sábado, 5 de julho de 2025

Pensamento do Dia

 


O discurso dos grandes ditadores

Sim, quero ser imperador, cacique, líder supremo, dono do mundo, do pedaço, da parte que — por voto, concurso ou apadrinhamento — me cabe neste latifúndio.

Quero ser tratado por Meritíssimo, Excelência, Vossa Senhoria. É meu ofício: governar, legislar, fazer cumprir as leis — em causa própria, e, bem sabeis, a meu bel-prazer. Quero ajudar os meus — e que se danem ucranianos, ianomâmis e aposentados, contribuintes, motoristas de aplicativo e judeus. Prendei os que vandalizam palácios e ignorai os que deixam ruir igrejas, arder museus. Quero que negros odeiem brancos, pobres se insurjam contra ricos — e eu, rico e branco, fomentador de antagonismos e mestre em demonizar o diálogo, seja reverenciado como um deus.

Eu degusto lagosta à vossa custa, enquanto em 21,6 milhões de lares, em “insegurança alimentar”, comeis o pão que o diabo amassou. Eu presenteio lenços e gravatas de seda com o que retiro, compulsoriamente, do bolso onde mal tendes o suficiente para vos agasalhar.

Com o suor do vosso rosto, bobinhas, eu pago maquiadores que me mantêm a pele clara e imaculada para que eu possa defender vossa dignidade e vossas necessidades com meu afronte e minha bolsa (três anos e meio de Bolsa Família, uma pechincha) e denunciar o avanço da extrema direita —em Paris.

Eu liberto réus confessos, anulo condenações justas, perdoo multas bilionárias. Trabalhais oito horas por dia, seis dias por semana, 11 meses por ano para que pinguem o mínimo na vossa conta — eu tenho 60 dias de descanso remunerado, horário flexível, encho de penduricalhos meu supersalário (os pagamentos acima do teto constitucional passaram de R$ 10 bilhões em 2024) — e processo quem divulgar as remunerações ilegais.

Eu gasto muito e mal; e vos empurro goela abaixo mais e mais impostos e mordomias e má gestão. Visito ex-presidente presa por corrupção e mando buscar, em jatinho da FAB (bancado por vós, que íeis andar de avião e jamais decolastes), a ex-primeira-dama condenada à prisão por lavagem de dinheiro. Apoio agressores e ditaduras, corruptos e tiranias — mas me outorgo autoridade moral de defensor da paz, da ética e das minorias.

Acho que 513 deputados são pouco, que é pouco gastar mais de R$ 24 milhões por ano com cada um e voto por elevar esse número para 531. Quero mais fundo eleitoral e mais emendas parlamentares e menos transparência e mais privilégios. Com vossos recursos, eu pago meus procedimentos estéticos, meus jantares superfaturados e asfalto as ruas do meu condomínio de luxo.

Por isso, vos peço: lutai pela censura, pelo controle dos meios de comunicação, por mais taxação; pela anistia aos que tentaram golpear a democracia, pelos que a corroem por dentro simulando defendê-la. Afinal, quem sois vós na fila do pão? Uma das 196 mulheres violentadas por dia. Uma vítima de feminicídio a cada seis horas. Um dos 35.365 que sofreram morte violenta em 2024. Um dos 3,9 milhões de pedintes esperando Godot nos guichês do INSS. Um dos 59 milhões de incapazes de atender às próprias necessidades básicas de sobrevivência.

Não sois cidadãos: 213 milhões de pequenos tiranos é que sois. Segui, pois, odiando-vos uns aos outros — e ignorando que todo poder emana de vós, e em vosso nome deveria ser exercido.
Eduardo Affonso

Tempos de profetas e charlatães

Hoje, numa época em que se misturam todos os discursos, em que profetas e charlatães usam as mesmas fórmulas com mínimas diferenças, cujo percurso nenhum homem ocupado tem tempo de seguir, num tempo em que as redações dos jornais são constantemente incomodadas por gente que acha que é um gênio, é muito difícil ajuizar do valor de um homem ou de uma ideia. Temos de nos deixar guiar pelo ouvido para podermos perceber se os rumores, os sussurros e o raspar de pés diante da porta da redação são suficientemente fortes para poderem ser admitidos como voz da polis. A partir desse momento, porém, o gênio passa a outra condição. Deixa de ser matéria fútil da crítica literária ou teatral, cujas contradições os leitores que qualquer jornal deseja ter levam tão pouco a sério como a tagarelice de uma criança, para aceder ao estatuto de fatos concretos, com todas as consequências que isso tem.

