quinta-feira, 26 de março de 2020

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Como choram os mortos na Itália

Como em um filme de Pasolini

Bolsonaro dobra a aposta. Não se sabe exatamente baseado em que tipo de evidências, o presidente joga sua autoridade e o que lhe resta de credibilidade na tese de que a pandemia será passageira, no Brasil, e terá menos letalidade do que o quase-consenso da comunidade médica vem apontando.

O recente relatório apresentado pelo Imperial College, em Londres, aponta que, em um quadro em que nada de substancial for feito, a pandemia pode gerar mais de dois milhões de mortes nos Estados Unidos e pouco mais de meio milhão na Inglaterra.

O relatório fez com que o governo britânico adotasse decisões mais duras e incentivou a escalada de medidas de isolamento, no plano global. A Índia, com seus 1,3 bilhão de habitantes, entrou em lockdown nacional por 21 dias, tendo registrado apenas um quarto do número de mortes já identificadas no Brasil, em função da Covid-19.

Há uma tendência global nesta direção. O The New York Times, em editorial, fez um apelo ao presidente Trump para que lidere uma reclusão americana por duas semanas, de forma a interromper a espiral de contágio e permitir medidas mais focalizadas, daí para diante.

O mundo pode estar errado e Bolsonaro pode estar certo. Há uma vaga aposta na transmissão mais lenta, em climas quentes, e na ideia de que gente jovem e saudável dificilmente terá problemas, caso for contaminada.

Isto é obviamente equivocado. Bolsonaro não tem base técnica para fazer este tipo de afirmação e não deveria fazê-lo. Alguém pode chegar à Presidência da República seguindo sua intuição, andando na contramão e agindo de modo errático. Mas nada disso funciona para combater uma pandemia desta gravidade.

Não há qualquer dúvida de que medidas rápidas e duras de isolamento social são necessárias e já deveriam ter sido implementadas em larga escala no país.

Afirmar isto não significa que se deve desconsiderar os impactos econômicos da crise. É uma falsa dicotomia, típica de nosso debate político polarizado, imaginar que exista uma contradição entre “salvar vidas” e “proteger a economia”.

Thomas Friedman lançou esta discussão em um artigo recente, sugerindo uma abordagem em três etapas: o isolamento total, a realização massiva de testes e mapeamento de riscos, por região e perfis populacionais, e (no prazo que for tecnicamente adequado), o retorno coordenado ao trabalho.

Bastou apresentar estas ideias bastante óbvias para que fosse chamado de “darwinista social” e outros impropérios. Sua ideia mais elementar diz simplesmente que, respeitando-se a absoluta prioridade que se deve dar à preservação da vida, “o emprego e o estado geral da economia é também um tema de saúde pública”.

Se isto é verdade em uma economia como a americana, que vem de um ciclo de quase pleno emprego, o é ainda mais em um país como o Brasil, que ainda não se recuperou da brutal crise de 2015/2016, que levou (segundo dados do IBGE) mais de 4,5 milhões de pessoas a cruzarem, para baixo, a linha de miséria.

A pergunta óbvia: o que fazer se a taxa de desemprego no país aumentar em 50% e outros 4,5% de cidadãos somarem-se aos atuais 13,5 milhões de brasileiros em condição de miserabilidade? Que danos e quantas mortes isto irá produzir?

É previsível que este tema não interesse e pareça mesmo irritante para a classe média alta que possui poupança ou se sente segura em seus empregos, em particular no setor público. E muito menos aos mais ricos, que irão desestressar em Miami, quando tudo passar.

Consequências não intencionais da ação, na expressão há muito consagrada por Robert Merton, nunca parecem interessar para aqueles que não irão pagar a conta depois da tempestade. A solução para a crise que vivemos começa quando nosso sistema político resolver se desligar do “modo internet” e do clima de permanente campanha eleitoral em que se meteu.

Ou então terminaremos como naquele filme de Pasolini, com sua estranha mistura de nonsense e divertimento sádico, em meio à tragédia.
Fernando Schüler

Bolsonaro usa o terrorismo como estratégia de poder

No fim dos anos 1980, Jair Bolsonaro se lançou candidato a vereador após ser absolvido da acusação de planejar atentados a bomba em quartéis, num julgamento controverso. Mais de três décadas depois, ele decidiu usar outro tipo de terrorismo como estratégia política.

Ao ignorar recomendações de especialistas por medidas de distanciamento contra o coronavírus, o presidente afirmou que o caos reinará se a economia não voltar logo ao normal. Nesta quarta, ele disse que o governo não terá como pagar funcionários públicos, supermercados serão saqueados e o país corre risco de uma ruptura democrática.

“Se nós não acordarmos para a realidade, daqui a poucos dias poderá ser tarde demais”, declarou.

Por semanas, o presidente ancorou uma campanha de negação dos riscos do coronavírus, criticando o que chamava de pânico e histeria. Agora, ele agiu rápido para instrumentalizar o desespero a seu favor.

Bolsonaro só consegue enxergar a ruína de um dos lados dessa crise. Ele continua minimizando as chances de contaminação em massa e do colapso de sistemas de saúde. Reconhece apenas a ameaça de desmoronamento econômico, em nome de ganhos políticos individuais.

A falsa cegueira cumpre duas funções. O presidente já conseguiu empurrar para os governadores parte do ônus da inevitável desaceleração provocada pela restrição à circulação de pessoas. O discurso, além disso, deixa a porta aberta para uma postura ainda mais radical e para a adoção de medidas de exceção.

A desordem sempre foi o campo político de Bolsonaro. A ameaça de agitação e devastação é sua ferramenta favorita para intimidar adversários e desmerecer seus críticos.

A agonia econômica é um perigo real, mas o presidente não oferece nenhuma saída concreta. Não explica como o governo vai preservar a saúde de quem voltar ao trabalho e propõe uma retomada sem qualquer planejamento, depois desmentida pelo próprio vice-presidente. Bolsonaro só quer deixar o medo no ar.

Na boca do monstro

Se estivesse pensando em mim, lavaria as mãos e jogaria para a platéia, como fazem uns. Penso no povo, que logo enfrentará um mal ainda maior do que o vírus se tudo seguir parado. Não condenarei o povo a miséria para receber elogio da mídia ou de quem até ontem assaltava o país!
Jair Bolsonaro

'Se tudo correr bem, quarentena pode durar dois a três meses – mas só resolverá o problema nos países ricos…'

Há cinco anos, numa conferência TED Talk, o milionário e filantropo Bill Gates lançou o aviso de que a Humanidade se deveria preparar para uma epidemia. Agora, quando o mundo assiste, mais ou menos impotente, à concretização dessa sua previsão e ao crescimento do número de casos e de mortes provocados pela epidemia da Covid-19, o fundador da Microsoft afirma que o mundo tem de estar preparado para um combate global ao novo coronavírus, que pode prolongar-se durante mais tempo do que alguns esperavam no início.
A análise à atual pandemia e à necessidade de prevenir as futuras foi feita por Bill Gates durante uma entrevista numa sessão de Ask Me Anything, da rede social Reedit. Depois, o próprio Bill Gates publicou a transcrição das perguntas e respostas na sua página GatesNotes. Eis algumas das suas lições:

Esperanças e receios na crise atual – “Com as ações certas, incluindo os testes e a distância social (a que chamo “shut down”) dentro de 2 a 3 meses os países ricos podem ter conseguido evitar níveis elevados de infeção. Tenho medo das consequências económicas, mas temo ainda mais como isto afectará os países em desenvolvimento, onde não se pode praticar a distância social como nos países ricos, e onde a capacidade hospitalar é muito menor.”

