quinta-feira, 9 de junho de 2022

Brasil paleolítico

 


Governo entrega a Amazônia ao crime

A prisão do suspeito no caso do desaparecimento de Bruno Pereira e Dom Phillips é um passo importante. Amarildo da Costa Oliveira fez ameaças públicas ao indigenista, tinha munição de 762, fuzil peruano de uso restrito, e está cercado de outros indícios. Ele pode ser, neste sumiço, um fio da meada, mas esse caso revela o panorama geral de um Estado omisso e um governo que está entregando a Amazônia ao crime. Quadrilhas de grilagem, roubo de madeira, caça e pesca ilegais, tráfico de drogas e de armas avançam. Os indígenas, os ambientalistas, os indigenistas e jornalistas têm sido parte da resistência da sociedade.

A sucessão dos eventos no desaparecimento de Bruno e Dom dá uma noção da realidade. Inicialmente, só os indígenas procuravam, depois apareceu a Polícia Militar. Em seguida, veio a Polícia Civil para apoiar. Mas apoiar quem? A Polícia Federal não se envolvia muito no começo, a Marinha ficou em Atalaia do Norte e só ontem mobilizou helicópteros e embarcações. O Comando Militar da Amazônia, do Exército, disse que aguardava ordens superiores, depois disse que estava atuando, e na verdade só ontem passou a participar de fato das buscas. Começou procurando longe do local do desaparecimento. Só depois de muita pressão, durante a tarde da quarta-feira, as forças federais passaram a atuar de forma mais efetiva.


O general Plácido, do Comando Militar da Amazônia, disse que tinha mobilizado “homens e meios” para o cumprimento da missão. A entrevista dada ontem por todas as forças envolvidas dava a impressão de que o governo federal tinha de fato se mobilizado. Mas só se mexeram depois de um certo tempo, e a partir da pressão da sociedade e das lideranças indígenas. No final do dia, a luta dos indígenas era para manter preso o suspeito mesmo após a audiência de custódia. O secretário de Segurança Pública do Amazonas disse que não havia ligação entre o suspeito, Amarildo, e o crime. Mas os indígenas dizem que há testemunha das ameaças feitas por ele a Bruno Pereira. O repórter Daniel Biaseto revelou que o procurador de Atalaia do Norte é advogado do suspeito. O outro defensor é o procurador-geral da cidade vizinha, Benjamin Constant.

O quadro é desolador. Autoridades públicas querendo demonstrar que estão atuando, mas nada esconde a cena geral de um Estado omisso diante da tragédia da Amazônia e um governo que em muitos momentos estimulou diversos crimes ambientais. A rede de criminalidade ganhou musculatura no governo Bolsonaro, ameaça defensores da floresta de todas as formas. Os crimes cometidos terminam impunes. O amigo de Bruno Pereira, Maxciel dos Santos, foi morto em frente da família, em Tabatinga, em 2019, e mesmo três anos depois o inquérito da Polícia Federal não foi concluído. Os assassinos nunca foram punidos. Por isso, a sensação de impunidade com que mandavam ameaças a Bruno e aos líderes indígenas do Vale do Javari avisando que terminariam como Maxciel.

Maxciel havia trabalhado junto com Bruno quando o indigenista coordenou a Frente de Proteção Etnoambiental do Vale do Javari. Não era servidor efetivado da Funai, mas era com isso que sonhava e estava em vias de conseguir quando foi assassinado. Sua última atuação, antes de ser morto, foi uma fiscalização exatamente na mesma região onde Bruno desapareceu. Bruno é funcionário de anos da Funai, com experiência e sentido de missão. Pediu licença quando passou a ser perseguido dentro do órgão após ações efetivas como a que destruiu centenas de balsas em terra indígena. Ele saiu da Funai para seguir cumprindo sua missão de defender os povos indígenas. Esse é um quadro comum que se vê na Amazônia. Os servidores da Funai estão acuados ou ameaçados. Os líderes indígenas lutam muitas vezes sozinhos, assumindo o papel do Estado na defesa da floresta. Ambientalistas denunciam, tentam alertar, mostram os dados. Mas o crime tem avançado.

