quarta-feira, 6 de junho de 2018

Ativismo libertador de Gilmar incomoda colegas

Cresce no Supremo Tribunal Federal o incômodo com a desenvoltura com que Gilmar Mendes, o libertador, põe em prática a sua política de celas vazias. Gilmar solta no atacado os investigados por corrupção que o juiz Marcelo Bretas manda prender no varejo, à medida que avançam as investigações contra os esquemas que saquearam os cofres do Rio de Janeiro. Num intervalo de 21 dias —15 dias úteis se forem descontados os finais de semana— Gilmar acionou sua chave suprema para abrir as celas de 19 presos.

Abre parêntese: Na noite desta terça-feira, após a veiculação deste comentário, Gilmar soltou mais um. Agora já são 20 os beneficiários do ativismo libertário do ministro. Fecha parêntese.


A desenvoltura com que Gilmar solta os presos acaba consolidando uma visão do ministro sobre o trabalho do juiz que concentra os casos da Lava Jato no Rio de Janeiro. É como se o ministro do Supremo expedisse uma sentença contra as decisões do juiz da primeira instância. Fica a impressão de que, se pudesse, Gilmar mandaria prender Bretas, condenando-o por incompetência —ou por eficiência excessiva.

Consolida-se entre colegas de Gilmar a sensação de que as críticas à atuação do ministro contaminam a imagem do próprio Supremo. E não se está falando aqui do ministro Luís Roberto Barroso, desafeto de Gilmar. A inquietação chegou a outros gabinetes. Juízes de primeira instância romperam uma tradição. Antes, nenhuma revelação abalava o prestígio de políticos e empresários. Desmascarados, eles continuavam enchendo as colunas sociais. Hoje, eles enchem as celas que Gilmar esvazia. O Supremo precisa decidir de que lado está.

Brasil, sil, sil!


Do auxílio-moradia à fisioterapia

Numa iniciativa que dá a medida exata do grau da desconsideração que o Poder Judiciário tem para com os contribuintes, num momento em que a União enfrenta grandes dificuldades financeiras para prestar serviços públicos com um mínimo de qualidade, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) acaba de publicar edital que prevê gastos de até R$ 102,6 mil para aquisição de material de “reabilitação fisioterápica” para seus servidores.

A Corte é o braço do Poder Judiciário com menor demanda de serviços e conta com 879 funcionários que – a exemplo dos servidores dos demais tribunais do País – estão entre os mais bem pagos da administração pública. Ao justificar a aquisição desses equipamentos, a Corte alegou que eles são usados para evitar afastamentos de servidores “por motivos de tratamento relacionados ao sistema musculoesquelético”. Entre os 41 itens da lista de compra, destacam-se um redemoinho para utilização em braços e pernas, esteiras ergométricas, máquina de gelo em cubo com revestimento de aço e bicicleta. O edital também prevê a aquisição de um aparelho de ultrassom terapêutico e de uma caixa de som portátil com conexão bluetooth e exige que todos os equipamentos sejam novos. O TSE alega que, para a saúde de seus ministros e servidores, não convém a utilização de equipamentos médico-hospitalares recondicionados.


Todo esse material irá compor uma “seção de atenção fisioterapêutica” que foi criada há três semanas pelo presidente da Corte, ministro Luiz Fux, com o objetivo de marcar sua curta gestão à frente do TSE. Seu mandato começou em 6 de fevereiro deste ano e terminará no dia 15 de agosto. Fux se tornou conhecido há quatro anos, quando acolheu uma reivindicação de associações de juízes e autorizou – por meio de uma liminar até hoje não julgada pelo Supremo Tribunal Federal – o pagamento de auxílio-moradia para todos os magistrados brasileiros, inclusive os que têm casa própria na cidade em que atuam.

Juntamente com as dezenas de penduricalhos pagos a magistrados e servidores a título de verba remuneratória, as seções de fisioterapia custeadas pelos contribuintes fazem parte do cotidiano dos suntuosos palácios da Justiça brasilienses projetados por Oscar Niemeyer – quase todos com instalações majestosas para ministros, mobiliário luxuoso, pórticos, área de lazer, cozinhas e copas. Só no Supremo Tribunal Federal, onde há três consultórios de atendimento fisioterápico abertos das 13 às 19 horas, trabalham quatro profissionais com remuneração média de R$ 16.957,90 por mês. Além disso, a mais alta Corte do País gasta mensalmente R$ 31,9 mil com a manutenção dos equipamentos. Já no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que é a mais alta Corte da Justiça Federal, há seis consultórios nos quais trabalham cinco fisioterapeutas concursados. Alguns Tribunais Regionais Federais também dispõem do mesmo serviço.