Esperar 18 meses pela vacina – “Vamos precisar, literalmente, de milhares de milhões de vacinas para proteger o mundo. As vacinas exigem testes para garantir que sejam seguras e eficazes, além de cadeias de fabrico novas. As primeiras vacinas que recebermos irão para profissionais de saúde e trabalhadores críticos. Isso pode acontecer antes de 18 meses, se tudo correr bem, mas nós e o dr. Fauci e outros temos o cuidado de não prometer isso, já que não temos a certeza. O trabalho está indo a toda velocidade.”


Tratamento eficaz antes da vacina – “Uma terapêutica pode estar disponível bem antes da vacina. Idealmente, isso reduziria o número de pessoas que precisam de cuidados intensivos, incluindo ventiladores. Pode ser um anti-viral, um anticorpos ou qualquer outra coisa. Uma ideia que está a ser explorada é a de usar o sangue (plasma) das pessoas que foram consideradas curadas. Se funcionasse, essa seria a maneira mais rápida de proteger os profissionais de saúde e os pacientes com doenças graves.”

Exemplo da China – “Depois de 23 de janeiro, quando perceberam o quanto era sério, os chineses instituíram um forte isolamento social, que fez toda a diferença. Outros países irão fazer isso de forma um pouco diferente, mas acredito que uma combinação entre testes e isolamento social funciona claramente. E é o melhor que temos para combater a epidemia até termos uma vacina.”

Até quando isto vai durar? - Isso vai variar muito de país por país. A China está a ter muito poucos casos agora porque os seus testes e quarentenas foram muito eficazes. Se um país conseguir fazer bem esse trabalho, em 6 a 10 semanas pode fazer diminuir o número de casos e abrir-se outra vez.

Há perigo de novos surtos depois de terminada a quarentena? - “Depende de como se lidar com as pessoas vindas de outros países e de quantos testes se fizerem. Até agora, na China, eles estão a fazer um bom trabalho, a controlar com muito rigor as pessoas que entram no país e a identificar, de imediato, os infetados. Hong Kong, Taiwan e Singapura também estão a fazer um bom trabalho.

A carta da renúncia

A tese do afastamento do presidente viralizou nas instituições. O combate à pandemia já havia unido o país, do plenário virtual do Congresso Nacional ao toque de recolher das favelas. Com o pronunciamento em rede nacional, o presidente conseguiu convencer os recalcitrantes de que hoje é um empecilho para a batalha pela saúde da nação. Se contorná-lo já não basta, ainda não se sabe como será possível tirá-lo do caminho e, mais ainda, que rumo dar ao poder em tempos de pandemia. A seguir a cartilha do presidiário Eduardo Cunha, seu afastamento apenas se dará quando se encontrar esta solução. E esta não se resume a Hamilton Mourão.


Ao desafiar a unanimidade nacional, no uniforme de vítima de poderes que não lhe deixam agir para salvar a economia, Bolsonaro já sabia que não teria o endosso das Forças Armadas para uma aventura que extrapole a Constituição. Era o que precisaria fazer para flexibilizar as regras de confinamento adotadas nos Estados. Duas horas antes do pronunciamento presidencial, o Exército colocou em suas redes sociais o vídeo do comandante Edson Leal Pujol mostrando que a farda hoje está a serviço da mobilização nacional contra o coronavírus.

Pujol falou como comandante de uma corporação que tem a massa de seus recrutas originários das comunidades mais pobres do país, hoje o foco de disseminação mais preocupante para as autoridades sanitárias. Disse que agirá sob a coordenação do Ministério da Defesa. Em nenhum momento pronunciou o presidente. Moveu-se pela percepção de que uma tropa aquartelada hoje é mais segura que uma tropa solta. Na mão inversa do trem desgovernado do discurso presidencial daquela noite.

Quando já estava claro que descartara o papel de guarda pretoriana, Pujol reforçou a importância do combate ao coronavírus: “Talvez seja a missão mais importante de nossa geração”. Vinte e quatro horas depois, o vídeo ultrapassava 500 mil visualizações, mais do que o dobro do efetivo do Exército.

O distanciamento contaminou os ministros militares com assento no Palácio do Planalto. “Não quero ter minha digital nisso”, comentou um deles ao perceber o rumo provocativo que o pronunciamento da noite de quarta-feira teria. Deixou o Palácio antes da gravação, conduzida sob o comando dos filhos e da milícia digital do bolsonarismo.

A insistência do presidente na tese esticou a corda com os governadores e com o Congresso, que amanheceu na quarta-feira colocando pilha na saída do ministro Luiz Henrique Mandetta. A pressão atingiu o pico do dia com o rompimento do governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), com o presidente. Aliado de primeira hora de Bolsonaro, presença mais frequente, entre seus pares, nas solenidades do Palácio do Planalto, Caiado foi um dos principais padrinhos de Mandetta, um deputado do Mato Grosso do Sul que não disputou em outubro de 2018 porque temia não se reeleger.

O ministro negaria a demissão num entrevista em que citou Caiado, mas não Bolsonaro. O Congresso mantinha a aposta na saída de Mandetta como mais um tapume no isolamento do presidente quando João Doria, na reunião de governadores com o presidente, partiu para o confronto. O discurso de palanque do governador de São Paulo não é unanimidade entre os envolvidos em busca de uma solução de consenso, especialmente os da farda, mas sua ação deliberada para levar os governadores a recusar interlocução com o presidente, caiu como uma luva para a estratégia de levar Bolsonaro ao limite do isolamento.

Para viabilizar o enfrentamento dos governadores, o Congresso busca meios de manter o acesso dos Estados a recursos com os quais possam manter suas políticas de combate à doença, hoje confrontadas pelo Planalto. O pronunciamento acabou por frear a proposta de emenda constitucional com a qual se pretendia criar um orçamento paralelo para viabilizar as ações de Bolsonaro no combate à pandemia e calar a tecla com a qual o presidente se diz impedido de agir pelo Congresso. Cogitou-se até incluir nesta PEC instrumentos com os quais Bolsonaro poderia ter mais poderes sobre o confinamento e o confisco de insumos hospitalares, como meio de evitar o Estado de Sítio.

Ainda que Bolsonaro hoje não tenha nem 10% dos votos em plenário, um processo de impeachment ainda é de difícil de viabilidade. Motivos não faltariam. Os parlamentares dizem que Bolsonaro, assim como a ex-presidente Dilma Rousseff, já não governa. Se uma caiu sob alegação de que teria infringido a Lei de Responsabilidade Fiscal, o outro teria infrações em série contra uma “lei de responsabilidade social”. Permanece sem solução, porém, o déficit de legitimidade de um impeachment em plenário virtual.

Vem daí a solução que ganha corpo, até nos meios militares, de uma saída do presidente por renúncia. O problema é convencê-lo. A troco de que entregaria um mandato conquistado nas urnas? O bem mais valioso que o presidente tem hoje é a liberdade dos filhos. Esta é a moeda em jogo. Renúncia em troca de anistia à toda tabuada: 01, 02 e 03. Foi assim que Boris Yeltsin, na Rússia, foi convencido a sair, alegam os defensores da solução.

Não faltam pedras no caminho. A primeira é que não há anistia para uma condenação inexistente. A segunda é que ao fazê-lo, a legião de condenados da Lava-Jato entraria na fila da isonomia, sob a alcunha de um “Pacto de Moncloa” tupiniquim. A terceira é que o Judiciário, agastado com o bordão que viabilizou o impeachment de Dilma (“Com Supremo com tudo”), resistiria a embarcar. E finalmente, a quarta:

Quem teria hoje autoridade para convencer o presidente? Cogita-se, à sua revelia, dos generais envolvidos na intervenção do Rio, PhDs em milícia.

A única razão para se continuar nesta pedreira é que, por ora, não há outra saída. Na hipótese de se viabilizar, o capitão pode estar a caminho de encerrar sua carreira política como começou. Condenado por ter atentado contra o decoro, a disciplina e a ética da carreira militar, Bolsonaro foi absolvido em segunda instância. Em “O cadete e o capitão” (Todavia, 2019), Luiz Maklouff, esboça a tese de que a absolvição foi a saída encontrada para o capitão deixar a corporação.

