segunda-feira, 11 de agosto de 2025
Apóstolos da mentira: quando a política trai a verdade
A carta dos 50%, enviada por Donald Trump com ataques insidiosos ao Brasil, acusando nosso país de ser “contra as eleições livres” e “os direitos fundamentais de liberdade de expressão dos americanos”, seria apenas risível e ridícula se não fosse tão eivada de mentiras óbvias e de falta de educação e compostura diplomática. Verdade que, em matéria de desatinos, nada mais vindo do atual presidente norte-americano chega a surpreender. O que surpreende e espanta, em vez disso, é que políticos brasileiros da atual oposição entrem no barco furado das vendetas e notícias falsas trumpianas e façam declarações explícitas de apoio a essa missiva que mais parece ter sido escrita por um transtornado psíquico. Tarcísio, governador de São Paulo, é um dos que se juntaram ao coro dos atuais aprendizes de ditador em curso e acusaram Lula de ser o responsável pela ira funesta do colega Trump. Caro Lula, a mentira faz escola. O Evangelho dos Apóstolos da Mentira tem muitos seguidores, no Brasil e no mundo.
Vivemos uma era de crise da verdade. Em vez de serem líderes comprometidos com o bem comum, muitos políticos atuais se tornaram verdadeiros apóstolos da mentira - não apenas mentirosos ocasionais, mas missionários da falsidade, que constroem sua influência com base na manipulação sistemática da realidade.
A metáfora é dura, mas precisa. Um apóstolo, no sentido original, é alguém que propaga uma doutrina com fervor e convicção. No caso desses políticos, a doutrina é a mentira. Não uma mentira qualquer, mas aquela que se transforma em ideologia, em instrumento de mobilização de massas e até em alicerce de governos inteiros.
A mentira como método - O fenômeno é global. Nos Estados Unidos, Donald Trump - que da mentira sistemática não se sabe se é apóstolo ou Papa - construiu um império político sobre a negação da realidade: das “fake news” à “grande mentira” sobre as eleições de 2020, sua estratégia foi sempre semear desconfiança e alimentar conspirações. Sua tática de base é a “Big Lie”, repetir a mentira até que pareça verdade.
No Brasil, Jair Bolsonaro zombou da ciência, disseminou desinformação sobre vacinas e inventou versões paralelas da história nacional, tudo com o objetivo de manter sua base em permanente estado de alerta e fidelidade. Sua tática principal é a desinformação via redes sociais e lives semanais com conteúdo manipulado.
O mesmo se vê na Rússia de Vladimir Putin, onde a falsificação do passado soviético e a distorção da realidade da guerra na Ucrânia sustentam uma política autoritária e belicista. A verdade, nesses regimes, é tratada como inimiga. Putin usa a mentira como arma de guerra. Tática principal: Criação de uma realidade paralela via controle da mídia estatal.
Na Turquia temos Recep Tayyip Erdogan, cujas mentiras mais marcantes são a negação de repressão a jornalistas e opositores, bem como a manipulação reiterada de dados econômicos e eleitorais. Os efeitos não poderiam ser outros: Fragilização da democracia turca, prisões políticas, censura. A tática principal de Erdogan: misturar até a exaustão nacionalismo, religião e censura, e criar ações para sustentar narrativas.
E não podemos deixar de lado, entre os principais apóstolos atuais da mentira (eles são muitos!), Benjamin Netanyahu (Israel). Suas mentiras mais marcantes: Minimiza ou nega a dimensão das violações de direitos humanos em Gaza; distorce fatos históricos e jurídicos sobre os palestinos. Efeitos: Escalada, até as raias do genocídio, do conflito com os palestinos; crescente isolamento diplomático. Tática principal: Uso de medo e nacionalismo para justificar ações militares controversas.
Esses líderes utilizam o que o pensador político Jason Stanley chamou de "propaganda autoritária": uma combinação de medo, ressentimento, distorção e culto à personalidade, que torna as pessoas não apenas desinformadas, mas incapazes de distinguir o verdadeiro do falso. Uma sociedade assim está à mercê de qualquer narrativa conveniente ao poder.
Uma mentira com seguidores – Mas estejamos atentos: Não é só o político que mente. É o sistema que absorve a mentira como parte de seu funcionamento. São redes sociais inundadas de fake news. É a mídia conivente ou intimidada. São instituições enfraquecidas pela constante erosão da confiança pública.
Mas talvez o aspecto mais inquietante seja a fidelização dos seguidores. Esses “apóstolos” da mentira conseguem o que muitos líderes sempre desejaram: uma base que não apenas os apoia, mas que acredita cegamente neles - mesmo quando a realidade os desmente. A mentira torna-se um dogma. Quem a contesta é tratado como inimigo, traidor ou “anti-Deus”.
Por que isso importa? - Porque quando a mentira se institucionaliza, a democracia adoece. O debate público se torna tóxico. A confiança entre cidadãos se dissolve. E o futuro passa a ser construído sobre areia movediça. A verdade não é apenas um valor moral - é uma condição para a convivência civilizada.
Vivemos uma era de crise da verdade. Em vez de serem líderes comprometidos com o bem comum, muitos políticos atuais se tornaram verdadeiros apóstolos da mentira - não apenas mentirosos ocasionais, mas missionários da falsidade, que constroem sua influência com base na manipulação sistemática da realidade.
A metáfora é dura, mas precisa. Um apóstolo, no sentido original, é alguém que propaga uma doutrina com fervor e convicção. No caso desses políticos, a doutrina é a mentira. Não uma mentira qualquer, mas aquela que se transforma em ideologia, em instrumento de mobilização de massas e até em alicerce de governos inteiros.
A mentira como método - O fenômeno é global. Nos Estados Unidos, Donald Trump - que da mentira sistemática não se sabe se é apóstolo ou Papa - construiu um império político sobre a negação da realidade: das “fake news” à “grande mentira” sobre as eleições de 2020, sua estratégia foi sempre semear desconfiança e alimentar conspirações. Sua tática de base é a “Big Lie”, repetir a mentira até que pareça verdade.
No Brasil, Jair Bolsonaro zombou da ciência, disseminou desinformação sobre vacinas e inventou versões paralelas da história nacional, tudo com o objetivo de manter sua base em permanente estado de alerta e fidelidade. Sua tática principal é a desinformação via redes sociais e lives semanais com conteúdo manipulado.
O mesmo se vê na Rússia de Vladimir Putin, onde a falsificação do passado soviético e a distorção da realidade da guerra na Ucrânia sustentam uma política autoritária e belicista. A verdade, nesses regimes, é tratada como inimiga. Putin usa a mentira como arma de guerra. Tática principal: Criação de uma realidade paralela via controle da mídia estatal.
Na Turquia temos Recep Tayyip Erdogan, cujas mentiras mais marcantes são a negação de repressão a jornalistas e opositores, bem como a manipulação reiterada de dados econômicos e eleitorais. Os efeitos não poderiam ser outros: Fragilização da democracia turca, prisões políticas, censura. A tática principal de Erdogan: misturar até a exaustão nacionalismo, religião e censura, e criar ações para sustentar narrativas.
E não podemos deixar de lado, entre os principais apóstolos atuais da mentira (eles são muitos!), Benjamin Netanyahu (Israel). Suas mentiras mais marcantes: Minimiza ou nega a dimensão das violações de direitos humanos em Gaza; distorce fatos históricos e jurídicos sobre os palestinos. Efeitos: Escalada, até as raias do genocídio, do conflito com os palestinos; crescente isolamento diplomático. Tática principal: Uso de medo e nacionalismo para justificar ações militares controversas.
Esses líderes utilizam o que o pensador político Jason Stanley chamou de "propaganda autoritária": uma combinação de medo, ressentimento, distorção e culto à personalidade, que torna as pessoas não apenas desinformadas, mas incapazes de distinguir o verdadeiro do falso. Uma sociedade assim está à mercê de qualquer narrativa conveniente ao poder.
Uma mentira com seguidores – Mas estejamos atentos: Não é só o político que mente. É o sistema que absorve a mentira como parte de seu funcionamento. São redes sociais inundadas de fake news. É a mídia conivente ou intimidada. São instituições enfraquecidas pela constante erosão da confiança pública.
Mas talvez o aspecto mais inquietante seja a fidelização dos seguidores. Esses “apóstolos” da mentira conseguem o que muitos líderes sempre desejaram: uma base que não apenas os apoia, mas que acredita cegamente neles - mesmo quando a realidade os desmente. A mentira torna-se um dogma. Quem a contesta é tratado como inimigo, traidor ou “anti-Deus”.
Por que isso importa? - Porque quando a mentira se institucionaliza, a democracia adoece. O debate público se torna tóxico. A confiança entre cidadãos se dissolve. E o futuro passa a ser construído sobre areia movediça. A verdade não é apenas um valor moral - é uma condição para a convivência civilizada.
Para Bolsonaro, salvar a pele equivale a desmontar instituições
Outro dia ouvi que o único erro de Eduardo Bolsonaro foi não ter pedido a Trump para deixar de fora o nome de sua família na punição ao Brasil. Tudo bem que taxista não conta, mas é mau sinal que a esta altura chamar os Bolsonaro de câncer, neoplasia social, soe pueril e inócuo, como me dei conta ao responder. Segundo pesquisa do Datafolha, 46% dos brasileiros são contra a condenação do ex-presidente.