No caso do TSE, cuja construção foi estimada em R$ 89 milhões na época do lançamento do projeto arquitetônico, em 2007, e acabou tendo um custo total superior a R$ 400 milhões ao final da obra, em 2011, os gastos de dinheiro público com atendimento fisioterapêutico de seus magistrados e servidores são ainda mais extravagantes. Isto porque a Corte é integrada por apenas sete ministros efetivos – dos quais três pertencem ao STF e dois ao STJ – e tem uma demanda de trabalho sazonal. Ela atua basicamente nos períodos eleitorais, a cada dois anos.

A verdade é que nada justifica o uso de dinheiro dos contribuintes para a criação de uma “seção de atenção fisioterapêutica” no TSE. Além de servir a uma minoria de privilegiados, o que é imoral, sua instalação é um irresponsável desvio de função de uma corte judicial, que reafirma uma tradição de gestão perdulária do Poder Judiciário que não dá sinais de ser abandonada. Em vez de gastar recursos escassos com privilégios, a Justiça melhoraria muito sua imagem se concentrasse seus gastos em obras e serviços prioritários, dispensando a quem depende de seus serviços o tratamento digno e eficiente a que tem direito.

Como planos de saúde, recordistas em reclamação, se tornaram tão poderosos

Quando tinha 19 anos, Nínive Loriane Ferreira engravidou do namorado. Na época, ela já trabalhava na Unas Heliópolis – organização que reúne associações de moradores do bairro – e, com a carteira assinada, veio o benefício do convênio médico empresarial. Apesar da pouca idade, Nínive, já a responsável financeira pela casa onde morava com a mãe, conta que levou adiante a gravidez com muito amor e cuidado, fazendo o pré-natal no SUS, porque o plano de saúde era novo e o prazo de carência não venceria até a hora do parto. “Eu usava o convênio muito de vez em quando e só para emergências, porque sabia que para isso não havia carência”, lembra a moça, hoje com 28 anos. Por isso, não hesitou em descer do ônibus que passava próximo ao Hospital Bosque da Saúde quando, aos sete meses de gestação, começou a sentir dores muito fortes na barriga. “Eu não sabia o que era, só sentia muita dor e sabia que não estava na hora de o bebê nascer. Então desci e fui para a emergência do hospital que estava mais próximo e que sabia que era coberto pelo meu plano”, conta. Ao examiná-la, a médica constatou que seria preciso internar imediatamente para um parto prematuro. “Ela disse que não dava tempo de transferir a gente de hospital e que nós dois corríamos risco de vida.”

Nínive diz que, ao mesmo tempo, o plano não autorizou o procedimento e o administrativo do hospital informou que só internaria a gestante se ela assinasse um contrato comprometendo-se a arcar com a dívida hospitalar. “Eu não estava em condições de assinar, a essa altura minha bolsa já tinha rompido, tinha passado muito tempo; e o pai do bebê, desesperado e também sem saber o que fazer, acabou assinando por mim.” O parto foi feito às pressas e o bebê prematuro, colocado em uma incubadora, na UTI do hospital. “Me disseram que o pulmãozinho dele não estava pronto, mas que ele ficaria bem”, lembra Nínive, que foi mandada para casa algum tempo após a cirurgia, enquanto seu filho permaneceu internado. “Eu tirava leite e ia levar pra ele todo dia, mas fui muito maltratada no hospital o tempo todo. Ninguém falava comigo direito, não me diziam o que ele tinha."

No terceiro dia, quando cheguei com o leite, fiquei sabendo que ele estava sendo transferido para o Hospital das Clínicas porque eu não tinha pago ainda nem metade dos 10.000 reais que eles estavam cobrando até então. Eles expulsaram meu filho, tiraram da UTI e mandaram para o HC sem me avisar.” Ela conta que o bebê foi internado no hospital público em estado grave e que após sete dias a médica a chamou e deixou segurar seu filho no colo pela primeira vez. “No dia 7 de setembro, logo depois disso, me ligaram dizendo que ele precisaria de uma cirurgia porque estava com uma infecção generalizada e que tudo aquilo estava acontecendo porque ele não poderia ter sido transferido da UTI, sem oxigênio, sem cuidado nenhum, como fizeram. Ele acabou falecendo. Era muito pequenininho, não resistiu.”