Em seguida, o Bolsonaro disputaria seu primeiro mandato como vereador no Rio. Trinta e quatro anos depois, a borracha está de volta para esfumaçar o passado. Desta vez, com o intuito de tirá-lo da política.

Brasil pela bola 7


Um presidente sozinho

O presidente Bolsonaro, por escolha própria, está completamente isolado. Não tem partido, não tem o apoio dos governadores, não tem diálogo dentro do Congresso. Já não governa mais. Um movimento de desobediência civil está instalado no país desde o primeiro panelaço, que foi se espalhando por estados e regiões à medida que ele se demonstrava inapto para exercer a presidência da República, especialmente num momento de grave crise de saúde pública como o que estamos vivendo. Os governadores, em maior ou menor grau, já anunciaram que não seguirão as orientações do governo se colidirem com as normas da Organização Mundial da Saúde. A população, mostram as pesquisas, apoia essa prudência.

Como é espontâneo por sua natureza tosca, Bolsonaro revelou em entrevistas o que lhe aflige, o efeito da crise econômica que certamente virá recair sobre o seu governo. Não se mostra capaz de enxergar além do horizonte puramente eleitoral, e isso demonstrou ontem na reunião de governadores do sudeste, ao levar a discussão para o campo politico-eleitoral, descompensado com as críticas que acabara de receber de maneira dura, mas respeitosa, do governador de São Paulo João Doria.

Que Doria é candidato a presidente da República em 2022, ninguém desconhece. Mas, no momento, ele está se comportando como um líder diante da crise da Covid-19 que se abate principalmente sobre o Estado que governa. Bolsonaro, mesmo que vislumbre por trás dessa postura de Doria uma máscara que procura esconder sua intenção eleitoral de se contrapor a ele, mostrou-se um desastrado ao escancarar sua irritação diante de um adversário que sabe jogar o jogo político, expondo suas deficiências.


A preocupação de Bolsonaro tem razão de ser, pois com seu comportamento irresponsável diante da crise, está se abrindo um amplo caminho para o tal candidato de centro que se apresente como alternativa aos radicalismos de esquerda e direita.

Doria está aproveitando o momento para demonstrar uma capacidade de gestão que o capacita para se apresentar como essa alternativa. Cada vez mais fica claro que a preocupação de Bolsonaro com a economia do país não tem nada a ver com o bem-estar do povo, mas com a necessidade de mostrar melhorias econômicas que respaldem sua candidatura à reeleição.

A mesma situação em que se encontra hoje o presidente dos Estados Unidos, que disputará a reeleição ainda este ano. Ao mimetizar Trump, mas sem o dinheiro que o presidente americano tem a seu dispor, o presidente Bolsonaro assumiu um risco que não poderia, e precipitou-se.

O próprio Trump, ao anunciar que gostaria de ver as atividades econômicas voltando à normalidade pela Páscoa, deu-se um prazo para avaliar a situação. Bolsonaro, não. Assumiu a decisão de acabar com a quarentena imediatamente, no segundo dia de sua implantação em todo o país.

A questão não é se teremos que suspender esse confinamento, mas quando, e através de qual planejamento. Esse é o grande tema em discussão pelo mundo, mas nós no Brasil ainda não chegamos ao pico da crise da Covid-19, e tememos que ela se alastre perigosamente quando atingir as comunidades mais carentes.

Os governadores do país todo, de diversos partidos políticos, estão mobilizados mais ou menos na mesma direção, baseados nas recomendações do ministério da Saúde, que até hoje segue as orientações da Organização Mundial da Saúde. O ministro Luiz Henrique Mandetta há alguns dias já dava mostras de que tentava evitar que o presidente Bolsonaro se desagradasse de seu sucesso junto à opinião pública.

Ontem, depois de ter sido desautorizado em transmissão nacional de rádio e televisão, Mandetta deu um jeito de se aproximar ainda mais das posições de Bolsonaro, e se afastar da imagem técnica que dava segurança à população. Falou mais alto o diploma de deputado federal do que o de médico, e Mandetta se aproxima da desmoralização.

Que só não é total porque ficou de estudar a proposta de Bolsonaro. Espera-se que aproveite sua última chance para apresentar ao presidente um planejamento tecnicamente coerente para uma saída cautelosa da política de confinamento.

História é com maiúscula

O século tem costas largas e não é com histórias de folhetim, burlescas ou trágicas, que se escreve a História
Luís Forjaz Trigueiros, " Um jardim em Londres"

Lições que guardo comigo

O historiador, ensaísta, escritor, cientista político, antropólogo e colunista do jornal “O Globo” e do “O Estado de S. Paulo” Roberto DaMatta tem contado, em suas colunas quinzenais, histórias que envolvem pessoas queridas da sua família. São, sempre, histórias emocionantes e cheias de lições.

Lembrei-me dele por que amanheci hoje, depois de sono extremamente conturbado – com motivos de sobra –, com a mente povoada de boas e inesquecíveis lembranças do meu pai e das muitas lições que deixou aos filhos e aos seus alunos.

Aliás, os filhos eram também considerados alunos. No Instituto Padre Machado, nós, os filhos, éramos tratados assim, sem qualquer distinção, e ele fazia questão de fazer disso norma que passava aos professores.

O nome do colégio foi uma homenagem a um padre, educador idealista, que, por três vezes, tentou construir e dirigir uma Casa de Educação, mas falhou financeiramente em todas as três. O colégio foi fundado em São João del-Rei e, após alguns anos, foi transferido para Belo Horizonte. Uma aventura, que faz parte das suas memórias.

Meu pai era considerado por alguns amigos fiéis um homem desassombrado, vale dizer, bravo, corajoso ou sem medo. Ele, porém, nem sempre se considerava assim. Costumava dizer que o medo, ao contrário, é uma reação humana, que acontece com qualquer um. A questão está na capacidade que devemos ter, por meio de muito treino, de controlá-lo. Lembro-me de algumas histórias que contava sobre o horror da gripe espanhola (janeiro de 1918 a dezembro de 1920).

Pois bem. Hoje, sinto medo do que poderá acontecer não só aos velhinhos, mas, sobretudo, aos pobres, velhos ou novos, se a ciência, com a colaboração dos brasileiros, não encontrar rapidamente o chamado “bom combate”. Que depende, como disse, neste instante, do isolamento, apregoado dia e noite em todos os canais de comunicação social – jornal, rádio, televisão, redes sociais etc.

O volume de informação é realmente assustador. O leitor ou ouvinte desatento, que não sabe distinguir o que é verdadeiro do que é mentiroso, passa longe da capacidade de domínio sobre o medo, que se transforma em pânico.

O momento é de solidariedade de todos para com todos. Esta é a boa política, que deve ser praticada com urgência, principalmente por todos os agentes públicos espalhados por municípios, Estados e federação. Não é hora de vaidades ou de disputas internas ou ideológicas, mas de desassombro, firmeza, franqueza e destemor. E só.

O povo, ausente das ruas, dá ao governo boas lições. Guerra ao vírus e aos idiotas que o desconsideram!

O vírus somos nós (ou uma parte de nós)

No princípio era o vírus. Coronavírus. Em menos de dois meses após a primeira morte, registrada na China em 9 de janeiro, ele atravessou o mundo a bordo de nossos corpos que voam em aviões. Tornou-se onipresente no planeta, ainda que tão invisível quanto certos deuses para olhos humanos. Hoje, 1,7 bilhão de pessoas, cerca de um quinto da população global, está em isolamento. Escolas, restaurantes, cinemas e até shoppings cerraram as portas, fronteiras de países e de continentes fecharam, aviões se esvaziaram, presidentes maníacos finalmente foram reconhecidos como presidentes maníacos, neoliberais foram vistos clamando —“cadê o Estado? cadê o Estado?” —, ardorosos defensores dos planos privados de saúde compartilharam campanhas pelo fortalecimento do SUS, terraplanistas exigiram respostas da ciência. Pelas janelas do Facebook, Twitter, Whatsapp e Instagram, pessoas decretam: o mundo nunca mais será o mesmo.

