, ele tem uma responsabilidade muito grande.

Ele tem que deixar a eleição e passar a governar. Mas aqueles grupos de sustentação, principalmente aqueles de caráter ideológico mais radical, continuam com a mesma dinâmica 
General Carlos Alberto dos Santos Cruz , ex-ministro-chefe da Secretaria de Governo

Demócritos e Heráclitos

Demócrito e Heráclito, dois grandes filósofos, tinham concepções diferentes sobre a condição humana. O primeiro, arrogante e zombeteiro, ridicularizava a vida e o homem. O segundo tinha compaixão pelo ser humano, aparecendo sempre com semblante entristecido e os olhos marejados.

Pois bem, nos últimos tempos, a índole de Demócrito tem baixado sobre nossas plagas, impondo posições extremadas e desferindo flechadas entre grupos. Os valores do Homem são desprezados. O clima é de emboscada. Ânimos acirrados, guerra de expressões, divisão social, resultando na expansão da distância entre território, País e Nação.

Expliquemos. O território é o porte continental que abriga belezas e riquezas naturais. Não tem alma, é um diamante bruto. Lapidado por leis, códigos, habitado por pessoas e governado por representantes legitimados pelo voto popular, o território adquire status de País.

Mas a Nação continua distante. Pois é um ente com alma, direitos, deveres e seus atributos: civismo, solidariedade, justiça, desenvolvimento, liberdade, democracia, autoridade, cultura, soberania, cidadania.

O que vemos na paisagem? Milhões de brasileiros encolhidos como conchas em rochedos entre tempestades e fu­racões. É o desemprego em massa; são doenças antigas e novas que trazem medo; é a autoridade máxima convocando o povo a atirar pedras nas instituições; são as Forças Armadas em silêncio, em vez de proclamar a crença na democracia; são xingamentos contínuos contra meios de comunicação e jornalistas.

A esperança vira um pontinho aceso nos céus.

O clima de faroeste transpira violência, com estranhas armas (empilhadeiras, por exemplo) e cowboys exibindo cartucheiras e selo de milicianos na testa. Onde já se viu motim de policiais?

E assim, a poeira tórrida do território obnubila o civismo, esse sonho que permanece na consciência dos homens de bem.

O país se entrega a Demócritos, mas a maior carência é de Heráclitos.

Quem ouviu um grito de “Viva o Congres­so”? Ora, é ali que se sustenta a democracia. Quem acha que os impostos e tributos estão diminuindo? O que se ouve é uma voz cavernosa pedindo a ressurreição de malfadada CPMF. A obsoleta legislação trabalhista até foi mudada, mas há quem a queira de volta.

A violência diminui? O Ceará parece um abatedouro de pessoas. Alguém acha que professo­res e alunos estão satisfeitos com o ensino ou com a gestão de um ministro que só azucrina com suas extravagâncias? Que felizar­do encontra uma bandeira brasileira para adquirir antes da bandeira de time de futebol? Quem acha que o PIBF – Produto Interno Bruto da Felicidade – está crescendo?

O tom do mundo, escreveu Montesquieu em Meus Pensamentos, consiste muito em falar de bagatelas como se fossem coisas sérias e de coisas sérias como se fossem bagatelas. Quantas autoridades não fazem essa inversão com pitadas de riso, embora os tempos sejam de dor e angústia? Muita gente debocha de coisas sérias da política, inclusive pessoas estreladas.

Será que o interesse comum é só uma abstração? Que saudades dos tempos em que homens e mulheres, simples nos costumes e firmes nas crenças, cultivavam a solidariedade, a benção paternal, o amor filial, o respeito aos mais velhos, a vida descomplicada que se levava com certa doçura. E hoje? Baixou o signo do medo e da amargura.
 Gaudêncio Torquato

O golpismo tem que custar caro

O presidente da República convocou seus seguidores para uma manifestação contra os outros dois Poderes da República. Em um dos cartazes do evento, fotos dos generais do governo aparecem sobre a legenda “os militares estão esperando o chamado do povo”. Outro cartaz mostra o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), sendo cozinhado como um porco. Há mais de um cartaz pedindo um novo AI-5.

O deputado federal bolsonarista Daniel Silveira (PSL), do Rio de Janeiro, disse que era melhor o Congresso obedecer aos militares (“os homens dos botões dourados”), ou eles eliminariam os comunistas utilizando métodos “menos ortodoxos do que o politicamente correto”.