Contra a Justiça brasileira, Bolsonaro diz que só obedece à lei de Deus —o seu, é claro, como sempre. Vale-se da versatilidade da escusa que lhe permitiu cometer atos gravíssimos aos olhos de qualquer deus, incluindo o que ele costuma chamar de seu, para seguir bravateando como se não fosse réu.
Na hipótese benigna (para ficar na metáfora médica), os Bolsonaro seriam apenas uma trupe de meliantes comandados por um arruaceiro irresponsável, que encenaram o maior engodo no qual este país já caiu, a esparrela do "Brasil é o meu partido", desmascarada por eles mesmos, com as cores da bandeira americana, no jogo arriscado e inepto de sua sobrevivência. O difícil é entender como alguém em condições cognitivas normais —e de índole autodeclarada patriótica— pode continuar acreditando nisso se não for de má-fé.
A explicação é também um alívio, já que aponta para o caso americano. Não somos os únicos idiotas. Tentando se equilibrar nas cordas de um escândalo insuflado pelos próprios correligionários, Trump nega a existência da lista que prometera revelar, se eleito, com o nome dos clientes de um esquema de pedofilia comandado por Jeffrey Epstein, que teria se suicidado na prisão, esperando julgamento.
Uma legião de eleitores inflamados do Maga conta com a lista para confirmar suas teorias conspiratórias sobre crimes hediondos cometidos pela elite liberal, democratas e afins, almas corrompidas do sistema demoníaco, sem atinar para o fato de Trump (que, eleito, passou a atribuir a invenção da lista a um embuste da oposição) ser ele próprio um predador sexual, ex-amigo íntimo de Epstein.
Para chegar ao poder e aí se manter, a extrema direita precisa inverter o sentido das coisas e das palavras, na maior cara de pau. Aqui, chama de corajoso o malandro que chora como vítima quando é pego em flagrante, foge assim que possível e depois ri à socapa só de pensar no próximo golpe.
Em nome da democracia e do mundo livre, hoje o país da liberdade de expressão persegue universidades, prende, processa e/ou deporta indivíduos cujas ideias não correspondem aos interesses do projeto autocrático (a começar por estudantes acusados de antissemitismo por denunciar o escândalo do genocídio promovido por Israel em Gaza). E ainda taxa de ditatoriais os países que tentam resistir, pela lei, à imposição de regras comerciais arbitrárias, no vácuo do desmanche estratégico dos órgãos jurídicos multilaterais.
Não é nenhuma surpresa que os Bolsonaro incorporem o discurso invertido (de que a liberdade é um mundo sem justiça e sem lei) em benefício próprio e em detrimento do país. Para eles, salvar a pele equivale a desmontar as instituições. Corresponde ao histórico e ao entendimento de mundo de um homem cuja vida pública começou, ainda no Exército, com um plano de atentado a bomba para aumentar seu salário.
O que não faz sentido é que a inversão tenha escancarado a porteira do oportunismo (ou da metástase), a ponto de levar políticos e cidadãos a abraçar os interesses imperialistas e predatórios de uma autocracia estrangeira. Nos Estados Unidos, Eduardo Bolsonaro estaria sujeito às penas cabíveis por traição.
Em meio à ferocidade de uma guerra financeira e tecnológica, em breve talvez também física, cujo horizonte é o controle da inteligência artificial e da indústria bélica de última geração, dependentes de minérios de que o país dispõe, ninguém precisa de gente sem estratégia política e visão de futuro, vestindo a camisa ou o boné do adversário na mesa de negociação.
Contra a Justiça brasileira, Bolsonaro diz que só obedece à lei de Deus —o seu, é claro, como sempre. Vale-se da versatilidade da escusa que lhe permitiu cometer atos gravíssimos aos olhos de qualquer deus, incluindo o que ele costuma chamar de seu, para seguir bravateando como se não fosse réu.
Na hipótese benigna (para ficar na metáfora médica), os Bolsonaro seriam apenas uma trupe de meliantes comandados por um arruaceiro irresponsável, que encenaram o maior engodo no qual este país já caiu, a esparrela do "Brasil é o meu partido", desmascarada por eles mesmos, com as cores da bandeira americana, no jogo arriscado e inepto de sua sobrevivência. O difícil é entender como alguém em condições cognitivas normais —e de índole autodeclarada patriótica— pode continuar acreditando nisso se não for de má-fé.
A explicação é também um alívio, já que aponta para o caso americano. Não somos os únicos idiotas. Tentando se equilibrar nas cordas de um escândalo insuflado pelos próprios correligionários, Trump nega a existência da lista que prometera revelar, se eleito, com o nome dos clientes de um esquema de pedofilia comandado por Jeffrey Epstein, que teria se suicidado na prisão, esperando julgamento.
Uma legião de eleitores inflamados do Maga conta com a lista para confirmar suas teorias conspiratórias sobre crimes hediondos cometidos pela elite liberal, democratas e afins, almas corrompidas do sistema demoníaco, sem atinar para o fato de Trump (que, eleito, passou a atribuir a invenção da lista a um embuste da oposição) ser ele próprio um predador sexual, ex-amigo íntimo de Epstein.
Para chegar ao poder e aí se manter, a extrema direita precisa inverter o sentido das coisas e das palavras, na maior cara de pau. Aqui, chama de corajoso o malandro que chora como vítima quando é pego em flagrante, foge assim que possível e depois ri à socapa só de pensar no próximo golpe.
Em nome da democracia e do mundo livre, hoje o país da liberdade de expressão persegue universidades, prende, processa e/ou deporta indivíduos cujas ideias não correspondem aos interesses do projeto autocrático (a começar por estudantes acusados de antissemitismo por denunciar o escândalo do genocídio promovido por Israel em Gaza). E ainda taxa de ditatoriais os países que tentam resistir, pela lei, à imposição de regras comerciais arbitrárias, no vácuo do desmanche estratégico dos órgãos jurídicos multilaterais.
Não é nenhuma surpresa que os Bolsonaro incorporem o discurso invertido (de que a liberdade é um mundo sem justiça e sem lei) em benefício próprio e em detrimento do país. Para eles, salvar a pele equivale a desmontar as instituições. Corresponde ao histórico e ao entendimento de mundo de um homem cuja vida pública começou, ainda no Exército, com um plano de atentado a bomba para aumentar seu salário.
O que não faz sentido é que a inversão tenha escancarado a porteira do oportunismo (ou da metástase), a ponto de levar políticos e cidadãos a abraçar os interesses imperialistas e predatórios de uma autocracia estrangeira. Nos Estados Unidos, Eduardo Bolsonaro estaria sujeito às penas cabíveis por traição.
Em meio à ferocidade de uma guerra financeira e tecnológica, em breve talvez também física, cujo horizonte é o controle da inteligência artificial e da indústria bélica de última geração, dependentes de minérios de que o país dispõe, ninguém precisa de gente sem estratégia política e visão de futuro, vestindo a camisa ou o boné do adversário na mesa de negociação.
Todos seremos vencidos
O escalar da retórica nuclear entre Washington e Moscovo, registada nos últimos dias, não pode ser visto apenas como uma forma de Trump e Putin assinalarem a passagem dos 80 anos das bombas despejadas em Hiroxima e Nagasaki. E, apesar de toda a preocupação que possa gerar, também não convém não levar as ameaças muito a sério. No fundo, aquilo a que estamos a assistir é a um certo cheirinho a Guerra Fria, embora com uma diferença fundamental: desta vez, os dois líderes não defendem ideologias opostas e têm até imensas semelhanças na forma como silenciam os opositores, fazem pressão sobre os adversários e utilizam todos os meios ao seu alcance para fortalecer o poder pessoal, apenas permitindo seguidores fiéis à sua volta.
Este escalar de ameaças é, antes, o sintoma de algo mais vasto: o poder crescente dos chamados “homens-fortes”. É até a consolidação do “triunfo dos brutos” que, há cerca de uma década, tem marcado a política internacional: o poder a ser exercido por homens que concentram a autoridade, cultivam a imagem de força pessoal e recorrem, sem qualquer tipo de pudor, à ameaça como arma principal.
Com Donald Trump nos comandos da Casa Branca e com o dedo afiado nas suas redes sociais, este estilo tem ganhado cada vez maior preponderância e novos imitadores. E, aos poucos, vai arrastando o mundo para um clima de confronto permanente, sempre a apelar ao uso da força e que, inexoravelmente, destrói muitos dos valores e princípios que, durante algum tempo, pensámos que deveriam pautar o debate político e os relacionamentos internacionais entre Estados.
No estado atual do mundo, parece já não interessar quem tem razão, mas sim quem tem mais força. E, especialmente, quem ameaça com maior intensidade, como se tudo lhe fosse permitido e nada tem a perder. A diplomacia internacional, nos temas principais, foi substituída por jogos de força, por sanções, por guerras comerciais e, quando a ocasião o justifica, por ameaças militares abertas.
Parece que estamos a caminhar sempre em direção a um confronto iminente e explosivo que, como nos filmes de aventura, é evitado à última hora. Aqui, não por um herói improvável, mas sempre pela ação de um “homem-forte”, com o seu inevitável discurso nacionalista e que promete sonhos de grandeza aos seus compatriotas. Temos visto, em tantos casos, que nada disso é verdade. Só que é a perceção que eles tentam criar. E, já ninguém tem dúvidas, todos sabemos que vivemos hoje num mundo dominado mais pelas perceções do que pela análise fria, metódica e transparente da realidade.