Não será. Mas talvez seguirá sendo bastante do mesmo. Além de nossa sobrevivência, o que disputamos neste momento é em que mundo viveremos e que humanos seremos depois da pandemia. Essas respostas vão depender do modo como vivermos a pandemia. O depois, o pós-guerra global do nosso tempo, vai depender de como escolhemos viver a guerra. Não é verdade que na guerra não há escolhas. A verdade é que, na guerra, as escolhas são muito mais difíceis e as perdas decorrentes dela são muito maiores do que em tempos normais.

Na guerra, temos dois caminhos pessoais que determinam o coletivo: nos tornarmos melhores do que somos ou nos tornarmos piores do que somos. Esta é a guerra permanente que cada um trava hoje atrás da sua porta. Momentos radicais expõem uma nudez radical. Isolados, é também com ela que nos viramos. O que o espelho pode mostrar não é a barriga flácida. Pouco importa, já não há onde nem para quem desfilar barrigas-tanquinho. O duro é encarar um caráter flácido, uma vontade desmusculada, um desejo sem tônus que antes era mascarado pela espiral dos dias. O duro é ser chamado a ser e ter medo de ser. Porque é isso que momentos como este fazem: nos chamam a ser.

Em tempos mais normais, podemos fingir que não escutamos o chamado a ser. Cobrimos essa voz com automatismos, a vida se resume a consumir a vida consumindo o planeta. Consumidores não são, já que consomem o ser. E agora, quando já não se pode consumir, porque logo pode não haver o que consumir nem quem possa produzir o que consumir, como é que se aprende a separar os verbos? Como se faz um consumidor se tornar um ser?


Se usamos a palavra guerra, precisamos olhar cuidadosamente para o inimigo. É o vírus, essa criatura que parece uma bolinha microscópica cheia de pelos, quase fofa? É o vírus, esse organismo que só segue o imperativo de se reproduzir? Penso que não. O vírus não tem consciência, não tem moral, não tem escolha. Vamos precisar derrotá-lo em nossos corpos, neutralizá-lo para reiniciar isso que chamamos de o outro mundo que virá. Tudo indica, porém, que outras pandemias acontecerão, outras mutações. A forma como vivemos neste planeta nos tornou vítimas de pandemias. O inimigo somos nós. Não exatamente nós, mas o capitalismo que nos submete a um modo mortífero de viver. E, se nos submete, é porque, com maior ou menor resistência, o aceitamos. Escapar do vírus da vez poderá não nos salvar do próximo. O modo de viver precisa mudar. Nossa sociedade precisa se tornar outra.

O impasse imposto pela pandemia não é novo. É o mesmo impasse colocado há anos, décadas, pela emergência climática. Os cientistas —e mais recentemente os adolescentes— repetem e gritam que é preciso mudar urgentemente o jeito de viver ou estaremos condenados ao desaparecimento de parte da população. E, quem sobreviver, estará condenado a uma existência muito pior num planeta hostil.

Todos os dados mostram que a Terra, esta que segue redonda, está superaquecendo em níveis incompatíveis com a vida de muitas espécies. Esse superaquecimento mudará radicalmente —para pior— o nosso habitat. Todas as informações científicas apontam que é preciso parar de devorar o planeta, que há que se mudar radicalmente os padrões de consumo, que a ideia de crescimento infinito é uma impossibilidade lógica num mundo finito. É um fato comprovado que os humanos, pela emissão de carbono desde a revolução industrial, cortando árvores, queimando carvão e depois petróleo, se tornaram uma força de destruição capaz de alterar o clima do planeta.

Desde o segundo semestre de 2018 adolescentes do mundo inteiro abandonam as escolas toda sexta-feira para gritar nas ruas que os adultos estão roubando seu futuro. Eles dizem: parem de consumir, fiquem no chão, nosso planeta não aguenta mais tanta emissão de carbono. Dizem ainda, literalmente: “vocês estão cagando no nosso futuro”. Greta Thumberg, a jovem ativista sueca, avisou repetidamente: “nossa casa está em chamas”. Acordem.

Está tudo escrito, falado, repetido, documentado. Ninguém pode dizer que não sabe. Bem, Bolsonaro, o maníaco que nos governa, sempre pode, porque diz e desdiz a cada minuto. Mas, sério, quem ainda aguenta falar nesse demente, que está criminosamente aumentando o risco de morte dos brasileiros, a não ser para gritar “Fora!”? Isolemos esse boçal, deixemos Bolsonaro procurando onde estão suas orelhas, aprendendo a como enfiar a máscara no rosto sem tapar os olhos.

O efeito da pandemia é o efeito concentrado, agudo, do que a crise climática está produzindo de forma muito mais lenta. É como se o vírus desse uma palhinha do que viveremos logo mais. Conforme os níveis de superaquecimento global, chegaremos a um estágio de transformação do clima e, por consequência do planeta, para o qual não há volta, não há vacina, não há antídoto. O planeta será outro.

É por isso que cientistas, intelectuais indígenas e ativistas climáticos têm gritado para uma maioria que se finge de surda, para não ter que sair do seu conforto mudando velhos hábitos, que é preciso alterar os padrões de consumo radicalmente, que é preciso pressionar radicalmente os governantes para políticas públicas imediatas, que é preciso combater radicalmente as grandes corporações que destroem o planeta. Mas, como a crise climática é lenta, sempre foi possível fingir que não estava acontecendo, chegando ao paroxismo de eleger negacionistas como Jair Bolsonaro, Donald Trump e toda a conhecida corja de destruidores do mundo.

O vírus não permite fingimentos. Ele possivelmente saltou de um morcego, espécie cujo habitat também destruímos, para se hospedar no organismo dos humanos. Nada mais fez do que tocar sua vida de vírus. De repente, homens e mulheres do mundo inteiro que fingiam não ter nem corpo nem limites, transbordando na internet, tiveram que se haver com a própria carne e com os próprios contornos. Já não há mais como escapar do corpo. E já não há mais como permanecer refestelado no próprio umbigo.

Toda a ilusão de que o mundo é controlado pelos humanos se desfez em tempo recorde. E a humanidade finalmente descobriu que há um mundo além de si, povoado por outros que podem até mesmo acabar com a nossa espécie. Outros que a gente nem consegue enxergar. No nosso furor de espécie dominante, extinguimos tantas outras e tantos modos de vida, trancamos animais maravilhosos em jaulas, criamos campos de concentração de bois, porcos e galinhas, envenenamos peixes com mercúrio apenas porque gostamos de ouro, promovemos holocaustos diários para nos alimentar, estupramos vacas com aparelhos porque desejamos comer seus tenros bebês em refinadas refeições e desejamos roubar seu leite dia após dia, arrancamos a floresta para fazer campo de soja para alimentar animais escravizados. Podíamos tudo.

E aí vem o vírus, que não está interessado em nos passar nenhuma mensagem, só está mesmo cuidando da própria vida, e mostra: vocês, humanos, não estão sozinhos nesse planeta nem têm o controle que acreditam ter. E então aqueles que debochavam dos cientistas do Clima e da Terra, chamavam a crise climática de “complô marxista”, querem agora saber como a ciência pode salvá-los da bolinha peluda. Até tentaram inventar que o coronavírus é uma “gripezinha”, “uma fantasia”, “uma histeria”. Mas o povo brinca com tudo e está pronto a acreditar em qualquer bobagem, até em Terra Plana, desde que lhe garantam seguir no seu modo zumbi. Mas o povo não brinca com saúde. Quando o assunto é saúde, até a Terra Plana dá voltas.