Todo o núcleo bolsonarista no Parlamento trabalha pela passeata, assim como ministros do governo e a secretária da Cultura, Regina Duarte. Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) disse que, se jogarem uma bomba no Congresso, ninguém sentirá falta.

Imaginem um cartaz que dissesse “Congresso, STF, cobrem impostos dos ricos ou nossos generais vermelhos, inspirados no glorioso Marechal Zhukov, os esmagarão como esmagaram os nazistas que hoje adubam Stalingrado”. Sobre o texto, as fotos de Heleno, Villas Bôas e Mourão photoshoppados com uniformes soviéticos, talvez com um Lamarca promovido a general ali no meio para dar aquela provocada.

As Forças Armadas ficariam em silêncio se um governo de esquerda usasse essa imagem para convocar uma manifestação contra o Congresso e o STF? Suspeito que não.

Mas os extremistas no governo são de direita. Por isso, nos contentamos em dizer que a democracia venceu toda vez que ainda não tiver sido essa semana que teve golpe de estado.

É bom lembrar, o golpe não está sendo chamado para resolver qualquer impasse institucional, muito pelo contrário. Como já disse aqui, só o Congresso trabalha pela aprovação das reformas de Guedes. Trabalha enquanto os bolsonaristas se empolgam com motim de PM.

Houve reação. As principais lideranças políticas de esquerda e da direita não-fascista protestaram, toda a mídia protestou. Meu xará no STF disse o que tinha que ser dito, e as associações dos procuradores da República e dos procuradores do Trabalho soltaram uma nota importante.

Mas que preço concreto Jair Bolsonaro pagou por ter cometido esse atentado contra a democracia? Nenhum. Nada. Zero.

Não foi aberto processo de impeachment, ninguém foi cassado, ninguém foi preso. Nenhum ministro golpista caiu. Rodrigo Maia reiterou seu compromisso com a aprovação das reformas. Se se elas gerarem bons resultados econômicos, Bolsonaro vai dizer que o Congresso só trabalhou sob ameaça de golpe.

As Forças Armadas não vieram a público deixar claro que se opõem ao golpe e que, aliás, se Bolsonaro tentá-lo, quem cai é ele.

As instituições brasileiras parecem querer ensinar democracia para Bolsonaro pelo método Paulo Freire, fixando alguns limites e tentando conduzi-lo à consciência democrática por sua própria reflexão.

Tenho a impressão de que, no caso dos bolsonaristas, o próprio Freire diria que tem que apertar os moleques ou eles vão se encher de crack e tacar fogo na escola.

Se o golpismo não começar a custar caro, ele vai até o fim.
Celso Rocha de Barros

Mito e política – precisamos de uma alternativa

A política não é lógica ou ciência exata, não quer demonstrar, e sim convencer. Mais do que argumentos, busca mobilizar certos valores e sentimentos, por oposição a outros. Visando à conquista de corações e mentes, vale-se de narrativas cognitivamente simples e emocionalmente poderosas para fixar, por contraste com outras, uma certa representação discursiva da realidade presente e projetar um futuro melhor (mesmo que a promessa seja de retorno a um passado idealizado).


Compreender que a política se dá no plano da competição simbólica é especialmente importante em momentos nos quais as sociedades se sentem ameaçadas. Nesses momentos, a racionalidade ordinária e individual do eleitor, sem desaparecer, cede terreno a vastas e polarizadas emoções coletivas de medo, rancor e intolerância. Vivemos um momento assim, que, paradoxalmente, cria possibilidades de restabelecer convergência e projetar aspirações novas em torno de valores comuns.

Em artigo recente, David Brooks, colunista do New York Times, oferece explicação convincente sobre o favoritismo de Bernie Sanders nas primárias democratas e o completo domínio de Donald Trump sobre o Partido Republicano. Foram os únicos até aqui, diz ele, que produziram narrativas de caráter mítico sobre a nação americana, formulando representações simbólicas sintéticas sobre o que são e o que devem ser os Estados Unidos da América. Que sejam representações opostas mostra que a nação não é una. Nenhuma nação.