Nínive conta que o choque foi tão grande e ficou tão abalada que, em luto, não pensou em tomar alguma providência contra o hospital. “Só caiu a ficha quando recebi o processo do hospital, dizendo que eu tinha que pagar a conta”, lembra. “Aí entrei com um processo contra eles também. Eu ganhei o processo, mas eles ganharam a causa contra mim porque na época eu ainda não tinha advogado. Por causa disso, eu tenho um bloqueio na minha conta e no meu nome, não posso alugar apartamento, não posso comprar nada até meu advogado conseguir reverter a decisão. Na época eu fiquei doida, minha revolta e tristeza foram muito grandes. Eles são os culpados pelo meu filho ter morrido e ainda me processam. Esses convênios tratam a gente que nem lixo.”

Histórias como a de Nínive não são raras no universo dos convênios médicos no Brasil. Um indicador disso é que em 2017 foram julgadas mais de 30.000 ações contra planos de saúde somente no Estado de São Paulo, segundo o Observatório da Judicialização da Saúde Suplementar do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP. De acordo com o levantamento, o volume de decisões é o maior já registrado na história. Em 2011 foram julgadas 7.019 ações, ou seja, houve um crescimento de 329% em sete anos. O Observatório apurou também que entre 2011 e 2017 o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) julgou, em segunda instância, mais causas envolvendo planos de saúde (70.666 decisões) do que demandas relacionadas ao SUS – Sistema Único de Saúde (53.553 decisões). A maioria das reclamações, segundo o advogado e um dos autores do estudo Rafael Robba, se refere à exclusão de coberturas ou negativas de atendimentos (40% das decisões) e o segundo motivo (24% das decisões) envolve reclamações sobre reajustes de mensalidades No Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), por exemplo, os convênios médicos lideram o ranking de reclamações há seis anos consecutivos. O Idec não identifica as empresas nesse ranking, mas destaca que a maior parte das queixas (44,5%) está relacionada aos reajustes abusivos nas mensalidades.

O caso do arquiteto Giancarlo Morettoni Jr. se enquadra em um dos motivos citados pela pesquisa do Observatório da Judicialização. Em 2015, ele foi diagnosticado com mieloma múltiplo – um tipo de câncer de medula que afeta as células plasmáticas. Como seu plano de saúde era relativamente novo e ainda havia carência para internação, ele iniciou o tratamento quimioterápico pelo SUS. No final de 2016, necessitando de transplante de medula óssea e com as carências vencidas, buscou o procedimento pelo convênio. “Em vez da autorização recebemos uma notificação, em maio de 2017, dizendo que o contrato estava cancelado”, conta sua companheira, Alexandra Morettoni. “Nós ficamos muito assustados, fomos buscar respostas no convênio, que nos tratou com muito descaso, dava informações vagas, quando dava, e perdemos algum tempo nisso – tempo que é muito precioso para alguém com câncer. Então, procuramos a ANS [Agência Nacional de Saúde Suplementar] que nos informou que em casos de planos empresariais o contrato poderia mesmo ser cancelado por parte da operadora, mas que ela deveria nos oferecer um plano particular sem carências. Quando alegamos isso, a operadora disse que estava com a migração suspensa e que isso se caracterizaria nova venda”.

Alexandra conta que, enfim, a família resolveu contratar advogados, ainda que em dificuldades financeiras, e que apenas com uma liminar do juiz o tratamento continuou e o transplante aconteceu. “Protocolamos uma queixa na ANS e a resposta veio meses depois, apoiando o convênio. Se ficássemos aguardando, mais meses teriam prejudicado o tratamento dele. Desde o início fomos enganados, o tratamento foi protelado, meses preciosos foram perdidos por causa de respostas confusas e espera. É muito difícil para o paciente e para o responsável entenderem o processo necessário para um tratamento de mieloma múltiplo. Eu acreditava nas respostas que recebia do convênio. Quando você está há meses num hospital entre a vida e a morte, inconsciente, ou acompanhando alguém nessa situação, não tem a menor chance de verificar tecnicamente se o que estão fazendo é certo ou errado, não é tão simples. A atuação dos advogados foi fundamental. Nós não conhecemos nossos direitos, mas os convênios conhecem e os driblam muito bem.”