Menciono “humanidade”, “povo”, “população”. Mas não há homogeneidade aí, não existe um genérico chamado “humano”. Assim como não estamos todos no mesmo barco. Nem para o coronavírus nem para a crise climática. Mais uma vez, a comparação entre coronavírus e crise do clima faz todo o sentido. A ONU criou o conceito de “apartheid climático”, um reconhecimento de que as desigualdades de raça, sexo, gênero e classe social são determinantes também para a mudança do clima, que as reproduz e as amplia. Aqueles que serão os mais atingidos pelo superaquecimento global —negros e indígenas, mulheres e pobres —foram os que menos contribuíram para provocar a emergência climática. E aqueles que produziram a crise climática ao consumir o planeta em grandes porções e proporções —os brancos ricos de países ricos, os brancos ricos de países pobres, os homens, que nos últimos milênios centralizaram as decisões, nos trazendo até aqui— são os que serão menos afetados por ela. São esses que já passaram a erguer muros e a fechar as fronteiras muito antes do coronavírus porque temem os refugiados climáticos que criaram e que serão cada vez mais numerosos no futuro bem próximo.

Na pandemia de coronavírus há o mesmo apartheid. É bem explícito qual é a população que tem o direito a não ser contaminada e qual é a população que aparentemente pode ser contaminada. Não é coincidência que a primeira morte por coronavírus no Rio de Janeiro foi uma mulher, empregada doméstica, a quem a “patroa” nem reconheceu o direito à dispensa remunerada do trabalho, para fazer o necessário isolamento, nem achou necessário contar que poderia estar contaminada por coronavírus, cujos sintomas já sentia depois de voltar de um Carnaval na Itália. Essa primeira morte no Rio é o retrato do Brasil e das relações entre raça e classe no país, expostas em toda a sua brutalidade criminosa pela radicalidade de uma pandemia.

O espantoso é que a necessidade de muitos de ter sua casa limpa e a comida pronta pela empregada doméstica, a quem negaram o direito ao isolamento remunerado, é maior até do que o instinto de sobrevivência. Isso nos informa muito sobre uma parcela da sociedade brasileira, esta em que os porteiros continuam abrindo a porta dos edifícios para os moradores não tocarem eles mesmos na maçaneta, quando vão ao jardim arejar ou ao supermercado comprar comida. Ficar sem empregados domésticos parece ser mais trágico do que enfrentar o vírus para uma parcela das classes média e alta brasileiras. Esta última muito acostumada a acreditar-se a salvo do pior, porque em geral está.

O poder de devastação do vírus é determinado pelas escolhas dos governos e da população que elegeu os governantes. Neste momento, os brasileiros estão tendo que se haver com a escolha de sucatear o SUS, com a escolha de reduzir o investimento em programas sociais que pudessem reduzir a desigualdade, com a escolha de não fazer reforma agrária nem redistribuição de renda, com a escolha de não priorizar o saneamento básico e a moradia digna. Com a escolha de fazer teto para gastos públicos também em áreas essenciais como saúde e educação.

Os brasileiros estão sendo obrigados a se haver, principalmente, com a escolha de fazer do “Mercado” um deus-entidade que se autorregula. Se o Mercado foi a explicação de tudo para as medidas mais brutais defendidas por essa praga persistente chamada “economistas neoliberais” ou “ultraliberais”, que se autodeclararam com autoridade e poder para determinar todas as áreas de nossa vida, cadê o Mercado agora? Por que não pedem que o Mercado resolva a pandemia? Ao contrário, os representantes do Mercado estão demitindo e dispensando os empregados e pedindo ajuda emergencial do Governo para não falir.

Mas, não se iludam. Assim que a pandemia passar, o Mercado voltará com todo o seu poder de oráculo para, por meio de suas sacerdotisas, os economistas neoliberais ou ultraliberais, nos ditar tudo o que temos que fazer para sair da recessão. Este ônus, como sempre, será dividido igualmente entre os mais pobres.

O vírus —e não as péssimas escolhas— será o culpado de todas as mazelas. Até o corona, como sabemos, a economia do mundo capitalista e do Brasil de Paulo Guedes estava uma maravilha, parece até que domésticas estavam planejando uma excursão para a Disney quando foram impedidas pelo maldito vírus com nome de ducha. E, claro, o maníaco do Planalto vai dizer que não é nem ele nem seu Posto Ipiranga os incompetentes, mas “a histeria” com a “gripezinha”.

Nada está dado, porém. Não é só o futuro que está em disputa, mas o presente. Isoladas em casa, as pessoas passaram a fazer o que não faziam antes: enxergar umas as outras, reconhecer umas as outras, cuidar umas das outras. Justo agora, quando ficou muito mais difícil, parece ter se tornado mais fácil alcançar o outro. Quem criou esse conceito —“isolamento social”— estava com falha de raciocínio. O que temos que fazer e muitos estão fazendo é “isolamento físico”, como apontou no Twitter o sociólogo Ben Carrington. O que está acontecendo hoje é exatamente o contrário de isolamento social. Fazia muito tempo que as pessoas, no mundo inteiro, não socializavam tanto.

No Brasil, o grande momento de socialização é o panelaço de “Fora Bolsonaro!” nas janelas. Em outros países têm música, até poesia, nas sacadas. Para os brasileiros, mostrar que se encontraram com a realidade do outro é reconhecer a realidade de que botaram um maníaco no Planalto e precisam tirá-lo de lá se quiserem sobreviver. Mas também por aqui há festas de aniversário com bolinho na porta e vizinhos cantando parabéns das janelas, jovens fazendo compras para os velhos do prédio, avós almoçando com as netas pelo FaceTime, famílias e grupos de amigos conversando por aplicativos como há tempo não faziam. É incrível, mas finalmente os humanos descobriram que podem usar o celular para se encontrarem, em vez de se isolarem cada um no seu aparelho em torno de mesas de bares e restaurantes.

Muitas das ações da direita e da extrema direita no Brasil dos últimos anos tiveram como objetivo neutralizar e sepultar uma insurreição das periferias, no sentido mais amplo, que começava a questionar, de forma muito contundente, os privilégios de raça e de classe. Começava a reivindicar sua justa centralidade. Marielle Franco era um exemplo icônico destes Brasis insurgentes que já não aceitavam o lugar subalterno e mortífero ao qual haviam sido condenados. A pandemia mostrou explicitamente que a rebelião continua viva. O Brasil das elites boçais, aliado à nova boçalidade representada pelos mercadores da fé alheia, não conseguiu matar a insurreição. O “Manifesto das Filhas e dos Filhos das Empregadas Domésticas e das Diaristas”, afirmando que não permitiriam que os patrões deixassem suas mães morrer pelo coronavírus, foi talvez o grito mais potente deste momento, impensável apenas alguns anos atrás.

Dezenas de “vaquinhas” estão em curso, grande parte delas organizadas a partir das favelas e das periferias, para garantir alimentação e produtos de limpeza para a parcela da população a quem o direito ao isolamento é sequestrado pela desigualdade brasileira. Em geral, o lema é “Nós por Nós”: séculos de história provaram que só os explorados e os escravos podem salvar a si mesmos.

Alguns organizadores dessas campanhas temem que o tempo dos corações abertos, onde brotam margaridas de solidariedade, pode acabar em algumas semanas, quando a comida escassear e a fome se estabelecer, quando o medo de o dinheiro acabar, para aqueles que ainda têm dinheiro mas não sabem por quanto tempo, empedre veias e artérias, quando o número de casos estiver tão fora do controle que o sistema de saúde implodir. É lá, neste lugar ao qual possivelmente ainda chegaremos, que vamos definir quem de fato somos —ou quem queremos ser. Então saberemos. Não me parece que, desta vez, as pessoas aceitarão morrer como gado. Em especial, as mesmas pessoas de sempre.