Certos fanáticos insensatos ignoram a necessidade desesperada de idealismo que se esconde por detrás de tal situação. O mundo dos que escrevem porque têm de escrever está cheio de grandes palavras e conceitos que perderam a substância.

Os atributos dos grandes homens e das grandes causas sobrevivem ao que quer que seja que lhes deu origem, e é por isso que sobram sempre muitos atributos. Foram criados um dia por algum homem importante para outro homem importante, mas esses homens há muito que morreram, e os conceitos que lhes sobreviveram têm de ser utilizados. Por isso andamos sempre à procura do homem certo para um determinado adjetivo. A "portentosa plenitude" de Shakespeare, a "universalidade" de Goethe, a "profundidade psicológica" de Dostoievski e muitas outras imagens que uma longa tradição literária deixou atrás de si andam às centenas nas cabeças dos que escrevem, e essa sobrelotação de reservas leva-os a dizer hoje que um estratega do tênis é "insondável" ou um poeta em moda "grandioso". É compreensível que se sintam gratos quando conseguem aplicar sem desperdício a sua reserva de palavras. Mas terá sempre de se tratar de um homem cuja importância já é um fato aceite, de maneira a que se compreenda como as palavras se ajustam bem a ele, ainda que não se diga exatamente a que qualidades. 
Robert Musil, "O Homem sem Qualidades"

Sociedade de massa e financismo

A tendência marcante do nosso tempo é a crescente submissão da política aos ditames dos mercados financeiros. Não se trata do poder dos operadores, aqueles que se empenham na busca do melhor resultado. Em suas opiniões econômicas, esses funcionários da finança exprimem os consensos impessoais que os submetem aos mandamentos da sociedade de massa. Não são agentes racionais, mas escravos das concepções que os dominam.

Em delírio subpositivista, um economista do mainstream sugeriu que as narrativas (ideologias?) não podem desmentir os fatos, como se os “fatos” da vida social não fossem inseparáveis das narrativas sobre eles. Desgraçadamente para a matilha de cães raivosos que emitem latidos na economia, os humanos formulam narrativas para configurar a “realidade”. Escravos da linguagem, os bípedes falantes estão sempre diante de uma disputa de narrativas, significados, até quando escolhem instrumentos de comprovação empírica dos fatos que pretendem narrar.


Os consensos dos mercados deploram o peso excessivo do Estado munificente e investem contra as tentativas de disciplinar as forças simultaneamente criadoras e destrutivas do capitalismo. A ação do Estado, particularmente sua prerrogativa fiscal, tem sido contestada pelo intenso processo de homogeneização ideológica de celebração do orçamento equilibrado. As massas enriquecidas contestam qualquer interferência no processo de diferenciação da riqueza e da renda.

A visão coletiva que subordina a decantada racionalidade dos servos das finanças afirma e reafirma a irracionalidade das transferências fiscais e previdenciárias, ao mesmo tempo que ordena restrições à capacidade impositiva e de endividamento do setor público. Isso porque é imperioso tornar mais livre o espaço de circulação da riqueza e da renda dos mais abonados.

A ação do Estado é vista como contraproducente pelos bem-sucedidos e integrados, mas como insuficiente pelos desmobilizados e desprotegidos. As duas percepções convergem na direção da “deslegitimação” do poder administrativo e na desvalorização da política. A resposta esperançosa às incertezas do futuro depende da capacidade de mobilização democrática e radical dos deserdados, os perdedores na liça da concorrência. Desgraçadamente, os espaços de informação e de formação da consciência política e coletiva são ocupados por aparatos comprometidos com a força dos mais fortes e controlados pela hegemonia das banalidades.

Um exemplo de procedimentos duvidosos está na ideia de superávit fiscal estrutural que trata de eliminar os efeitos do ciclo econômico nas receitas do governo. Nesse procedimento estão embutidas ideias peregrinas. Nas catacumbas do pensamento mercadista esconde-se o conceito de equilíbrio. Esse conceito dominante na teoria econômica obscurece a compreensão do capitalismo como economia monetário-financeira em permanente movimento.