Esta emergência do poder dos “brutos” constitui a maior ameaça ao desenvolvimento saudável da Humanidade, à defesa dos direitos humanos e aos valores que permitam a liberdade e a justiça social e económica. Percebe-se que a erosão dos valores democráticos é evidente, um pouco por todo o lado. E não só têm crescido os sentimentos de intolerância perante quem pensa de modo diferente, como está a desaparecer uma noção muito antiga em que sempre assentou o pensamento humanista: o respeito pelo outro, seja ele quem for, mas que deve ser respeitado como ser humano.
A forma como tantos países com tradição democrática têm assistido, em silêncio, ao que acontece em Gaza é reveladora do mundo em que vivemos e da erosão dos valores que devíamos todos compartilhar, até por estarem inscritos na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na própria criação das Nações Unidas. Quando, deliberadamente, como se fazia nos antigos cercos da época medieval, se matam populações à fome, não pode existir estratégia política que desculpe o “bruto” que comanda esse extermínio. Por muito menos, por exemplo, já se encetaram intervenções de forças internacionais, para impedir situações que não chegavam a esta barbárie. E é cada vez mais inadmissível que Israel continue a proibir que observadores e jornalistas internacionais entrem no território para poderem, em liberdade, contar o que realmente se passa.
Em Gaza, fora dos olhares do mundo, não está só uma população a ser dizimada, à fome e aos tiros. É a própria Humanidade que, quando escolhe o silêncio, acaba por ficar sitiada e abdicar dos valores que deviam norteá-la. E quando isso acontece, tal como se existir uma guerra nuclear, uma conclusão será inevitável: todos seremos vencidos.
Este escalar de ameaças é, antes, o sintoma de algo mais vasto: o poder crescente dos chamados “homens-fortes”. É até a consolidação do “triunfo dos brutos” que, há cerca de uma década, tem marcado a política internacional: o poder a ser exercido por homens que concentram a autoridade, cultivam a imagem de força pessoal e recorrem, sem qualquer tipo de pudor, à ameaça como arma principal.
Com Donald Trump nos comandos da Casa Branca e com o dedo afiado nas suas redes sociais, este estilo tem ganhado cada vez maior preponderância e novos imitadores. E, aos poucos, vai arrastando o mundo para um clima de confronto permanente, sempre a apelar ao uso da força e que, inexoravelmente, destrói muitos dos valores e princípios que, durante algum tempo, pensámos que deveriam pautar o debate político e os relacionamentos internacionais entre Estados.
No estado atual do mundo, parece já não interessar quem tem razão, mas sim quem tem mais força. E, especialmente, quem ameaça com maior intensidade, como se tudo lhe fosse permitido e nada tem a perder. A diplomacia internacional, nos temas principais, foi substituída por jogos de força, por sanções, por guerras comerciais e, quando a ocasião o justifica, por ameaças militares abertas.
Parece que estamos a caminhar sempre em direção a um confronto iminente e explosivo que, como nos filmes de aventura, é evitado à última hora. Aqui, não por um herói improvável, mas sempre pela ação de um “homem-forte”, com o seu inevitável discurso nacionalista e que promete sonhos de grandeza aos seus compatriotas. Temos visto, em tantos casos, que nada disso é verdade. Só que é a perceção que eles tentam criar. E, já ninguém tem dúvidas, todos sabemos que vivemos hoje num mundo dominado mais pelas perceções do que pela análise fria, metódica e transparente da realidade.
Esta emergência do poder dos “brutos” constitui a maior ameaça ao desenvolvimento saudável da Humanidade, à defesa dos direitos humanos e aos valores que permitam a liberdade e a justiça social e económica. Percebe-se que a erosão dos valores democráticos é evidente, um pouco por todo o lado. E não só têm crescido os sentimentos de intolerância perante quem pensa de modo diferente, como está a desaparecer uma noção muito antiga em que sempre assentou o pensamento humanista: o respeito pelo outro, seja ele quem for, mas que deve ser respeitado como ser humano.
A forma como tantos países com tradição democrática têm assistido, em silêncio, ao que acontece em Gaza é reveladora do mundo em que vivemos e da erosão dos valores que devíamos todos compartilhar, até por estarem inscritos na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na própria criação das Nações Unidas. Quando, deliberadamente, como se fazia nos antigos cercos da época medieval, se matam populações à fome, não pode existir estratégia política que desculpe o “bruto” que comanda esse extermínio. Por muito menos, por exemplo, já se encetaram intervenções de forças internacionais, para impedir situações que não chegavam a esta barbárie. E é cada vez mais inadmissível que Israel continue a proibir que observadores e jornalistas internacionais entrem no território para poderem, em liberdade, contar o que realmente se passa.
Em Gaza, fora dos olhares do mundo, não está só uma população a ser dizimada, à fome e aos tiros. É a própria Humanidade que, quando escolhe o silêncio, acaba por ficar sitiada e abdicar dos valores que deviam norteá-la. E quando isso acontece, tal como se existir uma guerra nuclear, uma conclusão será inevitável: todos seremos vencidos.
Entre a distopia e a construção do país desejado
Ao contrário do que se prega, o neoliberalismo não trouxe nada de bom para a humanidade. O avanço da perspectiva neoliberal a partir da década de 1980 representou um grande golpe contra direitos sociais conquistados a duras penas após a Segunda Guerra Mundial. As promessas de maior eficiência e distribuição de riquezas veiculadas, principalmente por Ronald Regan e Margareth Tatcher, ficaram restritas aos discursos.
O que se verificou, na realidade, foi um intenso processo de desregulamentação e ampliação da liberdade de movimentação do capital e a aceleração da formação de oligopólios e da concentração de renda por todo o mundo. Uma concentração de renda possibilitada, entre outras razões, pelo enfraquecimento da classe trabalhadora às voltas com o desemprego crescente e, também, pela captura dos ganhos de produtividade pelo capital. Ganhos de produtividade que antes eram repassados aos salários e reinvestidos na produção.
Assim, sistemas públicos de saúde, de previdência, de acesso à educação de qualidade, de proteção ao trabalho e políticas de redistribuição de renda e inclusão, abriram espaço para iniciativas do setor privado que avançaram com voracidade sobre as poupanças públicas coletivamente construídas.
Para alcançar tais objetivos foi preciso naturalizar o neoliberalismo como o único caminho a ser seguido. Uma naturalização bastante presente nos telejornais e no mundo corporativo. Além disso, foi preciso quebrar a espinha dorsal do sindicalismo, a exemplo do combate à greve dos mineiros da Inglaterra, entre 1984 e 1985. Foi necessário também mover uma guerra ideológica contra as instituições do estado de bem-estar, as políticas inclusivas e os partidos situados à esquerda do espectro político.
Em decorrência, observamos o aumento significativo da miséria, da violência, das crises humanitárias, do número de conflitos armados, das migrações, das agressões ao meio ambiente, das crises sanitárias e das emergências climáticas. Cresceu também, a extrema direita como expressão torta do mal-estar que a selvageria econômica criou.
Esse processo se intensificou de forma ainda mais temerária com a presença de Donald Trump na presidência da nação mais poderosa da Terra. Sem demonstrar nenhum constrangimento ou respeito ao conjunto de valores e organizações que ditaram os rumos das relações internacionais até bem pouco tempo, Trump vem sacudindo o mundo político e provocando solavancos expressivos nos mercados mundiais.
De fato, desde ameaçar anexar a Groelândia, caçar e expulsar imigrantes em massa ou afirmar que pretende tornar o Canadá o 51 estado americano, o presidente estadunidense vem mobilizando a atenção e a preocupação de todos para um comportamento intempestivo e de resultados inesperados e dramáticos para a grande plateia que assiste a tudo atônita.
Nessa perspectiva, a desqualificação de instituições internacionais como a Organização Mundial do Comércio ou de agências da ONU, como a Organização Mundial de Saúde ou a Unesco, opera no sentido alçar a maior liderança da extrema direita à condição de instância máxima definidora do que é justo ou não no campo da lei, da economia ou da política em todo o mundo. Mais ainda, do que é verdade no campo da ciência.
Para tanto, vale tudo: humilhar chefes de Estado aliados como Zelensky, apoiar o genocídio em Gasa, atacar repentinamente o Irã, ameaçar a Índia, impor um cerco comercial à Rússia ou ainda tentar interferir nas instituições de países autônomos, como demonstram as recentes ações contra o Brasil.
Desde armas até a utilização de estratégias de lawfare, tudo é empregado para submeter o mundo aos interesses reunidos em torno de Trump. Interesses poderosos, a exemplo das big techs, totalmente envolvidas em esquemas de propagação de mentiras, da perpetuação da ignorância, do reforço aos preconceitos e de desorientação e manipulação da opinião pública.
Guiada por um personagem midiático que se porta como imperador do planeta, a extrema direita vem fazendo estragos pelo mundo. Histriônico e errático, assim como outros líderes deste segmento político, Trump encarna um personagem circense que nada tem de inocente. Aqui vale lembrar o alerta de Polónio, personagem de William Shakespeare, sobre a aparente confusão mental do príncipe Hamlet: “há método nessa loucura”. Um comportamento hipócrita e afetado, comum aos representantes dessa corrente ideológica. Uma mise-en-scène que tem por objetivo produzir material para alimentação das bolhas que eles criaram com o auxílio de algoritmos.