— Esse caso está tendo visibilidade, mas muitas ameaças e crimes têm acontecido contra milhares de defensores da floresta socados neste enorme interior da Amazônia. Esse é o modus operandi das quadrilhas — diz Leonardo Lenin, ex-coordenador de Índios Isolados da Funai, e hoje trabalhando no Observatório dos Direitos dos Povos Indígenas Isolados (OPI).

Um governo que aceita o avanço do crime sobre o território é uma ameaça à segurança nacional.

O homem, um escravo

O que deve um cão a um cão, um cavalo a um cavalo? Nada. Nenhum animal depende do seu semelhante. Tendo porém o homem recebido o raio da Divindade a que se chama razão, qual foi o resultado? Ser escravo em quase toda a terra. Se o mundo fosse o que parece dever ser, isto é, se em toda parte os homens encontrassem subsistência fácil e certa e clima apropriado à sua natureza, impossível teria sido a um homem servir-se de outro. Cobrisse-se o mundo de frutos salutares. Não fosse veículo de doenças e morte o ar que contribui para a existência humana. Prescindisse o homem de outra morada e de outro leito além do dos gansos e cabras monteses, não teriam os Gengis Cãs e Tamerlões vassalos senão os próprios filhos, os quais seriam bastante virtuosos para auxiliá-los na velhice.

No estado natural de que gozam os quadrúpedes, aves e répteis, tão feliz como eles seria o homem, e a dominação, quimera, absurdo em que ninguém pensaria: para quê servidores se não tivésseis necessidade de nenhum serviço? Ainda que passasse pelo espírito de algum indivíduo de bofes tirânicos e braços impacientes por submeter o seu vizinho menos forte que ele, a coisa seria impossível: antes que o opressor tivesse tomado as suas medidas o oprimido estaria a cem léguas de distância. Todos os homens seriam necessariamente iguais, se não tivessem necessidades. A miséria que avassala a nossa espécie subordina o homem ao homem - o verdadeiro mal não é a desigualdade: é a dependência.

Pouco importa chamar-se tal homem Sua Alteza, tal outro Sua Santidade. Duro porém é um servir o outro. Uma família numerosa cultivou um bom terreno. Duas famílias vizinhas têm campos ingratos e rebeldes: impõe-se-lhes servir ou eliminar a família opulenta. Uma das duas famílias indigentes vai oferecer os seus braços à rica para ter pão. A outra vai atacá-la e é derrotada. A família servente é fonte de criados e operários. A família subjugada é fonte de escravos. Impossível, neste mundo miserável, que a sociedade humana não seja dividida em duas classes, uma de opressores, outra de oprimidos. Essas duas classes subdividem-se em mil outras, essas outras num sem número de cambiantes diferentes. Nem todos os oprimidos são absolutamente desgraçados. A maior parte nasce nesse estado, e o trabalho contínuo impede-os de sentir toda a miséria da sua própria situação. Quando a sentem, porém, são guerras, como a do partido popular contra o partido do senado em Roma, as dos camponeses na Alemanha, Inglaterra, França. Mais cedo ou mais tarde todas essas guerras terminam com a submissão do povo, porque os poderosos têm dinheiro e o dinheiro tudo pode no Estado. Digo no Estado, porque o mesmo não se dá de nação para nação. A nação que melhor se servir do ferro sempre subjugará a que, embora mais rica, tiver menos coragem.

Todo o homem nasce com forte inclinação para o domínio, a riqueza, os prazeres e sobretudo para a indolência. Todo o homem portanto quereria estar de posse do dinheiro e das mulheres ou das filhas dos outros, ser-lhes senhor, sujeitá-los a todos os seus caprichos e nada fazer ou pelo menos só fazer coisas muito agradáveis. Vedes que com estas excelentes disposições é tão difícil aos homens ser iguais quanto a dois pregadores ou professores de teologia não se invejarem. Tal como é, é impossível o gênero humano subsistir, a menos que haja uma infinidade de homens úteis que nada possuam. Porque, claro é que um homem satisfeito não deixará a sua terra para vir lavrar a vossa. E se tiverdes necessidade de um par de sapatos, não será um referendário que vo-lo fará. Igualdade é pois a coisa mais natural e ao mesmo tempo a mais quimérica.