Diante das opções que não lhe agradam, Brooks pergunta: ainda poderá surgir entre os democratas uma candidatura capaz de apresentar e encarnar um relato mítico alternativo ao “socialismo” de Sanders para se contrapor ao nacionalismo xenófobo de Trump, que ele vê como o mal maior? O colunista não arrisca uma resposta. Apenas registra que nas suas andanças pelos Estados Unidos tem notado, no nível local, que a maioria das pessoas parece disposta a cooperar para resolver problemas comuns, independentemente de raça ou preferência partidária. Ainda que a observação de Brooks esteja correta, resta o imenso desafio de dar expressão política nacional concreta ao que se verifica difusamente no nível comunitário. Doze anos atrás, Obama conseguiu.

O Brasil está em outro ponto do ciclo eleitoral, mas a questão posta por Brooks se aplica muito bem à realidade brasileira. Por ora, apenas duas forças conseguiram produzir narrativas política e eleitoralmente poderosas sobre o que é e o que deve ser o Brasil. O relato mítico da nação devotada a Deus e por isso livre do mal da corrupção e da degeneração dos costumes leva vantagem sobre o relato mítico do País socialmente justo pela luta de um partido e de um líder do povo, com o povo e pelo povo. Isso porque o primeiro relato conta com os instrumentos do poder e com um presidente onipresente e o segundo está sem poder, sem dinheiro e com seu homem-mito eleitoralmente inabilitado, por problemas com a Justiça.

Para criar uma alternativa a essa dualidade, as forças de “centro”, por ora uma geleia de contornos imprecisos, não podem cair no erro da “idiotice da objetividade”, ou seja, acreditar ser possível combater poderosos relatos mítico-políticos apenas com apelos à razão, muito menos se calcados em argumentos tecnocráticos sobre propaladas ou reais virtudes administrativas. Claro que boas propostas e competência gerencial são importantes, mas de pouco valem na conquista de corações e mentes se não forem incorporadas como elementos de uma narrativa abrangente baseada em valores e sentimentos diferenciadores das opções ora dominantes.

Parte do desafio é desconstruir o relato mítico dos adversários. O bolsonarismo revela cruel falta de empatia com o sofrimento humano, intolerância com quem não se enquadra no padrão ultraconservador da moral e dos bons costumes, desprezo pelas mais elementares regras de convívio numa sociedade democrática. O petismo faz pouco do clamor por igualdade republicana perante a lei. Prefere vê-lo como produto da manipulação política, e não como resultado da democratização substantiva de uma sociedade que se cansou da impunidade dos poderosos. Rejeitando qualquer autocrítica, fecha-se sobre si mesmo e glorifica seu líder máximo.

Para construir uma perspectiva alternativa é preciso entender e sentir que o Brasil clama por decência, por igualdade de oportunidades, proteção aos mais pobres, redução da violência, cuidado com as pessoas e com a natureza. Que começa a se cansar de um clima que azeda até mesmo as relações pessoais e tira a alegria de (con)viver. O País pede uma liderança que seja firme, mas não boçal, que respeite sinceramente a religiosidade do povo, nas suas diferentes fés, mas enfrente a manipulação política da religião como instrumento de poder e enriquecimento, que tenha crença verdadeira na democracia e nos valores da igualdade e da liberdade.

Além de um candidato, é necessário produzir uma narrativa política em torno desses valores e sentimentos. Não há muito tempo a perder.

Pensamento do Dia


Nova política do capitão é feita de igrejas e militares

Aos pouquinhos, vai se delineando a "nova política" de Jair Bolsonaro. Sem partido, o presidente conseguiu o milagre de dar um conteúdo governista a todas as denominações evangélicas. Sem base congressual, encostou sua presidência nas Forças Armadas.

Bolsonaro vê igrejas como diretórios partidários, pastores como cabos eleitorais. Projeta sua imagem nacionalmente sem vincular-se a superestruturas partidárias. Dos militares, ele extrai um apoio político capaz de estabilizar seu governo.

Mal comparando, o capitão busca nas igrejas uma capilaridade nacional que outros presidentes encontraram no velho PMDB. E transfere para a seara militar o toma lá, dá cá que azeitava as relações com o Legislativo. 



Notícia publicada pela Folha neste domingo informa que, no primeiro ano de governo, Bolsonaro brindou o Ministério da Defesa com o maior reforço orçamentário. A pasta gastou R$ 6,3 bilhões acima do que estava previsto.

O governo injetou R$ 7,6 bilhões na Emgepron, uma estatal da Marinha que fabrica corvetas. Criou uma estatal militar nova, a NAV Brasil. Estima-se que terá um quadro de 13,5 mil funcionários. Além de subverterem a lógica do liberalismo privatista do ministro Paulo Guedes (Economia), os militares beliscaram mimos numa reforma previdenciária mais branda, ornamentada com invejáveis reajustes salariais.