Nessa nova configuração das relações internacionais, o uso da força se torna mais frequente e é exercido às claras. O genocídio do povo palestino em Gasa, por exemplo, envergonha a humanidade e questiona os frágeis mecanismos de governança internacional diante de um crime hediondo. Na economia, o protecionismo se impõe e busca avançar sobre os recursos de países sem capacidade de autodefesa para além da frágil condenação da comunidade mundial aos atos de agressão que lhes ameaçam a soberania.
Embora não resolva por completo a questão, a reação a esse tipo de ameaça passa certamente pela reorganização das cadeias produtivas e pela diversificação de mercados, incluindo o fortalecimento dos mercados internos dos países exportadores. Passa igualmente, por fazer ver aos empresários americanos que tais atitudes arbitrárias por parte de Trump geram quebra de confiança e inseguranças jurídicas capazes de comprometer, de modo duradouro, as relações comerciais com os EUA.
No Brasil, contando com o apoio subserviente e criminoso de gente que vergonhosamente se dispõe a barganhar a dignidade e a autonomia do país, Trump instrumentaliza o grupo político organizado ao redor da figura medíocre e patética de Jair Bolsonaro para alcançar objetivos econômicos e geopolíticos que atentam contra a soberania e as instituições brasileiras.
Escamoteados por falsas e risíveis acusações de que o país estaria vivendo em uma ditadura, os ataques norte-americanos contra o Brasil estão longe, em tudo, de uma cruzada pelos direitos humanos e pela democracia. Ao contrário, Trump está se utilizando justamente do grupo que atentou contra a democracia e que, segundo as investigações, planejaram matar o presidente da República, seu vice e um ministro da Suprema Corte. Um plano que incluía a organização de campos de concentração.
O que está realmente em jogo, entre outros alvos de interesse, é o domínio sobre terras raras, o acesso às nossas reservas de petróleo e minerais, o patrimônio genético presente na Amazônia, as áreas cultiváveis e o mercado representado pelo PIX, que desde sua criação movimentou mais de R$ 60 trilhões. Está em jogo também, o alinhamento do país ao BRICS, que hoje se apresenta como uma alternativa defensiva em relação à hegemonia política, econômica e militar dos EUA.
Nesse quadro, o governo brasileiro tem agido com racionalidade e cautela. Lula e sua equipe têm demonstrado maturidade e competência para lidar com a crise, conversando com empresários e autoridades estadunidenses, buscando circunscrever a contenda ao campo das relações comerciais. A dignidade com que Lula enfrenta esse momento reforçou a sua imagem dentro e fora do país como líder do campo democrático no enfrentamento da barbárie protofascista.
Por outro lado, parte significativa da elite econômica local provou do seu próprio veneno ao apoiar extremistas e não se posicionar firmemente em favor de nossa soberania, permitindo que familiares do ex-presidente e seus aliados agissem abertamente contra o país. Como resultado, os cães estúpidos abanaram o rabo para outro senhor e, destrambelhados, morderam as mãos dos antigos donos.
Vale ressaltar que, embora sob circunstâncias adversas, o governo Lula obteve êxitos extraordinários para quem conta com imensas restrições orçamentárias e com forte oposição no Congresso Nacional, em parte do empresariado e da grande mídia.
Não obstante a pesada herança negativa que recebeu de Bolsonaro, o governo elevou o país da 13ª para a 8ª posição no ranking das maiores economias mundiais. Ao lado disso, o desemprego caiu aos níveis mais baixos já registrados, a inflação encontra-se sob controle, o PIB cresceu mais do que as expectativas das agências especializadas, saímos do isolamento internacional, atraímos investimentos de vulto e abrimos novos mercados para os produtos brasileiros.
Conquistas que vieram ao lado de outras medidas mais urgentes como o atendimento prioritário ao combate ao genocídio que atingiu os Yanomami e a recomposição de ministérios e programas sucateados como foi o caso das pastas da saúde e da educação ou do Programa Nacional de Imunizações, bastante fragilizados no governo anterior.
Apesar das exigências do ajuste fiscal, o Brasil realinhou e colocou de pé programas importantes como o Bolsa Família, o Farmácia Popular, o Mais Médicos, atendeu parte expressiva da demanda reprimida com a realização de mais 14 milhões de cirurgias, está procurando conferir acesso a especialidades médicas a quem necessita. Essa guinada na direção da inclusão foi coroada pela retirada do país do mapa da fome, conforme anunciado recentemente pela ONU.
O enfrentamento desse quadro pode significar uma virada de página nos rumos até aqui trilhados. O país precisa abandonar um modelo econômico qualificado por economistas como uma mistura do fazendão com o cassino. Um modelo predatório, parasitário, extrativista e alinhado com interesses externos. O agronegócio e o rentismo precisam ser regulados na perspectiva de submissão ao coletivo e ao bem comum. Os segmentos produtivos deveriam integrar uma dinâmica econômica centrada no bem-estar da população, na justiça social e na responsabilidade ambiental. Uma dinâmica econômica submetida a um pacto intergeracional positivo e soberano.
A defesa de nossa economia passa pela redistribuição de renda para alicerçar um mercado interno forte, capaz de escoar grande parte do que aqui é produzido. Um mercado mais protegido das oscilações internacionais, apoiado em uma economia verde, incorporando a agroecologia e agricultura familiar ao lado de processos de industrialização sustentável e atentos à mitigação de impactos negativos da atividade produtiva.
Para tanto, é preciso reduzir drasticamente a taxa de juros que dificulta investimentos e castiga a população com ênfase nos mais pobres. Uma taxa de juros que em 2024 abocanhou quase um trilhão de reais, dinheiro suficiente para alterar completa e positivamente a educação e a saúde da população. É preciso rever os incentivos fiscais e evitar que se tornem eternos. Para se ter uma ideia do volume da renúncia fiscal basta observar que, em 2024, a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco), estimou em R$ 790 bilhões o montante que o país deixou de arrecadar. O Estado precisa se posicionar como um instrumento do processo civilizatório e não como um balcão de negócios de segmentos privilegiados.
É preciso dar terra a quem nela trabalha e moradia digna para todos. É preciso alterar a estrutura tributária que onera o consumo e a produção, protegendo a renda e o patrimônio. É preciso abandonar as políticas de austeridade e os seus componentes recessivos e nocivos ao presente e ao futuro.
O mundo apoia e acompanha com interesse a movimentação do Brasil nessa crise. Preservamos a confiança que o país detém nas mesas de negociação e, sobretudo, não nos deixamos arrastar na lama da indignidade defendida pelo bolsonarismo.
O Brasil lançou mão da sua reserva moral para resistir ao assédio indecente que vem sendo alvo, superando, assim, o fato de governadores dos estados mais ricos e mais atingidos pelo terremoto que assola o mundo não estarem à altura das responsabilidades dos cargos que ocupam. Da mesma forma, a firmeza que faltou aos presidentes da Câmara e do Senado não faltou à minoria governista e a alguns parlamentares de fora da base do governo.
Bolsonaro foi colocado em prisão domiciliar, uma medida cirúrgica de Alexandre de Moraes diante as seguidas provocações daqueles que querem criar o caos onde há lei e ordem.
O país não pode ficar refém de interesses pessoais ou de vendilhões da pátria. É vergonhosa a atitude do Partido Liberal de ocupar, fisicamente e de modo violento, as mesas diretoras do Senado Federal e da Câmara dos Deputados para obstruir os trabalhos do Congresso Nacional, na tentativa de passar por cima de qualquer do decoro parlamentar ou conduta moral, para proteger o ex-presidente do alcance da lei. Um réu, é bom frisar, que está exercendo plenamente o direito à defesa.
Vergonhosa também é a atitude de gente como o deputado federal Carlos Jordy que, em entrevista recente, defendeu medidas na direção de franquear aos EUA ações de repressão, em nosso território, a todos aqueles que as autoridades americanas considerarem como terroristas, abrindo um precedente escandaloso e inaceitável de ofensas à nossa soberania.
Não podemos ficar paralisados por um grupo que se dispõe a barganhar a nossa dignidade em troca de interesses escusos e mesquinhos de uma família e seus aliados que tanto mal fizeram, e fazem, ao nosso povo. Não podemos esquecer os mais de 700 mil mortos pela incúria e pela necropolítica do governo anterior. Não podemos esquecer que essa gente autoritária e perversa jogou mais de 33 milhões de pessoas na fome. Grande parte delas agora resgatadas dessa condição por um governo de frente ampla chefiado que rejeita o caminho do fascismo.
Temos que reconstruir o estrago causado pela estupidez da extrema direita. É hora de varrer o varejo para colocar no lugar da escumalha gente competente e altiva com senso de responsabilidade para com o país. É hora de unir o Brasil em torno de um projeto inclusivo e sustentável de economia. É hora dos verdadeiros patriotas. Não podemos tergiversar na defesa de nossa autonomia e da autodeterminação dos povos. É hora de cerrar fileiras ao lado do governo Lula. É hora da sociedade civil organizada, dos intelectuais, dos cientistas, dos estudantes, dos sindicatos e dos movimentos sociais trabalharem pela ocupação das ruas na luta pela soberania do país e pelo avanço da democracia.
O que se verificou, na realidade, foi um intenso processo de desregulamentação e ampliação da liberdade de movimentação do capital e a aceleração da formação de oligopólios e da concentração de renda por todo o mundo. Uma concentração de renda possibilitada, entre outras razões, pelo enfraquecimento da classe trabalhadora às voltas com o desemprego crescente e, também, pela captura dos ganhos de produtividade pelo capital. Ganhos de produtividade que antes eram repassados aos salários e reinvestidos na produção.