O advogado Leandro Souto da Silva, que atuou no processo de Giancarlo e tem experiência em casos parecidos, diz que a judicialização é tão forte que já existem entendimentos formados sobre diversas matérias relacionadas aos planos de saúde. “O Tribunal de Justiça de São Paulo tem súmulas de entendimento sobre convênios, o STJ também. Quando a gente parte para o tribunal, já vai geralmente com algum precedente porque já existem entendimentos-padrão para as reclamações. Em alguns casos, o convênio até tenta fazer um acordo, mas geralmente eles levam até o fim. É curioso porque, se você pensar em telefonia, TV a cabo, celular, se você pede para fazer portabilidade para outra operadora, a sua operadora entra num desespero enorme para te manter. O convênio não. Se você pede para mudar para outra operadora, ele nem te procura, tanto faz, ele sempre vai ter alguém. Porque é muita gente, porque é um mercado que movimenta muito dinheiro, mas principalmente porque eles têm um respaldo que vêm de cima.”

Para compreender melhor essa sensação de que “convênio pode tudo” e de onde vem esse “respaldo”, é preciso falar em números grandiosos. Hoje, no Brasil, mais de 47 milhões de pessoas utilizam planos de saúde empresariais ou particulares. Isso corresponde a quase um quarto da população. São 779 operadoras no país que movimentaram mais de 170 bilhões de reais em 2017, segundo a ANS. Só para ter uma ideia, no mesmo período, o Governo brasileiro disponibilizou 125,3 bilhões de reais para o Ministério da Saúde, 44,7 bilhões de reais a menos – lembrando que 70% da população brasileira depende exclusivamente do SUS. Ainda de acordo com o IBGE, em 2015, 9,1% do PIB foram gastos com saúde no país. Desse valor, 3,9% foram gastos públicos e 5,2%, privados. Ou seja: atualmente a saúde suplementar no Brasil, responsável por cerca de 30% dos atendimentos, movimenta mais verbas do que a saúde pública gratuita e universal, responsável pelo atendimento a 70% da população e, ainda, por uma atenção básica que envolve vacinas e prevenção que atende também os usuários de planos. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) finalmente decidiu que os planos de saúde devem pagar ressarcimento ao SUS quando encaminham pacientes à rede pública – uma briga antiga que já acumula mais de 5,6 bilhões de reais em dívidas. Para além disso, é válido lembrar que uma das primeiras medidas de Michel Temer ao assumir a Presidência em 2016 foi propor e aprovar a PEC 241, conhecida como a PEC do Teto de Gastos, que entre outras coisas limita os investimentos em saúde durante os próximos 20 anos.

É ridículo

Do meu carro eu já me livrei, mas conservamos um veículo na família, que minha mulher usa para trabalhar diariamente e que nos leva ao sítio aos fins de semana. É uma caminhonete a diesel.

Confesso que experimentei um prazer meio perverso quando, na sexta-feira, paguei menos para encher o tanque, mas isso não me impede de constatar que é ridículo que minhas viagens ao sítio estejam sendo subsidiadas pelo governo. Para dar mais concretude ao caso, é a família que ganha dois salários mínimos e compromete quase 50% de sua renda com o pagamento de tributos que está ajudando a financiar meu lazer. E essa conta agora deve ficar ainda mais salgada.

Subsídios sempre introduzem distorções. Basta lembrar que um bom pedaço dos infortúnios dos caminhoneiros teve origem nos subsídios para a compra de veículos pesados oferecidos principalmente durante o governo Dilma. Só em 2015, foram R$ 34 bilhões. Tamanha facilidade para comprar um caminhão acabou criando a superoferta de serviços de transporte que agora joga no chão o preço do frete.

Encontramos deturpações desse gênero onde quer que olhemos: Simples, Zona Franca de Manaus, sem mencionar outros desvirtuamentos como universidades públicas que não cobram mensalidades etc. Como mostrou reportagem da Folha publicada domingo, nos últimos 15 anos, o país gastou R$ 4 trilhões (em torno de 60% do PIB) com subsídios. É bastante provável que alguns desses incentivos se justifiquem. O problema é que não sabemos disso, pois não há uma política consistente de avaliação dos programas.

Num país com uma estrutura tributária regressiva como o Brasil e no qual categorias mais organizadas não têm dificuldade de arrancar prebendas do governo, subsídios são no mais das vezes tirar dinheiro dos mais pobres para dar aos mais ricos. É o Robin Hood ao contrário que pega do caixa comum para encher o meu tanque de combustível.

Hélio Schwartsman