Como se excedem em tudo que deles dependa, os homens exageraram essa desigualdade. Pretendeu-se em muitos países proibir aos cidadãos sair do lugar em que a ventura os fizera nascer. O sentido dessa lei é visivelmente: este país é tão mau e tão mal governado que vedamos a todo o indivíduo dele sair, por temor que todos o desertem. Fazei melhor: infundi em todos os vossos súditos o desejo de permanecer no vosso Estado, e aos estrangeiros o desejo de para aí vir. Nos íntimos refolhos do coração todo o homem tem o direito de crer-se de todo o ponto de vista igual aos outros homens. Daí não segue dever o cozinheiro de um cardeal ordenar ao seu senhor que lhe faça o jantar; pode todavia dizer: “Sou tão homem como o meu amo; nasci como ele a chorar; como eu ele morrerá nas mesmas angústias e com as mesmas cerimônias. Temos ambos as mesmas funções animais. Se os turcos se apoderarem de Roma e eu me tornar cardeal e o meu senhor cozinheiro, tomá-lo-ei a meu serviço”. Tudo isso é razoável e justo. Mas, enquanto o grão turco não se assenhorear de Roma, o cozinheiro precisa de cumprir as suas obrigações, ou toda a humanidade se perverteria.

Um homem que não seja cozinheiro de cardeal nem ocupe nenhum cargo no Estado; um particular que nada tenha de seu mas a quem repugne o ser em toda a parte recebido com ar de proteção ou desprezo; um homem que veja que muitos monsignori não têm mais ciência, nem mais espírito, nem mais virtude que ele, e que se enfade de esperar nas suas antecâmaras, que partido deve tomar? O da morte.
Voltaire, "Dicionário Filosófico"

A Saúde era pior antes do SUS

O “Projeto de nação, o Brasil em 2035” — do Instituto General Villas Bôas — prevê o pagamento pelo uso do SUS a partir de 2025. Seu coordenador é o general Luiz Eduardo Rocha Paiva, ex-presidente da ONG Terrorismo Nunca Mais, criada pelo coronel Brilhante Ustra. O objetivo seria entregar um país melhor para a posteridade, porém mandando a conta da saúde para os mais pobres.

Na ditadura, os militares reforçaram um modelo de atenção à saúde excludente. A estrutura do Ministério da Saúde era baseada em “campanhas” de combate às endemias: febre amarela, malária, Chagas etc. A assistência médica era prestada aos trabalhadores urbanos por intermédio da Previdência Social; aos não empregados ou sem carteira de trabalho, pela filantropia (as Santas Casas). O serviço de emergência era às vezes oferecido por hospitais estaduais e municipais. Em meados dos anos 1970, o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) passou por sucessivas reformas, tendo sido criado o Inamps para a assistência médica dos segurados da Previdência.

No início dos anos 1980, a maior parte da população brasileira, 119 milhões, não tinha direito à assistência médica, e os que tinham acesso, via Previdência, eram atendidos por clínicas privadas contratadas sem qualquer controle. Em 1976, 96% das verbas para a saúde dos brasileiros foram para o setor privado.


A Previdência entrou em crise no início da década de 1980, e o governo militar, que já estava colapsando, se viu compelido a criar um plano de transformação. Surgiu então o Conselho Consultivo de Administração de Saúde Previdenciária (Conasp), um órgão colegiado que envolveu a participação de diversas entidades: órgãos do governo, sindicatos, associações médicas etc., com vista a elaborar um plano dirigido a reorganizar a assistência e conter as perdas. Com tanto dinheiro circulando no setor privado, o tema saúde vivia nas páginas policiais. O próprio SNI apontou num informe casos de corrupção na Superintendência do Rio de Janeiro.

Internações e atendimentos-fantasmas eram comuns. O setor privado abusava do comércio de sangue humano. Um negócio que envolvia moradores de rua, médicos inescrupulosos, políticos e multinacionais. Os bancos de sangue eram os maiores agentes de contaminação de aids no país.

As farmácias brasileiras comercializavam mais de 20 mil remédios baseados em 2.100 princípios ativos. Antes da Anvisa, apenas oito funcionários de uma repartição do Ministério da Saúde controlavam o setor. A criação da Central de Medicamentos foi importante para o desenvolvimento de laboratórios públicos. Mas esse modelo esbarrava em fortes interesses do setor privado. Logo as pressões políticas foram corroendo os objetivos da Central, que acabou não conseguindo cumprir sua missão.