Assim, sistemas públicos de saúde, de previdência, de acesso à educação de qualidade, de proteção ao trabalho e políticas de redistribuição de renda e inclusão, abriram espaço para iniciativas do setor privado que avançaram com voracidade sobre as poupanças públicas coletivamente construídas.
Para alcançar tais objetivos foi preciso naturalizar o neoliberalismo como o único caminho a ser seguido. Uma naturalização bastante presente nos telejornais e no mundo corporativo. Além disso, foi preciso quebrar a espinha dorsal do sindicalismo, a exemplo do combate à greve dos mineiros da Inglaterra, entre 1984 e 1985. Foi necessário também mover uma guerra ideológica contra as instituições do estado de bem-estar, as políticas inclusivas e os partidos situados à esquerda do espectro político.
Em decorrência, observamos o aumento significativo da miséria, da violência, das crises humanitárias, do número de conflitos armados, das migrações, das agressões ao meio ambiente, das crises sanitárias e das emergências climáticas. Cresceu também, a extrema direita como expressão torta do mal-estar que a selvageria econômica criou.
Esse processo se intensificou de forma ainda mais temerária com a presença de Donald Trump na presidência da nação mais poderosa da Terra. Sem demonstrar nenhum constrangimento ou respeito ao conjunto de valores e organizações que ditaram os rumos das relações internacionais até bem pouco tempo, Trump vem sacudindo o mundo político e provocando solavancos expressivos nos mercados mundiais.
De fato, desde ameaçar anexar a Groelândia, caçar e expulsar imigrantes em massa ou afirmar que pretende tornar o Canadá o 51 estado americano, o presidente estadunidense vem mobilizando a atenção e a preocupação de todos para um comportamento intempestivo e de resultados inesperados e dramáticos para a grande plateia que assiste a tudo atônita.
Nessa perspectiva, a desqualificação de instituições internacionais como a Organização Mundial do Comércio ou de agências da ONU, como a Organização Mundial de Saúde ou a Unesco, opera no sentido alçar a maior liderança da extrema direita à condição de instância máxima definidora do que é justo ou não no campo da lei, da economia ou da política em todo o mundo. Mais ainda, do que é verdade no campo da ciência.
Para tanto, vale tudo: humilhar chefes de Estado aliados como Zelensky, apoiar o genocídio em Gasa, atacar repentinamente o Irã, ameaçar a Índia, impor um cerco comercial à Rússia ou ainda tentar interferir nas instituições de países autônomos, como demonstram as recentes ações contra o Brasil.
Desde armas até a utilização de estratégias de lawfare, tudo é empregado para submeter o mundo aos interesses reunidos em torno de Trump. Interesses poderosos, a exemplo das big techs, totalmente envolvidas em esquemas de propagação de mentiras, da perpetuação da ignorância, do reforço aos preconceitos e de desorientação e manipulação da opinião pública.
Guiada por um personagem midiático que se porta como imperador do planeta, a extrema direita vem fazendo estragos pelo mundo. Histriônico e errático, assim como outros líderes deste segmento político, Trump encarna um personagem circense que nada tem de inocente. Aqui vale lembrar o alerta de Polónio, personagem de William Shakespeare, sobre a aparente confusão mental do príncipe Hamlet: “há método nessa loucura”. Um comportamento hipócrita e afetado, comum aos representantes dessa corrente ideológica. Uma mise-en-scène que tem por objetivo produzir material para alimentação das bolhas que eles criaram com o auxílio de algoritmos.
Nessa nova configuração das relações internacionais, o uso da força se torna mais frequente e é exercido às claras. O genocídio do povo palestino em Gasa, por exemplo, envergonha a humanidade e questiona os frágeis mecanismos de governança internacional diante de um crime hediondo. Na economia, o protecionismo se impõe e busca avançar sobre os recursos de países sem capacidade de autodefesa para além da frágil condenação da comunidade mundial aos atos de agressão que lhes ameaçam a soberania.
Embora não resolva por completo a questão, a reação a esse tipo de ameaça passa certamente pela reorganização das cadeias produtivas e pela diversificação de mercados, incluindo o fortalecimento dos mercados internos dos países exportadores. Passa igualmente, por fazer ver aos empresários americanos que tais atitudes arbitrárias por parte de Trump geram quebra de confiança e inseguranças jurídicas capazes de comprometer, de modo duradouro, as relações comerciais com os EUA.
No Brasil, contando com o apoio subserviente e criminoso de gente que vergonhosamente se dispõe a barganhar a dignidade e a autonomia do país, Trump instrumentaliza o grupo político organizado ao redor da figura medíocre e patética de Jair Bolsonaro para alcançar objetivos econômicos e geopolíticos que atentam contra a soberania e as instituições brasileiras.
Escamoteados por falsas e risíveis acusações de que o país estaria vivendo em uma ditadura, os ataques norte-americanos contra o Brasil estão longe, em tudo, de uma cruzada pelos direitos humanos e pela democracia. Ao contrário, Trump está se utilizando justamente do grupo que atentou contra a democracia e que, segundo as investigações, planejaram matar o presidente da República, seu vice e um ministro da Suprema Corte. Um plano que incluía a organização de campos de concentração.
O que está realmente em jogo, entre outros alvos de interesse, é o domínio sobre terras raras, o acesso às nossas reservas de petróleo e minerais, o patrimônio genético presente na Amazônia, as áreas cultiváveis e o mercado representado pelo PIX, que desde sua criação movimentou mais de R$ 60 trilhões. Está em jogo também, o alinhamento do país ao BRICS, que hoje se apresenta como uma alternativa defensiva em relação à hegemonia política, econômica e militar dos EUA.
Nesse quadro, o governo brasileiro tem agido com racionalidade e cautela. Lula e sua equipe têm demonstrado maturidade e competência para lidar com a crise, conversando com empresários e autoridades estadunidenses, buscando circunscrever a contenda ao campo das relações comerciais. A dignidade com que Lula enfrenta esse momento reforçou a sua imagem dentro e fora do país como líder do campo democrático no enfrentamento da barbárie protofascista.
Por outro lado, parte significativa da elite econômica local provou do seu próprio veneno ao apoiar extremistas e não se posicionar firmemente em favor de nossa soberania, permitindo que familiares do ex-presidente e seus aliados agissem abertamente contra o país. Como resultado, os cães estúpidos abanaram o rabo para outro senhor e, destrambelhados, morderam as mãos dos antigos donos.
Vale ressaltar que, embora sob circunstâncias adversas, o governo Lula obteve êxitos extraordinários para quem conta com imensas restrições orçamentárias e com forte oposição no Congresso Nacional, em parte do empresariado e da grande mídia.
Não obstante a pesada herança negativa que recebeu de Bolsonaro, o governo elevou o país da 13ª para a 8ª posição no ranking das maiores economias mundiais. Ao lado disso, o desemprego caiu aos níveis mais baixos já registrados, a inflação encontra-se sob controle, o PIB cresceu mais do que as expectativas das agências especializadas, saímos do isolamento internacional, atraímos investimentos de vulto e abrimos novos mercados para os produtos brasileiros.
Conquistas que vieram ao lado de outras medidas mais urgentes como o atendimento prioritário ao combate ao genocídio que atingiu os Yanomami e a recomposição de ministérios e programas sucateados como foi o caso das pastas da saúde e da educação ou do Programa Nacional de Imunizações, bastante fragilizados no governo anterior.
Apesar das exigências do ajuste fiscal, o Brasil realinhou e colocou de pé programas importantes como o Bolsa Família, o Farmácia Popular, o Mais Médicos, atendeu parte expressiva da demanda reprimida com a realização de mais 14 milhões de cirurgias, está procurando conferir acesso a especialidades médicas a quem necessita. Essa guinada na direção da inclusão foi coroada pela retirada do país do mapa da fome, conforme anunciado recentemente pela ONU.
O enfrentamento desse quadro pode significar uma virada de página nos rumos até aqui trilhados. O país precisa abandonar um modelo econômico qualificado por economistas como uma mistura do fazendão com o cassino. Um modelo predatório, parasitário, extrativista e alinhado com interesses externos. O agronegócio e o rentismo precisam ser regulados na perspectiva de submissão ao coletivo e ao bem comum. Os segmentos produtivos deveriam integrar uma dinâmica econômica centrada no bem-estar da população, na justiça social e na responsabilidade ambiental. Uma dinâmica econômica submetida a um pacto intergeracional positivo e soberano.
A defesa de nossa economia passa pela redistribuição de renda para alicerçar um mercado interno forte, capaz de escoar grande parte do que aqui é produzido. Um mercado mais protegido das oscilações internacionais, apoiado em uma economia verde, incorporando a agroecologia e agricultura familiar ao lado de processos de industrialização sustentável e atentos à mitigação de impactos negativos da atividade produtiva.
Para tanto, é preciso reduzir drasticamente a taxa de juros que dificulta investimentos e castiga a população com ênfase nos mais pobres. Uma taxa de juros que em 2024 abocanhou quase um trilhão de reais, dinheiro suficiente para alterar completa e positivamente a educação e a saúde da população. É preciso rever os incentivos fiscais e evitar que se tornem eternos. Para se ter uma ideia do volume da renúncia fiscal basta observar que, em 2024, a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco), estimou em R$ 790 bilhões o montante que o país deixou de arrecadar. O Estado precisa se posicionar como um instrumento do processo civilizatório e não como um balcão de negócios de segmentos privilegiados.