A consciência da própria mortalidade costuma ter um efeito muito poderoso sobre as subjetividades. Filósofos têm disputado a interpretação do que será ou pode ser o mundo do pós-coronavírus. O esloveno Slavjoj Zizek acredita no poder subversivo do vírus, que pode ter dado um golpe mortal no capitalismo: “Talvez outro vírus muito mais benéfico também se espalhe e, se tivermos sorte, irá nos infectar: o vírus do pensar em uma sociedade alternativa, uma sociedade para além dos Estados-nação, uma sociedade que se atualiza nas formas de solidariedade e cooperação global”.

O sul-coreano Byung-Chul Han, que dá aulas na Universidade de Artes de Berlim, acredita que Zizek está errado. “Após a pandemia, o capitalismo continuará com ainda mais pujança. E os turistas continuarão a pisotear o planeta”, afirma. “A comoção é um momento propício que permite estabelecer um novo sistema de Governo. Também a instauração do neoliberalismo veio precedida frequentemente de crises que causaram comoções. É o que aconteceu na Coreia e na Grécia. Espero que após a comoção causada por esse vírus não chegue à Europa um regime policial digital como o chinês. Se isso ocorrer, como teme Giorgio Agamben, o estado de exceção passaria a ser a situação normal. O vírus, então, teria conseguido o que nem mesmo o terrorismo islâmico conseguiu totalmente”.

Mas também ele se aproxima da ideia de uma outra sociedade possível no pós-guerra pandêmica: “O vírus não vencerá o capitalismo. A revolução viral não chegará a ocorrer. Nenhum vírus é capaz de fazer a revolução. O vírus nos isola e individualiza. Não gera nenhum sentimento coletivo forte. De alguma maneira, cada um se preocupa somente por sua própria sobrevivência. A solidariedade que consiste em guardar distâncias mútuas não é uma solidariedade que permite sonhar com uma sociedade diferente, mais pacífica, mais justa. Não podemos deixar a revolução nas mãos do vírus. Precisamos acreditar que após o vírus virá uma revolução humana. Somos NÓS, PESSOAS dotadas de RAZÃO, que precisamos repensar e restringir radicalmente o capitalismo destrutivo, e nossa ilimitada e destrutiva mobilidade, para nos salvar, para salvar o clima e nosso belo planeta”.

Penso que a beleza que ainda resta no mundo é justamente que nada está dado enquanto ainda estivermos vivos. O vírus, que arrancou todos do lugar, independentemente do polo político, está aí para nos lembrar disso. A beleza é que, de repente, um vírus devolveu aos humanos a capacidade de imaginar um futuro onde desejam viver.

Se a pandemia passar e ainda estivermos vivos, será no momento de recompor as humanidades que poderemos criar uma sociedade nova. Uma sociedade capaz de entender que o dogma do crescimento nos trouxe até este momento, uma sociedade preparada para compreender que qualquer futuro depende de parar de esgotar o que chamamos de recursos naturais —e que os indígenas chamam de mãe, pai, irmão.

O futuro está em disputa. No amanhã, demorando ou não a chegar, saberemos se a parte minoritária, mas dominante, da humanidade seguirá sendo o vírus hediondo e suicida, capaz de exterminar a própria espécie ao destruir o planeta-corpo que a hospeda. Ou se barraremos essa força de destruição ao nos inventarmos de outro jeito, como uma sociedade consciente de que divide o mundo com outras sociedades. Saberemos, após tantas especulações, se o que vivemos é Gênesis ou Apocalipse, na interpretação do senso comum. Ou nada tão grandiloquente, mas imensamente decepcionante: a reedição de nossa invencível capacidade de adaptação ao pior, com a imediata adesão aos discursos salvacionistas que já nos escravizaram tantas vezes.

A pandemia de coronavírus revelou que somos capazes de fazer mudanças radicais em tempo recorde. A aproximação social com isolamento físico pode nos ensinar que dependemos uns dos outros. E por isso precisamos nos unir em torno de um comum global que proteja a única casa que todos temos. O vírus, também um habitante deste planeta, nos lembrou de algo que tínhamos esquecido: os outros existem. Às vezes, eles são chamados de Covid-19.
Eliane Brum

Pensamento do Dia


Reflexões sobre a epidemia

Quando as ideias liberais clássicas de Adam Smith pareciam consagradas no Ocidente, em meio à corrida mundial para reinventar o Estado, a epidemia de coronavírus virou tudo de pernas para o ar. O revisionismo reformista de Lord John Maynard Keynes parece renascer das cinzas, com sua Teoria Geral do Emprego, do Juro e do Dinheiro. Para conter a epidemia, o mundo está mergulhando numa recessão geral, fruto da globalização tanto quanto a propagação do novo coronavírus, que começou na China, tomou de assalto a Europa, se instala nos Estados Unidos e se expande na periferia, na qual países como a Índia e o Brasil se preparam para a uma tragédia anunciada.

Para o keynesianismo, os níveis de consumo, de investimentos público e privados e aplicações dos cidadãos são determinantes da política econômica. Quando eles se retraem, a crise vem a galope. A velha fórmula de Keynes para enfrentar essa situação está sendo exumada por ninguém menos do que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que pretende injetar mais de US$ 1 trilhão na economia norte-americana para aliviar o sufoco gerado pela paralisação da economia. A Casa Branca foi o centro da resistência à política de distanciamento social preconizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), mas capitulou, diante da tomada de Nova York pela epidemia. Da cidade mais rica do mundo, a epidemia se espalha por todos os estados da União.

Como na Grande Depressão de 1929, só o Estado pode conter o atual desequilíbrio da economia. Aquela crise teve outras causas: foi consequência da grande expansão de crédito por meio de oferta monetária (emissão de dinheiro e títulos), que precisou ser freada. O governo parou, começou a enxugar o mercado e a operar uma política de restrição de empréstimos. Temendo a desvalorização da moeda, muitas pessoas e empresas retiraram suas reservas dos bancos, dando início a um processo de recessão.


A solução para esse problema seria controlar a recessão, permitindo a liberdade de preços e salários, até que o mercado se adequasse à nova situação. No entanto, ao contrário disso, o governo passou a exercer arrochado controle sobre os preços e os salários, além de promover aumento de impostos. Isso agravou a recessão e, em cinco dias, a Bolsa quebrou, levando à falência empresas e bancos e, ao desemprego, 12 milhões de pessoas nos Estados Unidos, uma recessão que se alastrou por todo o mundo.

A fórmula de Keynes era os governos aplicarem grandes remessas de capital na realização de investimentos que aquecessem a economia de modo geral, além de linhas de crédito a baixo custo para garantir a realização de investimentos do setor privado e a elevação dos níveis de emprego. Mas isso era uma ofensa ao “livre mercado”. Coube ao presidente Franklin Delano Roosevelt, um homem paraplégico por causa da poliomielite, enfrentar a recessão.

Governador de Nova York desde 1928, disputou e ganhou a Presidência dos Estados Unidos em 1932, prometendo um novo e ousado plano de ação para resgatar a nação dos efeitos da grande depressão. Convenceu os americanos de que não havia mais nada a temer. Empossado em março de 1933, em apenas 100 dias, Roosevelt conseguiu aprovar no Congresso seu plano baseado nas ideias keynesianas. O New Deal (Nova Ordem) garantiu US$ 3,3 bilhões para investir na criação de empregos e na recuperação industrial. Nascia o Estado de bem-estar social.