O embrião do SUS nasceu da crise do Inamps dos anos 1980, quando começaram a ser financiadas experiências bem-sucedidas em diversos municípios brasileiros: Campinas, Florianópolis, Niterói etc. Aos poucos, muitos brasileiros começaram a ter assistência básica. O sucesso desse modelo foi responsável pelo surgimento de um amplo movimento, em que diferentes segmentos profissionais foram abraçando a ideia do direito à saúde. Essa onda era reforçada pelo retorno da democracia.

Uma demonstração do engajamento da sociedade pelos seus direitos foi o surpreendente fluxo de participantes da 8ª Conferência de Saúde, em 1986, o berço institucional do SUS.

Hoje, com todos os problemas, qualquer cidadão pode conseguir um transplante de órgão, uma complexa operação neurológica ou receber um atendimento básico. Mas o SUS corre o risco de colapsar, pois, ao longo da pandemia, muitos procedimentos não foram realizados. As previsões para 2023 não são boas, mas a ideia de que deva existir uma medicina pobre para os pobres ficou lá atrás.

Onde estão Bruno e Dom, Bolsonaro?

Parabéns, Bolsonaro, você conseguiu. Depois de três anos dedicado a entregar a Amazônia aos barões do desmatamento, garimpo, caça e pesca ilegais; aos invasores de terras, envenenadores de rios, algozes dos indígenas e abusadores de suas mulheres, pistoleiros profissionais e traficantes de ouro, madeira, animais e, agora, cocaína; a desmantelar a fiscalização que impedia a destruição da floresta; e a prostituir os ramos locais do Ibama, da Funai, da Polícia Civil, da Polícia Militar e do Exército, sua obra atingiu um novo clímax: o desaparecimento do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips.

Que, à espera só da confirmação, já podem estar mortos desde domingo. Tudo leva a essa conclusão: seus celulares não conseguem ser rastreados; o barco também desapareceu; e o sumiço se deu numa área limitada e familiar. Some a isso o histórico de ameaças a Pereira e a patada desfechada por você no próprio Phillips, numa entrevista em 2019, lembra-se? "A Amazônia é do Brasil, não é de vocês!". Mas a Amazônia não é mais do Brasil —Bruno, por exemplo, é brasileiro.


Os assassinos de Bruno e Dom, se já estavam certos da impunidade, viram-se ainda mais seguros diante do corpo mole das autoridades e do seu desprezo presidencial pelo caso, ao culpar os dois pela "aventura" e emitir um diagnóstico que nos envergonha como nação: "Eles podem ter sido executados", disse você, com notável tranquilidade.

O apagamento de brasileiros como Bruno Pereira é regra nessa Amazônia sem lei. Mas Dom Phillips é um cidadão britânico, credenciado por organizações internacionais de proteção ao meio ambiente e jornalista ligado a dois veículos poderosos: o inglês The Guardian e o americano The New York Times. Eles não deixarão barato e, de repente, você periga ter de engolir mais do que poderá mastigar.

O mundo já quer saber, Bolsonaro: onde estão Bruno e Dom?

Aconteceu mais uma tragédia no Vale do Javari?

Fiquei chocado com a notícia do sumiço de Dom Phillips e de Bruno Pereira no Vale do Javari, no domingo. É uma das regiões que concentra a maior quantidade de povos indígenas isolados do mundo. Agora, os dois viajantes estão sendo procurados nessa vasta área. Tive pouco contato pessoal com Dom Phillips, mas sempre li com interesse as matérias dele sobre o Brasil, publicadas no jornal britânico The Guardian. A Amazônia claramente foi o foco do seu interesse.

Sempre me lembro da participação de Philips num café da manhã do presidente Jair Bolsonaro com a imprensa estrangeira, em julho de 2019. Na ocasião, Phillips perguntou ao presidente sobre o crescimento "assustador" do desmatamento na Amazônia. A resposta de Bolsonaro virou um clássico: "Primeiramente, você tem de entender que a Amazônia é do Brasil. Não é de vocês", respondeu um visivelmente irritado Bolsonaro.

Depois, o presidente suspeitou dos interesses de ambientalistas estrangeiros pela Amazônia e colocou em dúvida os números do desmatamento. "Nós preservamos mais que todo mundo! E nenhum país do mundo tem moral de falar sobre a Amazônia. Porque vocês destruíram seus ecossistemas praticamente. Mas só cobram de nós."