É preciso dar terra a quem nela trabalha e moradia digna para todos. É preciso alterar a estrutura tributária que onera o consumo e a produção, protegendo a renda e o patrimônio. É preciso abandonar as políticas de austeridade e os seus componentes recessivos e nocivos ao presente e ao futuro.
O mundo apoia e acompanha com interesse a movimentação do Brasil nessa crise. Preservamos a confiança que o país detém nas mesas de negociação e, sobretudo, não nos deixamos arrastar na lama da indignidade defendida pelo bolsonarismo.
O Brasil lançou mão da sua reserva moral para resistir ao assédio indecente que vem sendo alvo, superando, assim, o fato de governadores dos estados mais ricos e mais atingidos pelo terremoto que assola o mundo não estarem à altura das responsabilidades dos cargos que ocupam. Da mesma forma, a firmeza que faltou aos presidentes da Câmara e do Senado não faltou à minoria governista e a alguns parlamentares de fora da base do governo.
Bolsonaro foi colocado em prisão domiciliar, uma medida cirúrgica de Alexandre de Moraes diante as seguidas provocações daqueles que querem criar o caos onde há lei e ordem.
O país não pode ficar refém de interesses pessoais ou de vendilhões da pátria. É vergonhosa a atitude do Partido Liberal de ocupar, fisicamente e de modo violento, as mesas diretoras do Senado Federal e da Câmara dos Deputados para obstruir os trabalhos do Congresso Nacional, na tentativa de passar por cima de qualquer do decoro parlamentar ou conduta moral, para proteger o ex-presidente do alcance da lei. Um réu, é bom frisar, que está exercendo plenamente o direito à defesa.
Vergonhosa também é a atitude de gente como o deputado federal Carlos Jordy que, em entrevista recente, defendeu medidas na direção de franquear aos EUA ações de repressão, em nosso território, a todos aqueles que as autoridades americanas considerarem como terroristas, abrindo um precedente escandaloso e inaceitável de ofensas à nossa soberania.
Não podemos ficar paralisados por um grupo que se dispõe a barganhar a nossa dignidade em troca de interesses escusos e mesquinhos de uma família e seus aliados que tanto mal fizeram, e fazem, ao nosso povo. Não podemos esquecer os mais de 700 mil mortos pela incúria e pela necropolítica do governo anterior. Não podemos esquecer que essa gente autoritária e perversa jogou mais de 33 milhões de pessoas na fome. Grande parte delas agora resgatadas dessa condição por um governo de frente ampla chefiado que rejeita o caminho do fascismo.
Temos que reconstruir o estrago causado pela estupidez da extrema direita. É hora de varrer o varejo para colocar no lugar da escumalha gente competente e altiva com senso de responsabilidade para com o país. É hora de unir o Brasil em torno de um projeto inclusivo e sustentável de economia. É hora dos verdadeiros patriotas. Não podemos tergiversar na defesa de nossa autonomia e da autodeterminação dos povos. É hora de cerrar fileiras ao lado do governo Lula. É hora da sociedade civil organizada, dos intelectuais, dos cientistas, dos estudantes, dos sindicatos e dos movimentos sociais trabalharem pela ocupação das ruas na luta pela soberania do país e pelo avanço da democracia.
Panaceia
Sam Altman, Elon Musk e outros têm advogado a criação de um “rendimento básico universal” (RBU) como a forma mais adequada de reagir ao desemprego generalizado que, anunciam, terá lugar com a utilização da Inteligência Artificial (IA). Num mundo onde os computadores e robots tudo fazem melhor e mais rápido do que os humanos, as empresas não terão incentivo para empregar pessoas.
Afirmam que o crescimento económico exponencial gerado pela IA permitirá um mundo rico, e que a riqueza será partilhada entre todos via RBU (tributando as empresas na medida da sua utilização da Inteligência Artificial). Utilizam o RBU como um instrumento milagroso, que a todos dará conforto económico e permitirá que cada um se dedique à família, aos interesses pessoais e ao lazer.
O RBU permite, simultaneamente, apresentarem-se como filantropos, preocupados com a estabilidade social, e evitar a discussão e críticas a este futuro que nos apresentam como inevitável e para cuja construção mais e mais recursos são canalizados, sem freio do regulador.
Conhecedores do status do desenvolvimento tecnológico, mas também pressionados pela expectativa dos investidores que têm canalizado milhões para esta odisseia, repetem-nos que este futuro é iminente. E provavelmente será, sobretudo para os mais jovens acabados de formar – afinal, a Google já não contrata programadores juniores.
Mas o que significa um mundo onde uma elite de donos de Big Tech domina os meios de produção e os humanos são dispensáveis (num desvio que nem Marx imaginou)? O contrato social das sociedades democráticas assenta em grande medida na tributação do trabalho. O Estado funciona porque os trabalhadores pagam impostos. Mas e se as receitas do Estado tiverem como origem não o trabalho, mas a riqueza gerada por máquinas? Que incentivos terão os governos para educar a população e garantir que a mesma é saudável?
O risco é que o incentivo seja de apenas redistribuir o suficiente para manter a paz social, gerando um fosso entre a elite tecnológica e todos os demais. Não é um cenário extremo se pensarmos em petroestados. Nos Emirados Árabes Unidos, um sistema de segurança social financiado exclusivamente pelas receitas do petróleo – não existe imposto sobre o rendimento – garante condições de vida mínima a todos os nacionais do emirado. No entanto, os Emirados Árabes Unidos, como a esmagadora maioria dos ditos petroestados (com exceção da Noruega), não têm cidadãos com direitos e deveres, mas súbditos, sujeitos aos caprichos da elite no poder.
O futuro que Sam Altman e Elon Musk nos apresentam parece uma versão tecnológica de uma teocracia, onde a elite não são os religiosos, mas os “technológicos” – uma “technocracia”. Altera-se a fonte de poder, mas mantém-se o resultado.
E se como o risco do fim da democracia e a perpetuação da desigualdade social não bastassem, há que questionar o impacto psicológico e social de um mundo sem trabalho.
O futuro imediato não promete substituir massivamente trabalhos fisicamente duros ou perigosos, mas trabalho intelectual, que consideramos o meio privilegiado para desenvolvermos as nossas competências e virtudes, e, como tal, indispensável ao florescimento do ser humano em sociedade. O trabalho não é apenas um meio de obtenção de recursos financeiros, mas confere um sentido de propósito, permite o estabelecimento de relações humanas e oportunidades de desenvolvimento pessoal.
Importa por isso que o impacto da tecnologia na sociedade não se limite à discussão de uma panaceia – o RBU – e que a sociedade e os políticos promovam a discussão de soluções participativas, por exemplo, via assembleias de cidadãos, onde este tema seja discutido e do qual resultem diretrizes para uma regulamentação efetiva da introdução da IA. Só não ignorando ou desvalorizando os acontecimentos, poderemos assegurar a dignidade do trabalho e uma distribuição mais justa dos rendimentos gerados por esta revolução.
Afirmam que o crescimento económico exponencial gerado pela IA permitirá um mundo rico, e que a riqueza será partilhada entre todos via RBU (tributando as empresas na medida da sua utilização da Inteligência Artificial). Utilizam o RBU como um instrumento milagroso, que a todos dará conforto económico e permitirá que cada um se dedique à família, aos interesses pessoais e ao lazer.
O RBU permite, simultaneamente, apresentarem-se como filantropos, preocupados com a estabilidade social, e evitar a discussão e críticas a este futuro que nos apresentam como inevitável e para cuja construção mais e mais recursos são canalizados, sem freio do regulador.
Conhecedores do status do desenvolvimento tecnológico, mas também pressionados pela expectativa dos investidores que têm canalizado milhões para esta odisseia, repetem-nos que este futuro é iminente. E provavelmente será, sobretudo para os mais jovens acabados de formar – afinal, a Google já não contrata programadores juniores.
Mas o que significa um mundo onde uma elite de donos de Big Tech domina os meios de produção e os humanos são dispensáveis (num desvio que nem Marx imaginou)? O contrato social das sociedades democráticas assenta em grande medida na tributação do trabalho. O Estado funciona porque os trabalhadores pagam impostos. Mas e se as receitas do Estado tiverem como origem não o trabalho, mas a riqueza gerada por máquinas? Que incentivos terão os governos para educar a população e garantir que a mesma é saudável?
O risco é que o incentivo seja de apenas redistribuir o suficiente para manter a paz social, gerando um fosso entre a elite tecnológica e todos os demais. Não é um cenário extremo se pensarmos em petroestados. Nos Emirados Árabes Unidos, um sistema de segurança social financiado exclusivamente pelas receitas do petróleo – não existe imposto sobre o rendimento – garante condições de vida mínima a todos os nacionais do emirado. No entanto, os Emirados Árabes Unidos, como a esmagadora maioria dos ditos petroestados (com exceção da Noruega), não têm cidadãos com direitos e deveres, mas súbditos, sujeitos aos caprichos da elite no poder.
O futuro que Sam Altman e Elon Musk nos apresentam parece uma versão tecnológica de uma teocracia, onde a elite não são os religiosos, mas os “technológicos” – uma “technocracia”. Altera-se a fonte de poder, mas mantém-se o resultado.
E se como o risco do fim da democracia e a perpetuação da desigualdade social não bastassem, há que questionar o impacto psicológico e social de um mundo sem trabalho.