Em duas semanas, a pasta da Economia deve anunciar um novo contingenciamento (bloqueio) de gastos. Por ordem de Bolsonaro, as verbas destinadas a programas militares ficarão imunes à tesoura.

Não é que os militares não mereçam a deferência. O problema é que, num instante em que faltam verbas até para os miseráveis do Bolsa Família e para as pesquisas científicas, o privilégio orçamentário concedido às Forças Armadas oscila entre o contrassenso e a crueldade.

País de escuridão

O país constituído, de um modo geral, de porões, subporões, carvoeiras, sótãos e despensas que não fazem frente para o sol. O país cujas pessoas são pessoas de outono, que pensam tão-somente pensamentos de outono. Cujas pessoas, ao passarem à noite nos caminhos vazios, emitem ruídos de chuva...
Ray Bradbury, "O país de outubro"

Aprendendo com o mundo animal

Aproveitei os feriados para estudar atentamente as serpentes peçonhentas. Estou convencido de que esse é um bom caminho para entendermos melhor o Brasil – não só as elites, mas grande parte da sociedade.

Em pelo menos três atributos, estou seguro de que as referidas serpentes se parecem muito conosco. O primeiro é que, como nós, elas se acham o máximo. Acreditam ter sido criadas por Deus e bonitas por natureza. E algumas são de fato maravilhosas, como as corais (a falsa e a verdadeira), com o lindo tom de vermelho de que se revestem. Devo também admitir que em certos aspectos elas têm razão. Imaginem um animal que não tem asas nem pernas e consegue percorrer grandes distâncias, só deslizando, com grande elegância.

O segundo ponto não é tão favorável a elas. Todas as serpentes venenosas se julgam poderosas, imbatíveis, inexoráveis. Aptas a estraçalhar qualquer adversário. Pensam que, sentindo fome, basta sair para um rápido passeio e... crau! Algum gaiato será servido no jantar.


Mas nesse aspecto elas se enganam redondamente. Mesmo as piores, as mais fortes, as capazes de inocular um terrível veneno em suas presas, trucidando-as, também podem ser abatidas por estas, e mesmo, vejam bem, por pequenos animais. Um engano comum e fatal é o que costuma ocorrer quando uma mamba-negra enfrenta um mangusto (moongoose em inglês, mangoustin em francês). A mamba-negra é uma das mais letais que se conhecem. Com cerca de dois metros de comprimento, é uma máquina de matar. Já o mangusto é um bichinho simpático, parecido com um cachorro de tamanho médio, com cerca de 50 a 70 centímetros de comprimento. Tem uma cauda volumosa e um focinho comprido. O que melhor o distingue, vejam só, são seus hábitos culinários. Não dispensa um pequeno roedor, mas gosta mesmo é de cobras peçonhentas – como a mamba-negra. Quando os dois se encontram, ela logo levanta a cabeça, colocando-se em posição de bote. E ele, vocês acham que conserva uns cinco metros de distância? Qual nada! Aproxima-se até meio metro e começa a provocá-la. Dá voltas em torno dela, como se estivesse dançando, vai numa direção e volta na outra, tratando de desorientá-la. Na verdade, ele está é procurando um flanco, um momento em que lhe possa desfechar uma mordida pela nuca. A certa altura, irritada e já quase exasperada, ela perde a paciência e desfere seguidos botes contra ele, errando todos. Os reflexos e a velocidade do rapaz são incríveis. Quando a mamba-negra começa a se cansar, o flanco finalmente aparece e ele a liquida com uma só mordida.

Igualmente instrutivos são os gatos selvagens, que também habitam as áreas quentes da África e da Ásia. São comuns nos desertos da Namíbia, por exemplo. Menores que os mangustos, eles são de certa forma até mais audaciosos, pois se aproximam realmente das cobras e ficam praticamente parados. O que os distingue é, como direi, um DNA de boxeador. Com as patas dianteiras, eles desferem um belo soco de cima para baixo nas serpentes e, quando elas começam a se recuperar, desferem outro com a outra pata. Depois de 10 ou 15 pancadas como essas, eles cravam os dentes na cabeça delas, certificando-se de que elas já partiram desta para melhor. Aí eles pegam o celular e ligam para a patroa, pedindo-lhe para caprichar porque o jantar vai ser supimpa.