Roosevelt propôs programas inovadores, que geraram milhões de empregos, e criou a Lei de Seguridade Social, um plano de aposentadoria com abrangência nacional, a grande herança de seu governo. Reeleito três vezes (1936, 1940 e 1944), morreu pouco antes do fim da II Guerra Mundial, na qual foi um dos Três Grandes, ao lado de Winston Churchill, o primeiro-ministro britânico, e Youssef Stálin, o líder da antiga União Soviética, que comandaram as forças aliadas contra o nazifascismo.

Aqui no Brasil, diante da epidemia de coronavírus, a política econômica ultraliberal do ministro da Economia, Paulo Guedes, entrou em colapso. Tornou-se insustentável diante da redução da atividade econômica. Na verdade, seus resultados já eram pífios antes da epidemia.. Economistas como Armínio Fraga, Monica de Bolle e André Lara Rezende já vinham questionando o ministro. O mercado já está com saudades do ex-ministro Henrique Meirelles, hoje secretário da Fazenda de São Paulo.

É esse debate que está por trás do embate entre o presidente Jair Bolsonaro e os governadores em relação às medidas de quarentena adotadas nos estados e municípios. Na cabeça do presidente, não existe guerra sem defuntos: as taxas de letalidade da epidemia são baixas demais para justificar uma recessão econômica. O remédio é deixar morrer. Ontem, foi à tevê, em cadeia nacional, para atacar a imprensa, os governadores e os prefeitos e criticar as medidas de distanciamento social adotadas para conter a epidemia, que continua chamando de gripezinha. Quando parecia ter entrado em entendimento com os demais governantes, recrudesceu. Temos um presidente errático em relação à crise que o país enfrenta.

Um egoísta isolado

Jair Bolsonaro é um homem só. Abandonado por aliados de primeira hora, esquecido pelos que se aproximaram por oportunidade, diminuído pelo Congresso, afastado por governadores e cada vez mais execrado pela maioria dos brasileiros. Com mais de 60 anos, ele deveria estar isolado socialmente para não se contaminar com o coronavírus. Mas o presidente conseguiu construir para si próprio uma ilha política que antes só foi vista durante os meses que antecederam o impeachment do ex-presidente Fernando Collor. Nem Dilma, nos seus piores dias, esteve tão solitária quanto Bolsonaro hoje.

A responsabilidade por essa solidão é inteiramente sua. Bolsonaro não pode culpar o Supremo, o Congresso ou a imprensa, embora tente sempre. Foi ele que se colocou nessa situação. Sua descida para o fundo do poço foi acontecendo aos poucos, mas desde o começo deu para perceber que era uma descida inexorável. Agora, no auge da maior crise sanitária dos últimos cem anos, estamos encrencados com um presidente isolado, agitado, que produz barulho e se afasta cada vez mais da lucidez.



O pronunciamento absurdo da terça-feira, a entrevista tresloucada na porta do Alvorada e a gritaria ofensiva na reunião com os governadores de ontem mostram um homem desequilibrado, que já não consegue raciocinar livre dos preconceitos que constroem o seu caráter. Bolsonaro é um egoísta. Ele claramente não está interessado na saúde dos brasileiros. Seu negócio é confundir as pessoas, tentando colocar no colo de outros os problemas econômicos e políticos que vão resultar da pandemia que assalta também o Brasil.

Nada como um dia depois do outro.

Na hora do aperto é que se conhece o coração das pessoas. Foi o que se viu com a pesquisa Datafolha que trata da confiabilidade das informações sobre coronavírus publicadas pelos meios de comunicação e pelas redes sociais. Foi um banho. Apenas 12% confiam no Facebook e no WhatsApp, contra 56% que confiam nos jornais impressos e 61% nos programas jornalísticos das TVs. Não significa que as redes sociais não são úteis nessa hora. São. Para divulgar conteúdo bem apurado e checado pelos veículos profissionais.
Não foram apenas Jair Bolsonaro e seus seguidores que atacaram a imprensa de maneira feroz e sem trégua nos últimos tempos (a Federação Nacional dos Jornalistas contabilizou mais de cem ataques do presidente no ano passado). Lula e os petistas, que negaram o mensalão e se recusaram a fazer uma autocrítica do maior escândalo de corrupção da história da Petrobras, também sonharam em calar os jornais e os jornalistas. Foi na usina de ideias retrógradas do PT que se imaginou um certo controle externo da mídia, apelido carinhoso que inventaram para censura à imprensa. Antes da revolução digital, houve até quem sugerisse proibir a importação de papel jornal.

O mesmo pode-se dizer sobre o tratamento dispensado ao Legislativo e ao Judiciário, que até outro dia eram vilipendiados pelos bolsonaristas, sobretudo os que foram às ruas pedir a volta da ditadura e o fechamento do Congresso e do Supremo. Num passado muito recente, os petistas também tomaram ruas e praças para acusar o Congresso de aplicar um golpe contra Dilma, e o Supremo, por não deter a Lava-Jato. E o que vão dizer agora ao ver os dois poderes corrigindo erros do governo Bolsonaro?

Milhares de bolsonaristas e petistas, entre outros, estariam desalentados amanhã ou depois se não fosse o grito de Rodrigo Maia e Dias Toffoli contra a MP que permitia a suspensão de contratos de trabalho e salários por quatro meses. Imaginem se não houvesse Congresso ou Supremo numa hora dessa. A MP de Bolsonaro e Guedes seria ainda mais dura. Ou alguém acha mesmo que foi um erro de digitação ou um esquecimento bobo a ausência de previsão de compensação financeira aos que tiverem seus contratos de trabalho e salários suspensos?

A atenção permanente do Legislativo, do Judiciário e da imprensa é vital para impedir as investidas antidemocráticas, autoritárias ou apenas economicistas dos governantes. Parece que a maioria agora enxerga isso.

Amanhã pode ser tarde demais para deter Bolsonaro

Nada poderia ser pior do que minimizar o perigo que corre hoje o Brasil nas mãos de um personagem, como o capitão reformado e ultradireitista Jair Bolsonaro, que não só caçoa de uma epidemia que está colocando o mundo de joelhos, como tenta se aproveitar dela para minar as instituições democráticas e sustentar sua ânsia de poder.

Aproveitar este momento de angústia nacional para politizar um drama em que o país está entre a vida e a morte pensando em sua reeleição, é um crime sem perdão.


Com seu estilo sibilino de dizer e se desdizer, de brincar de esconde-esconde, o presidente acaba confundindo e impondo seu estilo de aprendiz de ditador enquanto há quem ainda o veja como inofensivo por considerá-lo um despreparado e incapaz. Pelo contrário, aquele que sonhou em ser general do Exército e acabou como simples capitão é mais perigoso à democracia do que muitos pensam. Vai roendo sem que percebamos nossas liberdades e capacidades de decisão. E espera o momento propício para dar o golpe.

Quem pensava que os militares, começando pelos generais que ele colocou no Governo, seriam garantia contra seus caprichos autoritários hoje se veem isolados e retirados do Governo contra sua vontade se não se colocarem às suas ordens. Todos os seus pecados vão sendo perdoados, até contra o senso comum. Permitem que ele apresente ao exterior uma imagem do país que vai na contramão dos maiores líderes mundiais na luta contra a epidemia do coronavírus porque se pensa que ninguém vai acreditar nele.

O presidente é mais perigoso do que parece porque suas ambições de poder são muito maiores do que imaginam até os que estão ao seu lado. Sua capacidade de totalitarismo e de desejo de colocar aos seus pés as instituições democráticas são insaciáveis e já existem desde jovem, quando sendo simples soldado sonhava em presidir o país utilizando até métodos de terror, como quando no quartel brincava de ser terrorista e subversivo. Também à época o Exército o perdoou porque o considerava inofensivo e ingênuo. Hoje vemos que não era.