O futuro imediato não promete substituir massivamente trabalhos fisicamente duros ou perigosos, mas trabalho intelectual, que consideramos o meio privilegiado para desenvolvermos as nossas competências e virtudes, e, como tal, indispensável ao florescimento do ser humano em sociedade. O trabalho não é apenas um meio de obtenção de recursos financeiros, mas confere um sentido de propósito, permite o estabelecimento de relações humanas e oportunidades de desenvolvimento pessoal.
Importa por isso que o impacto da tecnologia na sociedade não se limite à discussão de uma panaceia – o RBU – e que a sociedade e os políticos promovam a discussão de soluções participativas, por exemplo, via assembleias de cidadãos, onde este tema seja discutido e do qual resultem diretrizes para uma regulamentação efetiva da introdução da IA. Só não ignorando ou desvalorizando os acontecimentos, poderemos assegurar a dignidade do trabalho e uma distribuição mais justa dos rendimentos gerados por esta revolução.
O redescobrimento do Brasil
Quando fui aprovado no exame de admissão no Colégio Padre Felix (espécie de vestibular para ingressar no “ginasial”), recebi um presente inesquecível de minha mãe: o livro História do Brasil para Crianças de autoria do jornalista, escritor, dramaturgo, político e membro da Academia Brasileira de Letras, Viriato Correia (1884-1967), com alguns conselhos que me foram úteis para a nova fase da educação formal e para vida inteira.
Ela foi incisiva: nada de decoreba; você não é um papagaio. Pense! Não se limite a estudar, apenas nos livros adotados pelo colégio; pergunte, não tenha receio da ignorância, aprenda duvidando; consulte o professor, os dicionários, as enciclopédias; mantenha acesa a curiosidade (não esqueço a tonalidade azul da coleção “O Tesouro da Juventude” nele inserido o “O livro dos porquês”); convivi com os personagens de Monteiro Lobato; curti as edições do “Almanaque Tico-Tico”, a primeira e a mais longeva revista para o público infanto-juvenil no Brasil (1911 e editada por 56 anos); os saberes maternos me apresentaram a Castro Alves, José de Alencar, Machado de Assis, Eça de Queiroz, “Os miseráveis” de Victor Hugo, romance que me marcou profundamente.
Pois bem, o resto ficou por minha conta. Sou leitor raso, mas um curioso atrevido. E foi este atrevimento que me levou a prestar atenção ao episódio do descobrimento (ou “achamento”) do Brasil. “A pátria amada” nasceu controversa: resultou da intencionalidade estratégica do reino português em ampliar rotas comerciais e domínio territorial do além-mar ou foi mera casualidade decorrente de fatores climáticos (a calmaria)? Outra questão polêmica resultou da precedência dos navegadores espanhóis (Vicente Pinzón e Diego de Lepe) que costearam o litoral brasileira entre Janeiro e março de 1500 antes, pois, da esquadra de Cabral. Isto rendeu nos anos 50, assinala Eduardo Bueno, um rancoroso “nacionalismo retroativo”, contrapondo historiadores lusos e espanhóis (A Viagem do Descobrimento – Um olhar sobre a expedição de Cabral. Rio de Janeiro: Edição Brasil, 2016)
Coube ao grande historiador Capistrano de Abreu (1853-1927) sepultar a questão em 1900 ao afirmar que o “descobrimento sociológico” do Brasil coube aos portugueses que, lentamente, integraram a terra ao império ultramarino lusitano, demarcando a era das navegações (século XV ao século XVII), o ponto de partida do processo histórico da globalização.
Mal sabiam que o anúncio “terra à vista” era um território gigante de solo fértil e “águas infindas”, segundo Caminha. Não atendia interesses imediatos do apetite mercantilista. Portugal, então, terceirizou o processo colonizador. Donatarias, Governo-Geral que não pouparam a natureza exuberante em ciclos econômicos, deixando um rastro de destruição.
Os estudiosos da evolução histórica do país-continente divergem sobre quase tudo ao interpretar o passado e lançar olhares quanto ao nosso futuro, porém convergem no que diz respeito à diversidade cultural e aos contrastes que marcam a fisionomia socioeconômica do Brasil.
Neste sentido, admitindo, de um lado, a persistência dos contrastes e as falhas estruturais, a exemplo da desigualdade social, de outra parte, o Brasil revela potencialidades capazes de lhe assegurar um excepcional protagonismo na economia do século XXI.
Cabe observar os indicadores de um século atrás (meados da década de 20): população 33 milhões de habitantes; 80% viviam no campo e 70% eram analfabetos; a expectativa de vida, 35 anos; mortalidade infantil registrava a morte de mais de 160 crianças antes de completar 1 ano. Por sua vez o PIB per capita, em valores de hoje, era de US$ 2.400, ancorado numa indústria incipiente e na monocultura do café.
No Brasil atual, a expectativa de vida se aproxima dos 80 anos; a mortalidade infantil chega a 10,4 por mil nascidos: analfabetismo, apesar da precariedade do sistema educacional, gira em torno de 5%; a população urbana representa 88% do total da população; o PIB per capita atual é de US$ 23,2 mil.
Importante salientar que o Brasil dispõe de moeda sólida e uma democracia resistente que enfrentaram e superaram crises superpostas. A propósito, esclareço que não estou contaminado pela “síndrome de Poliana” muito menos afetado pelo personagem do célebre Voltaire na obra “Cândido ou o Otimismo”. Estas constatações servem para apontar em direção ao futuro e a necessidade de um redescobrimento do Brasil. Desta vez, com o que vá mais além e mais fundo do que imaginou Caminha.
Neste sentido, com a autoridade de um dos pioneiros da bioeconomia, agricultura e alimentos na União Europeia e membro fundador, em 2009, do primeiro Comitê Consultivo de Bioeconomia na Alemanha, Christian Patermann (1942) em novembro de 2019 (Guia Exame de Sustentabilidade) assim se referiu ao Brasil: “O reservatório de recursos biológicos do Brasil é imenso. O país tem praticamente tudo. A questão é como explorá-lo de modo sustentável e eficiente”.
De fato, aqui estão sete biomas, verdadeiros tesouros não somente para o equilíbrio ecológico do planeta, sobretudo pelo que unindo o conhecimento tradicional com avanços científicos e tecnológicos oferecem um “capital” adicional à natureza na descoberta de princípios ativos de fármacos e na ampliação revolucionária da sociobioeconomia.
O redescobrimento do Brasil é um futuro que chegou ou está batendo na porta, por exemplo, da nossa biodiversidade objeto do consórcio Genômica da Biodiversidade Brasileira (GBB), liderado pelo Instituto Chico Mendes da Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e o Instituto Tecnológico Vale Desenvolvimento Sustentável (ITV).
Por sua vez, a matriz energética brasileira á uma das mais limpas (45% de fontes renováveis) do mundo e será a base do hidrogênio verde; a nação produtora de alimentos responderá ao furor tarifário com mais produtividade e competitividade; e a “terra à vista” dos colonizadores não distinguiram “as terras-raras” (17 elementos químicos), insumos essenciais para uso em produtos de avançada tecnologia. O Brasil detém a segunda maior reserva mundo desses metais que têm um papel estratégico na economia mundial e na soberania tecnológica.
Faltam, porém, juízo e espírito público.
Ela foi incisiva: nada de decoreba; você não é um papagaio. Pense! Não se limite a estudar, apenas nos livros adotados pelo colégio; pergunte, não tenha receio da ignorância, aprenda duvidando; consulte o professor, os dicionários, as enciclopédias; mantenha acesa a curiosidade (não esqueço a tonalidade azul da coleção “O Tesouro da Juventude” nele inserido o “O livro dos porquês”); convivi com os personagens de Monteiro Lobato; curti as edições do “Almanaque Tico-Tico”, a primeira e a mais longeva revista para o público infanto-juvenil no Brasil (1911 e editada por 56 anos); os saberes maternos me apresentaram a Castro Alves, José de Alencar, Machado de Assis, Eça de Queiroz, “Os miseráveis” de Victor Hugo, romance que me marcou profundamente.
Pois bem, o resto ficou por minha conta. Sou leitor raso, mas um curioso atrevido. E foi este atrevimento que me levou a prestar atenção ao episódio do descobrimento (ou “achamento”) do Brasil. “A pátria amada” nasceu controversa: resultou da intencionalidade estratégica do reino português em ampliar rotas comerciais e domínio territorial do além-mar ou foi mera casualidade decorrente de fatores climáticos (a calmaria)? Outra questão polêmica resultou da precedência dos navegadores espanhóis (Vicente Pinzón e Diego de Lepe) que costearam o litoral brasileira entre Janeiro e março de 1500 antes, pois, da esquadra de Cabral. Isto rendeu nos anos 50, assinala Eduardo Bueno, um rancoroso “nacionalismo retroativo”, contrapondo historiadores lusos e espanhóis (A Viagem do Descobrimento – Um olhar sobre a expedição de Cabral. Rio de Janeiro: Edição Brasil, 2016)
Coube ao grande historiador Capistrano de Abreu (1853-1927) sepultar a questão em 1900 ao afirmar que o “descobrimento sociológico” do Brasil coube aos portugueses que, lentamente, integraram a terra ao império ultramarino lusitano, demarcando a era das navegações (século XV ao século XVII), o ponto de partida do processo histórico da globalização.
Mal sabiam que o anúncio “terra à vista” era um território gigante de solo fértil e “águas infindas”, segundo Caminha. Não atendia interesses imediatos do apetite mercantilista. Portugal, então, terceirizou o processo colonizador. Donatarias, Governo-Geral que não pouparam a natureza exuberante em ciclos econômicos, deixando um rastro de destruição.