Pois, então, aqui chegamos ao terceiro ponto, talvez o mais importante para compreendermos nossa política e nos compreendermos como sociedade. Pouca gente sabe disso, mas todas as cobras são surdas. Enxergam mal e não ouvem bulhufas. Mas como, indagará meu leitor, e a poderosa naja indiana, que dança ao som da flauta tocada pelo encantador de serpentes. Dança nada. Do som da flauta ela não faz a menor ideia. O que ela faz é acompanhar os movimentos corporais do encantador, sempre em posição de bote.

O Brasil também – talvez não todo ele, mas a maioria das elites e das camadas médias – é absolutamente surdo. Aos congressistas e aos juízes do STF, por exemplo, você pode dizer quantas vezes quiser que o Brasil precisa urgentemente de reformas muito mais drásticas do que essas que temos discutido, que acreditar em recuperação econômica se não conseguimos um crescimento do PIB de sequer 3% ao ano é pura ilusão... Os ouvidos brasilienses são como os da naja indiana, ou da mamba-negra, ou da cascavel. Iguais, incuravelmente surdos. Tente dizer-lhes que, crescendo 3% ao ano, levaremos algo como 30 anos para dobrar nossa pífia renda anual por habitante. Ou que não estamos investindo nem o mínimo necessário para manter a infraestrutura. Que não iremos a lugar algum sem uma reforma política séria e um ministro alfabetizado na Educação. E que os megaproblemas de nossa sociedade (violência, corrupção...) continuarão a se agravar enquanto não dermos uma guaribada em nosso aparelho auditivo...

Nessa hipótese, daqui a 15 ou 20 anos estaremos desprotegidos e o jeito será importar mangustos e gatos selvagens em grande quantidade.

A ameaça é ele mesmo

O vice-presidente Hamilton Mourão acertou na mosca: "Os mares não estão tranquilos porque vídeos são divulgados, redes sociais se incandescem, as pessoas, muitas vezes, não raciocinam sobre aquilo que estão escrevendo e estão discutindo, emoções são colocadas à flor da pele, e parece que nós vivemos num eterno turbilhão. E esse eterno turbilhão tem de ser superado." Mas o reconhecimento das tormentas cotidianas e a pregação conciliatória feita na sexta-feira para os empresários catarinenses deveriam ser endereçados ao seu chefe.

Os “vídeos divulgados” partiram do celular do presidente da República, que parece estar à beira de um ataque de nervos e não raciocinar sobre o que escreve. Portanto, as chances de ele colaborar para superar esse “eterno turbilhão” são mínimas. É ele quem os inicia e os insufla para, em seguida, se dizer vítima dos turbilhões que cria.

Ainda assim, o comportamento de Bolsonaro nada tem de irracional. Segue um script, não raro semelhante ao adotado pelo ex Lula, com a diferença de usar uma linguagem ainda mais tosca e agressiva.


Não inova nem na escolha dos seus inimigos mortais. Como o petista, elege os mesmos: a imprensa e os políticos. Cabe lembrar como o PT tratava jornalistas não chapas-brancas, tidos como militantes do PIG (Partido da Imprensa Golpista), porco, em inglês. Ou ainda o desacato de Lula ao Congresso de “300 picaretas”, transformados agora em chantagistas na boca do general Augusto Heleno, cujo “foda-se” virou palavra de ordem para a manifestação pró-Bolsonaro prevista para o dia 15.

A necessidade de convocar ato de apoio a Bolsonaro é intrigante. Mais ainda o fato de o presidente se envolver pessoalmente nisso. Sua atuação no WhatsApp teria se limitado, segundo disse, ao repasse dos vídeos para um grupo restrito de amigos, sob o argumento de “que o Brasil é nosso e não desses políticos de sempre”.


Mas a participação de seu governo é explicita. A atriz e futura secretária de Cultura divulgou o mesmo conteúdo no Twitter, depois apagou. Mais: segundo o jornalista Lauro Jardim, o coordenador-geral de Publicidade e Propaganda da Embratur, Silvio Santos Nascimento, é o locutor de uma das peças. Um novo turbilhão ilegal e imoral.

A pergunta óbvia é por que raios um presidente eleito por 57,7 milhões de votantes há pouco mais de um ano e com quase três anos pela frente precisa implorar apoio nas ruas? Quais fantasmas o perseguem a ponto de ele, sem ser provocado, afirmar que não vai renunciar?