Depois, o general Augusto Heleno, sentado entre Bolsonaro e Phillips, pegou o microfone, acusando que "a maioria dos grandes defensores da Amazônia nunca botaram o pé lá".

Dom Phillips com certeza botou seus pés várias vezes na Amazônia. E ainda mais Bruno Pereira, um dos mais respeitáveis indigenistas do Brasil.

Caminhão circula em Los Angeles, onde ocorre a Cúúça das Américas, com imagens
de Dom Phillips e Bruno Pereira e pergunta: 'Ameaçados, e agora desaparecidos. Onde estão Dom e Bruno?'


Tive mais contato com Pereira do que com Phillips. Conversamos em diversas ocasiões e o entrevistei várias vezes. Ele contou sobre suas expedições no Vale do Javari, para entrar em contato com indígenas dos povos korubo e matis. Como coordenador-geral de Índios Isolados e de Recém Contatados da Fundação Nacional do Índio (Funai), Pereira falava sobre a falta de verba para proteger essa vasta área de selva – principalmente frente ao aumento da violência naquela região.

Pereira fez relatos sobre os ataques às bases da Funai e o aumento das atividades ilegais de garimpeiros, madeireiros e caçadores, além de traficantes de drogas e de peixes ornamentais. A demissão de Pereira pelo governo Bolsonaro, em outubro de 2019, foi vista como um péssimo sinal pelos indigenistas brasileiros. Eles temiam que o desmanche da Funai na região anunciava um genocídio dos povos isolados no Vale do Javari.
Construção de narrativa por Bolsonaro

Infelizmente, há de se temer que tanto Pereira como Phillips tenham sido vítimas da crescente violência naquela parte da Amazônia. Havia ameaças contra Pereira, pois seu trabalho pôs muita gente em rota de conflito com ele.

Ainda resta esperança, espero. Mas a notícia triste pode vir a qualquer momento. De repente, justamente enquanto o Bolsonaro estiver na Cúpula das Américas, em Los Angeles, onde a proteção da Amazônia será um tema importante na agenda do presidente americano, Joe Biden. Bolsonaro poderia declarar a Amazônia uma região controlada pelo governo brasileiro, se, ao mesmo tempo, chegar a triste notícia de um crime cometido lá?

Bolsonaro já começou com a construção de uma narrativa: classificou, numa entrevista para uma emissora de televisão, como "aventura não recomendável" o trabalho de Pereira e Phillips no Vale do Javari. "Pode ser acidente, pode ser que eles tenham sido executados", disse.

O Exército brasileiro quase demorou 48 horas para iniciar suas buscas, depois de vários apelos de familiares e organizações da sociedade civil. Há quem fala do aparentemente pouco interesse do governo de realmente ajudar nas buscas. Bom lembrar que o Comando Militar da Amazônia já foi liderado pelo general Augusto Heleno. Sabemos o que ele pensa sobre jornalistas estrangeiras que se metem em assuntos (e matos) brasileiros.
Terra sem lei

Eu também já botei meus pés na Amazônia, como muitos dos correspondentes estrangeiros que trabalham no Brasil. Viajei com frequência pela região durante os últimos 25 anos. Passei um tempo num garimpo ao sul de Manaus, como, também, com Davi Kopenawa na aldeia yanomami onde ele vive em Roraima. Vi o sofrimento dos tenharins, quando os líderes deles foram atacados e acusados depois do sumiço de brancos no território indígena. Viajei com uma equipe do Greenpeace em tempos de ameaças de morte contra os ativistas.

Mas encontrei também soldados da Força Nacional e do Ibama, que, estacionados no meio da selva, temiam ataques por garimpeiros. Fui surpreendido, numa viagem com agentes do Ibama, por queimadas no meio da selva. Vi desmatamento ilegal, gado em terras supostamente protegidas e grupos evangélicos na missão de evangelizar os indígenas. Enquanto isso, vi cada vez mais cartazes nas estradas e adesivos em 4x4 que circulam na Amazônia com fotos de Bolsonaro. A Amazônia virou um dos núcleos mais fortes do bolsonarismo.

Ao mesmo tempo, vejo a Amazônia se tornando cada vez mais uma terra sem lei. Eis a minha impressão. Torço muito que Dom Phillips e Bruno Pereira possam escapar desse pesadelo.