Os estudiosos da evolução histórica do país-continente divergem sobre quase tudo ao interpretar o passado e lançar olhares quanto ao nosso futuro, porém convergem no que diz respeito à diversidade cultural e aos contrastes que marcam a fisionomia socioeconômica do Brasil.
Neste sentido, admitindo, de um lado, a persistência dos contrastes e as falhas estruturais, a exemplo da desigualdade social, de outra parte, o Brasil revela potencialidades capazes de lhe assegurar um excepcional protagonismo na economia do século XXI.
Cabe observar os indicadores de um século atrás (meados da década de 20): população 33 milhões de habitantes; 80% viviam no campo e 70% eram analfabetos; a expectativa de vida, 35 anos; mortalidade infantil registrava a morte de mais de 160 crianças antes de completar 1 ano. Por sua vez o PIB per capita, em valores de hoje, era de US$ 2.400, ancorado numa indústria incipiente e na monocultura do café.
No Brasil atual, a expectativa de vida se aproxima dos 80 anos; a mortalidade infantil chega a 10,4 por mil nascidos: analfabetismo, apesar da precariedade do sistema educacional, gira em torno de 5%; a população urbana representa 88% do total da população; o PIB per capita atual é de US$ 23,2 mil.
Importante salientar que o Brasil dispõe de moeda sólida e uma democracia resistente que enfrentaram e superaram crises superpostas. A propósito, esclareço que não estou contaminado pela “síndrome de Poliana” muito menos afetado pelo personagem do célebre Voltaire na obra “Cândido ou o Otimismo”. Estas constatações servem para apontar em direção ao futuro e a necessidade de um redescobrimento do Brasil. Desta vez, com o que vá mais além e mais fundo do que imaginou Caminha.
Neste sentido, com a autoridade de um dos pioneiros da bioeconomia, agricultura e alimentos na União Europeia e membro fundador, em 2009, do primeiro Comitê Consultivo de Bioeconomia na Alemanha, Christian Patermann (1942) em novembro de 2019 (Guia Exame de Sustentabilidade) assim se referiu ao Brasil: “O reservatório de recursos biológicos do Brasil é imenso. O país tem praticamente tudo. A questão é como explorá-lo de modo sustentável e eficiente”.
De fato, aqui estão sete biomas, verdadeiros tesouros não somente para o equilíbrio ecológico do planeta, sobretudo pelo que unindo o conhecimento tradicional com avanços científicos e tecnológicos oferecem um “capital” adicional à natureza na descoberta de princípios ativos de fármacos e na ampliação revolucionária da sociobioeconomia.
O redescobrimento do Brasil é um futuro que chegou ou está batendo na porta, por exemplo, da nossa biodiversidade objeto do consórcio Genômica da Biodiversidade Brasileira (GBB), liderado pelo Instituto Chico Mendes da Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e o Instituto Tecnológico Vale Desenvolvimento Sustentável (ITV).
Por sua vez, a matriz energética brasileira á uma das mais limpas (45% de fontes renováveis) do mundo e será a base do hidrogênio verde; a nação produtora de alimentos responderá ao furor tarifário com mais produtividade e competitividade; e a “terra à vista” dos colonizadores não distinguiram “as terras-raras” (17 elementos químicos), insumos essenciais para uso em produtos de avançada tecnologia. O Brasil detém a segunda maior reserva mundo desses metais que têm um papel estratégico na economia mundial e na soberania tecnológica.
Faltam, porém, juízo e espírito público.
Deuses, pátrias e famílias
Criado pelo fascismo italiano, o lema “Deus, pátria e família” foi replicado por movimentos e governos de extrema-direita, como o Integralismo no Brasil e o Estado Novo em Portugal. No nosso século, ele ressurge entre adeptos de uma nova Internacional Fascista. Mas de que Deus, de que pátria, de que família se trata?
Se há uma família no mito de origem do Brasil, ela tem um pai português e uma mãe indígena ou africana. E essa miscigenação não oculta a violência colonial que dizimou famílias e nações. Um estudo da Universidade de São Paulo (USP) analisou o genoma de milhares de brasileiros e verificou que, no DNA mitocondrial (herdado da mãe), predomina a ancestralidade indígena ou africana, e no DNA do cromossomo Y (herdado do pai), predomina a ancestralidade europeia.
Para os pesquisadores, os dados atestam a prática recorrente de acasalamentos entre homens europeus e mulheres indígenas ou africanas, resultantes de atos sexuais não-consentidos, somados à mortandade de homens que se insurgiam contra a colonização.
No Brasil atual, a família sob os holofotes é a família Bolsonaro. Após se tornar inelegível pela prática de crimes eleitorais, o patriarca virou réu num processo por tentativa de golpe de Estado, com o plano de matar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o vice-presidente Geraldo Alckmin e o ministro da Suprema Corte Alexandre de Moraes.
Nesta semana, o ministro decretou a prisão domiciliar de Jair Bolsonaro, depois que o réu descumpriu medidas cautelares, com a cumplicidade do filho, o senador Flávio Bolsonaro. Nos Estados Unidos, seu outro filho, o deputado Eduardo Bolsonaro, faz lobby para que o governo norte-americano mantenha tarifas comerciais abusivas contra o Brasil, como forma de chantagem pela libertação do pai.
Há uma ética mafiosa nessa trama que sequestra a coisa pública (Res Publica) em prol da coisa privada (a cosa nostra dos Bolsonaro). Em reação à prisão de Jair, parlamentares bolsonaristas obstruíram os trabalhos no Congresso, exigindo anistia aos golpistas que ameaçaram a democracia brasileira entre 2022 e 2023. Os supostos patriotas agora pedem a Deus para Donald Trump invadir seu país, situando os interesses da família acima da segurança da pátria.
Em Portugal, o deputado André Ventura defende que o ministro Moraes tenha a entrada proibida no país, como ocorreu nos EUA. Embora associado à ditadura, o bordão “Deus, pátria e família” encontra ressonância entre eleitores de Ventura. Mas sua concepção de família exclui as crianças, cujos nomes o deputado expôs no Parlamento, assim como as que seriam afastadas dos pais por empecilhos impostos ao reagrupamento familiar no pacote anti-imigração. São crianças sem alma, como se dizia dos indígenas e africanos que adoravam outros deuses, catequizados pelos jesuítas na gênese da pátria brasileira.
Enquanto não passarmos o slogan fascista para o plural, respeitando a existência de vários deuses, pátrias e famílias, ele vai ser manter como um tripé que sustenta o ódio à diferença e a crise das democracias.
Se há uma família no mito de origem do Brasil, ela tem um pai português e uma mãe indígena ou africana. E essa miscigenação não oculta a violência colonial que dizimou famílias e nações. Um estudo da Universidade de São Paulo (USP) analisou o genoma de milhares de brasileiros e verificou que, no DNA mitocondrial (herdado da mãe), predomina a ancestralidade indígena ou africana, e no DNA do cromossomo Y (herdado do pai), predomina a ancestralidade europeia.
Para os pesquisadores, os dados atestam a prática recorrente de acasalamentos entre homens europeus e mulheres indígenas ou africanas, resultantes de atos sexuais não-consentidos, somados à mortandade de homens que se insurgiam contra a colonização.
No Brasil atual, a família sob os holofotes é a família Bolsonaro. Após se tornar inelegível pela prática de crimes eleitorais, o patriarca virou réu num processo por tentativa de golpe de Estado, com o plano de matar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o vice-presidente Geraldo Alckmin e o ministro da Suprema Corte Alexandre de Moraes.
Nesta semana, o ministro decretou a prisão domiciliar de Jair Bolsonaro, depois que o réu descumpriu medidas cautelares, com a cumplicidade do filho, o senador Flávio Bolsonaro. Nos Estados Unidos, seu outro filho, o deputado Eduardo Bolsonaro, faz lobby para que o governo norte-americano mantenha tarifas comerciais abusivas contra o Brasil, como forma de chantagem pela libertação do pai.
Há uma ética mafiosa nessa trama que sequestra a coisa pública (Res Publica) em prol da coisa privada (a cosa nostra dos Bolsonaro). Em reação à prisão de Jair, parlamentares bolsonaristas obstruíram os trabalhos no Congresso, exigindo anistia aos golpistas que ameaçaram a democracia brasileira entre 2022 e 2023. Os supostos patriotas agora pedem a Deus para Donald Trump invadir seu país, situando os interesses da família acima da segurança da pátria.
Em Portugal, o deputado André Ventura defende que o ministro Moraes tenha a entrada proibida no país, como ocorreu nos EUA. Embora associado à ditadura, o bordão “Deus, pátria e família” encontra ressonância entre eleitores de Ventura. Mas sua concepção de família exclui as crianças, cujos nomes o deputado expôs no Parlamento, assim como as que seriam afastadas dos pais por empecilhos impostos ao reagrupamento familiar no pacote anti-imigração. São crianças sem alma, como se dizia dos indígenas e africanos que adoravam outros deuses, catequizados pelos jesuítas na gênese da pátria brasileira.
Enquanto não passarmos o slogan fascista para o plural, respeitando a existência de vários deuses, pátrias e famílias, ele vai ser manter como um tripé que sustenta o ódio à diferença e a crise das democracias.
Assinar:
Comentários (Atom)
.jpg?itok=bEBKThko)