Não cola a balela repetida pelo rebanho bolsonarista de que o presidente é acossado pelo Congresso. Muito menos os ridículos argumentos de barrar a “esquerda corrupta e sanguinária”, que, de acordo com o fatídico e repulsivo vídeo, está sendo enfrentada por Bolsonaro.

Ao contrário. É da Câmara e do Senado que têm vindo os principais movimentos de racionalidade frente aos turbilhões diários que Bolsonaro inventa.

Os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), tentam acalmar ânimos, mesmo cientes de que Bolsonaro joga para imputar ônus ao Parlamento e se lambuzar com os bônus. Foi assim com a reforma da Previdência. Será assim com as demais.

á a esquerda, ou o pouco que resta dela, age de forma tímida e atrapalhada. Agora mesmo, PT e cia. decidiram convocar uma contra-manifestação, fracasso anunciado, para o dia 18. Ou seja, embora os fiéis e o próprio Bolsonaro queiram fazer crer que a esquerda é o demônio encarnado, ela oferece risco zero ao presidente.

Então, por que Bolsonaro precisa das ruas de março?

Entende-se que já no radar do impeachment e no auge de sua impopularidade, quando amargava 9% de aprovação, Fernando Collor de Mello tenha se lançado de cabeça na tresloucada (má) ideia de chamar seus apoiadores às ruas. Nada que se pareça com os dias de hoje, quando a única ameaça a Bolsonaro é ele mesmo.

Talvez necessite reavivar permanentemente a figura do “escolhido”, do mito. Protegido pela “unção” ele desvia o foco de temas incômodos como o da morte do miliciano Adriano da Nóbrega. E esconde sua inabilidade e inapetência para exercer a Presidência da República, instituição que, não raro, ele insulta.

Manifestações oxigenam a democracia. A favor de A ou B, contra o C ou pelo D. Mas perdem legitimidade e ganham ilegalidade quando contrárias às instituições democráticas e patrocinadas pelo Estado. Os governos Lula e Dilma eram useiros e vezeiros em se imiscuir nas ruas. Deveriam ter sido condenados por fazê-lo. Assim como o governo do presidente Bolsonaro. Sua participação, mesmo velada, injeta mais tensão no turbilhão.
Mary Zaidan

'Eppur si muove.'

Os fatos se impõem às ideologias. Essa é a lição da história da Ciência. A Terra gira em torno do Sol, apesar das fogueiras que queimaram hereges. A Terra é redonda e o mundo é um só ainda que o obscurantismo teime em defender fronteiras como fossos medievais e maluquices como a Terra plana.

Em janeiro, o Fórum Mundial de Davos identificou como principais ameaças globais a crise climática e as pandemias. Acertaram na mosca. Nosso futuro comum.

Chega uma epidemia e com ela a realidade de um mundo global, em que um vírus sem visto ou passaporte atravessa, insuspeito, qualquer fronteira. Nenhum país, sozinho, tem como se defender do coronavírus. 



Uma instituição chamou a si a responsabilidade da gestão da crise. Dialogando com a China, ajudando os países africanos a se preparar, o que seria de nós sem a Organização Mundial da Saúde, órgão-chave da ONU, a tão criticada organização vista como inimiga pelo nacional-populismo brasileiro. 

Recentemente, o Itamaraty foi acusado pelo assessor internacional da Presidência da República de ter sido até hoje “um escritório da ONU”, supostamente submisso, até que se instalasse a insana política externa do chanceler brasileiro. 

Para nossa sorte, o ministro da Saúde vem dando provas de bom senso, seguindo os protocolos da OMS, mobilizando o sistema de saúde e a comunidade científica, além de tranquilizar a população, diariamente através da mídia. 

A pandemia se impôs, apesar da negação irresponsável do presidente dos Estados Unidos, muito mais preocupado com sua reeleição do que com a segurança da população americana. Apelar a um nacionalismo primário em tempos de crise global pode levar uma nação ao desastre. 

No Brasil, a negação da crise climática, outra ameaça global, também vem sendo desmentida pelos fatos, uma sucessão de eventos extremos dos incêndios na Amazônia às inundações em Belo Horizonte e São Paulo. E, no entanto, o governo, orgulhoso de sua abissal ignorância, persiste em atacar o conhecimento e a verdade. "Eppur si muove..".