Foi considerado como inofensivo também quando já na política, como deputado, fazia troça dos valores democráticos, exaltava as ditaduras e a tortura e humilhava as mulheres e os de outras preferências sexuais. Ele podia tudo porque era considerado inofensivo, do baixo clero. Podia vomitar as maiores barbaridades porque se pensava que era um personagem folclórico, até engraçado, um zé ninguém. Não era. E chegou ao maior cargo do Estado e por voto popular.

Em meio ao drama da epidemia do coronavírus que assusta o mundo e ainda não sabemos quantas vítimas causará, o presidente continua irresponsavelmente em sua teimosia de negar as evidências e ir contra a opinião pública altamente majoritária como revelou a última pesquisa do Datafolha. E se aproveita da tragédia para sonhar até mesmo em impor o estado de sítio e colocar o Exército no comando do país. Exército que, para concretizar seu antigo sonho de poder, agora como Presidente teria aos seus pés.

Enquanto os que realmente importam no país e são responsáveis por seu destino continuarem subestimando os sonhos secretos de onipotência do capitão da reserva, deveriam olhar para trás na história para lembrar que foram personagens que em sua época pareciam inócuos e farsantes que acabaram criando holocaustos e guerras para se vingar dos que os consideravam figuras menores e inofensivas. Será preciso lembrar nomes dos grandes tiranos da História que surgiram da mediocridade da política? Não é difícil lembrar da tragédia do mundo cada vez que para governá-lo forem colocadas em seu comando personagens menores, considerados inofensivos e facilmente domináveis que se tornam insaciáveis em sua loucura pelo poder absoluto.

Se os lúcidos, os normais, os que são capazes de exercer o poder como um serviço à comunidade, acabarem devorados pelas ânsias de poder dos medíocres e falsos loucos capazes de tudo para continuar no pedestal do poder, amanhã pode ser tarde demais.

Não deixemos que o Brasil verdadeiro, hoje amedrontado, o que trabalha e se sacrifica para se apresentar ao mundo como o grande país que é por tradição e história, por sua capacidade de suportar as piores crises, por suas riquezas naturais e espirituais acabe sufocado pela ignorância e a loucura dos que desejam transformá-lo em uma republiqueta periférica no mundo.

Esse amor pelas atitudes violentas e de confronto contra todos, pelos conflitos violentos, pela política do ódio sempre foi o sonho de todos os aprendizes a ditadores que tentaram camuflar seus complexos de inferioridade com o troar dos canhões e o sacrifício de milhões de pessoas perpetrado no altar da loucura política da sede de domínio.

Que o Brasil, assustado com razão por uma epidemia que mata e transforma a todos em prisioneiros de guerra, não espere mais e procure a fórmula constitucional que permita colocar o país nas mãos de alguém normal, sem patologias e delírios de poder capaz de lidar com sensatez nessas horas críticas que podem marcar o futuro de um país que está se revelando solidário e com vontade de vencer essa batalha e continuar com sua vocação de paz e seus desejos de felicidade.

Que o Brasil não precise se arrepender de não ter reagido a tempo deixando que alguém que já deu provas suficientes de que é incapaz de governar um país dessa envergadura e menos ainda em momentos decisivos como esse, continue perigosamente arrastando-o a uma aventura cujo final não é difícil de se imaginar.

E é para hoje. Amanhã será tarde demais.

Banana pra quem de direito

Estamos fazendo a nossa parte aqui. Nós não vamos nos apegar ao calendário de quem quer que seja, muito menos pedir autorização a quem quer que seja para cumprir com a nossa obrigação que é defender a população paraense
Helder Barbalho (MDB), governador do Pará, ex-ministro da Pesca e Aquicultura, ex- ministro-chefe da Secretaria Nacional dos Portos e ex-ministro da Integração Nacional

Errado está o presidente

O pacote norte-americano de apoio à economia chega a cerca de 10% do PIB. Se o governo brasileiro aplicasse um programa proporcional, teria de gastar R$ 730 bilhões. Não vai dar. Mas muito pode ser feito.

A crise apanhou o Brasil em pleno processo de recuperação do equilíbrio das contas públicas – o ajuste fiscal. O objetivo, desde a queda de Dilma, tem sido o de reduzir a despesa com a sequência de reformas iniciada com a lei do teto de gastos e depois com a reforma da previdência.

Mas ninguém lida com uma calamidade – uma pandemia, uma guerra – fazendo corte de gastos. É justamente o contrário. Trata-se de aumentar a despesa pública duas vezes, uma para cuidar da calamidade, outra para amenizar os efeitos econômicos da crise e das providências para contê-la.

A rigor, nunca houve dúvidas entre economistas e políticos sérios a respeito disso. Os Estados Unidos gastaram uma fortuna para derrotar a Alemanha e o Japão e, depois, outra fortuna para levantar a Europa devastada. Ninguém pensou em poupar dinheiro.


A pandemia do coronavírus é uma calamidade jamais vista. Logo, todos os governos sérios estão gastando dinheiro com dois objetivos: primeiro, conter a doença, com o isolamento social, e tratar dos doentes e, segundo, apoiar pessoas e empresas afetadas pela parada na economia. A diferença está na rapidez e na eficiência com que os diversos governos estão fazendo isso.

Nos Estados Unidos, por exemplo, o Congresso aprovou o pacote de US$ 2 trilhões quase por unanimidade e com rapidez, apesar dos vacilos de Trump no início da epidemia.

No Brasil, o governo federal está atrasado. Governos estaduais estão tomando medidas fortes e positivas, mas enfrentam uma limitação irremovível. Não têm como imprimir dinheiro, nem fazer mais dívida.

Só o governo federal pode fazer isso. Não dá para gastar 10% do PIB. Se o país (governo e sociedade) prezassem a disciplina fiscal, talvez tivéssemos o espaço fiscal para uma tamanha expansão de gastos. Mas cálculos sugerem que se poderia chegar a uma despesa adicional de 3% do PIB, algo como R$ 220 bilhões.

E o ajuste fiscal? Paciência, fica para depois. Aliás, será até mais difícil. O economista Alexandre Schwartsman, por exemplo, calcula que um bom programa de apoio a pessoas e empresas pode elevar a dívida pública de R$ 5,5 trilhões (75,8% do PIB) para R$ 6,3 trilhões (86,7% do PIB).

Complica, mas simplesmente não há escolha no momento.

Tudo isso para dizer que o presidente Bolsonaro está completamente equivocado. Para ele, não se trata de uma calamidade, mas de uma gripezinha, perigosa apenas para pequena parte da população. Logo, concluiu, não são necessárias medidas radicais, como o isolamento social e a parada do comércio. Para ele, essas medidas, apresentadas como o remédio, na verdade formam o veneno que vai matar a economia, provocando uma forte recessão.

Está errado porque, sem as medidas de contenção (isolamento social e fechamento do comércio e escolas), o vírus vai contaminar muito mais gente; logo, haverá muito mais doentes graves, que necessitarão de mais leitos hospitalares, e mais mortes, muito mais.

No lado econômico, o gasto público vai aumentar e a recessão virá de qualquer modo. Ou seja, relaxar a contenção nem reduz gasto público, nem evita a recessão. E mata mais brasileiros.

A outra solução – a da contenção ou das “medidas radicais” – tem esta virtude especial: salva vidas, ao reduzir o número de infectados.

Tudo considerado, temos um enorme problema no Brasil: o governo federal, que pode arranjar o dinheiro, é comandado por um presidente completamente equivocado. Por isso ainda não saíram as medidas de apoio a pessoas e empresas. Além disso, numa emergência dessas, o setor público tem que agir e gastar de maneira coordenada, para evitar desperdícios. Em vez disso, o presidente prefere brigar com governadores.

Se ninguém conseguir mudar o curso de ação do presidente, a crise vai aumentar e muito. E o presidente vai tentar colocar a culpa nos outros, qualquer outro, como sempre faz. Um desastre para o Brasil.