Por rádio, televisão e jornal a população é “informada” que precisa se sacrificar, aceitar cortes nos gastos sociais e menos direitos e benefícios trabalhistas, ou encarar a destruição da economia, tudo em nome da ciência econômica. Diante dessa configuração, a esfera pública e democrática sucumbe descaradamente à degradação dos Parlamentos. No Brasil de 2025, o Legislativo está contaminado pela peste dos interesses abrigados nas emendas parlamentares, para não falar das vergonhas do orçamento secreto. Esses processos visíveis e simultâneos de crescente putrefação do “público” e de celebração do “privado” decorrem da sociabilidade peculiar imposta pelo movimento “invisível” da mão que guia o curso dos mercados.

Para o cidadão afetado, parece inteiramente fantástica a ideia de controlar as causas desses golpes do destino. As erráticas e aparentemente inexplicáveis convulsões das Bolsas de Valores ou as misteriosas evoluções dos preços dos ativos e das moedas são capazes de destruir suas condições de vida. Mas o consenso dominante trata de explicar que se não for assim sua vida pode piorar ainda mais.

A formação desse consenso é, em si, um método eficaz de bloquear o imaginário social, comprovação dolorosa das agruras que martirizam as criaturas da história humana. As forças impessoais adquirem dinâmicas próprias e passam a constranger a liberdade de homens e mulheres.

A boa sociedade deve tornar livres os seus integrantes, não apenas de um ponto de vista negativo, no sentido de não serem coagidos a fazer o que não fariam por espontânea vontade, mas positivamente livres, no sentido de serem capazes de fazer algo da própria liberdade. Isto significa, primordialmente, o poder de influenciar as condições da própria existência, dar um significado para o bem comum e fazer as instituições sociais funcionarem adequadamente. 

Blowin’ in the wind

Uma amiga me perguntou se eu sempre me entendi antissionista. Respondi: “Nunca fui sionista e, em algum momento, me transformei em antissionista (cada vez mais radical). Fiz o ensino fundamental em colégio judaico no Bom Retiro (Renascença). A certa altura, me dei conta do sionismo e de que os judeus deveriam ir para Israel, a Terra Prometida. Então pensei comigo mesmo, ‘Nossa! Eu então aqui sou o rei, porque nasci lá’ (eu sempre acho que sou o rei da cocada preta… até cair do cavalo).

“Ingressei no ensino médio em colégio público (o Estadual do Parque D. Pedro II), em plena ‘guerra triunfal’ de Israel em 1967, e foi lá que ouvi as primeiras alusões antissionistas. Em 1968, comecei a militar na Polop e me posicionava a favor do povo palestino.

“Em 2012, depois que meus pais deixaram este mundo, comecei a escrever as suas memórias do Holocausto… e foi assim que eu caí do cavalo. Descobri que eu não era o rei porque nasci na Terra Prometida, eu, na verdade, era um traidor. 

“Em Returnees, consta ‘Haim Yahil, do Ministério das Relações Exteriores de Israel, que estava na Alemanha trabalhando no Acordo de Reparações, disse que os judeus brasileiros, ao invés de imigrarem para Israel, manifestavam o seu sionismo sendo hostis aos returnees.’”

Minha amiga, que não é judia, respondeu: “Acho que a queda é um mito que nem todos têm a sorte de viver. Minha queda desse cavalo – eu cresci entre sionistas de esquerda, centro e direita – veio bem mais tarde, em 2019, e levou uns anos até se consolidar em 2023. Fico chocada como são poucos os que se atrevem a cair desse cavalo.”

Outro amigo, este de ascendência judia, que acompanhava de perto a minha trajetória antissionista, ao ler o artigo A violência dos sionistas, postado após o 7 de outubro de 2023, escreveu em 22 de novembro do mesmo ano: “Não posso concordar com um artigo que começa com a frase ‘A violência dos sionistas em relação aos palestinos não começou em 7 de outubro de 2023…’ Não concordo com o inteiro teor do texto, ou seja, com a seleção de fatos e argumentos que se encaixam teleologicamente na concepção do autor. Com a omissão, por exemplo, do fato de que centenas de milhares de judeus foram expulsos de países árabes do Oriente Médio e do Magreb depois da vitória de Israel na guerra de 1948. Não concordo especialmente com o final do texto, que usa como recurso retórico a posição alucinada de judeus fundamentalistas que são contra a existência de Israel porque acreditam que tal advento só poderia ocorrer com a chegada de um suposto messias. Aí já se ingressa no terreno do aluamento. Vai quem quiser. Eu, não. Espero que você reconheça o direito à divergência. Saudações.” 

Três meses depois, o mesmo amigo me encaminhou um email com o título “Crise”: “Teu relato sobre os returnees foi um primeiro sinal de que havia alguma (ou muita) coisa errada com Israel. Hoje digo para você que estou horrorizado não apenas com o governo israelense e a maioria que o levou ao poder, não apenas com a trajetória histórica do Estado de Israel, não apenas com os setores fascistas, reacionários e todo tipo de picaretas da Diáspora, mas com a própria imagem da judeidade formada na minha cabeça ao longo de mais de 70 anos. Como você pode imaginar, Israel, na minha infância, adolescência, juventude, idade madura e bem depois era uma entidade acima das críticas que poderiam ser feitas a certos aspectos daquela sociedade. Acho que funcionava assim para a maioria dos judeus fora de Israel. Tudo isso desabou em semanas. Compreendo melhor, agora, as tuas posições. Deixou de existir a imagem de um conjunto de valores morais pelos quais supostamente se guiariam os filhos do ‘povo eleito’. Era uma premissa entranhada que alimentei (ou com que fui alimentado) década após década, apesar dos pesares e mesmo reconhecendo os direitos dos palestinos. Nunca imaginei me ver num contexto tão adverso. Acho que só existe saída na luta pela paz, que ainda estará engatinhando, se tanto, quando nós tivermos morrido. Mas não vejo outro caminho. Sem isso só restará amargura e, no limite, desespero. Abração.”

Quantas mortes serão necessárias até que se saiba que muitas pessoas já morreram?

Quantos anos pode um povo existir até que permitam que ele seja livre?

The answer, my friend, is blowin’ in the wind.
Samuel Kilsztajn

Congresso “chora” com onda de críticas e ganha defesa de 7 minutos

Com a crise política entre Congresso e Governo – por mais que neguem, ela existe – tomando conta do noticiário nos últimos dias e tendo uma participação ativa da população no debate, não deveria ser surpresa para ninguém a onda de memes criticando o Legislativo, principalmente na figura do atual presidente da Câmara, Hugo Motta.

Até aí, tudo como sempre foi desde que o debate começou a existir nas redes sociais. Mas as críticas incomodaram – e todos sabemos que, meme é igual apelido: quando o alvo não gosta, aí que pega. Falando nisso, as sátiras ganharam mais força ainda após reportagem no Jornal Nacional com ilustres 7 minutos de duração.


Não é possível comparar o espírito constante das eleições brasileiras, o bom humor como crítica, às campanhas de desinformação de cunho golpista, com ataques agressivos às instituições. Desde a época do impresso, a indignação do cidadão é expressada desse jeito “moleque” – no bom sentido – como uma forma de atingir mais pessoas e se fazer ouvido pelo Poder.

“Esses coronéis não querem pressão, eles querem proteger seus privilégios, impedir avanços sociais, sem dar satisfação ao povo, sem pressão política em cima deles. Em hipótese alguma nós podemos aceitar isso”, disse o deputado Pastor Henrique Vieira (PSOL/RJ) em sua rede social.

A verdade é que a boa criatividade do eleitor brasileiro na forma de conteúdos humorísticos que denunciam uma atuação de um parlamentar ou figura pública sempre foi e deveria ser hoje muito bem-vinda: é o que mede a temperatura da população, o desgaste político e, portanto, os rumos do país. O personagem criado para Motta, “Hugo Nem se Importa”, fala sobre a defesa de medidas que beneficiam a parcela mais rica, privilegiada da sociedade brasileira – a partir da derrubada do IOF após quebrar acordo feito com o Governo. Uma campanha que nasceu de forma orgânica através de internautas que empolgaram a militância da esquerda.

Salvo engano, Hugo Motta não gostou nadinha, se sentiu responsabilizado pela derrota do governo e ganhou uma matéria no Jornal Nacional em sua defesa, com termos como “risco à democracia” e “agressões”. O governo Lula chegou a precisar declarar que não foi um movimento engatilhado por eles e toda sorte de acusação foi levantada contra os criadores da “campanha Congresso da Mamata”.

“É só um bando de chantagista querendo mais grana. E aí, quando faz um ‘meme do mamateiro’, vão lá dizer que isso é um ataque antidemocrático, um ataque à política. Isso é ridículo, ataque à política é você sequestrar o Orçamento, é você acabar com o presidencialismo. Isso sim é um ataque à Democracia”, diz Guga Noblat.