sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Os caminhos do tecnopopulismo

De modo geral já se conhece como triunfam os populistas. Interpretam as frustrações populares em tempos de crise econômica. Criticam o distanciamento das elites e tendem a valorizar a democracia direta: acham que, uma vez submetidos a escrutínio popular, toda a sua agenda é majoritária. 

Ainda estamos por construir uma teoria sobre o declínio do populismo porque, em termos históricos, ele acabou de se instalar em bases novas, num contexto transformado pela revolução digital. A pandemia deu-nos uma pista.

Populistas como Trump e Bolsonaro tendem a afirmar que os problemas têm soluções simples. Diante da complexidade do novo coronavírus, não conseguiram reagir, exceto pela negação.

O fato de ambos se terem apegado à cloroquina como uma saída mágica é, de certa forma, compreensível. A existência de um remédio eficaz colocaria um ponto final em todo o drama.

Mas, como se diz no Brasil, o buraco era mais embaixo. A complexidade da pandemia exigia respostas nacionalmente integradas, aliança com a ciência médica, uma visão mais flexível de gastos na emergência, solidariedade pelo sofrimento das pessoas.

Tanto Trump como Bolsonaro foram incapazes de cumprir esse roteiro. A insensibilidade talvez seja o fator mais impactante no seu fracasso.


No entanto, a pandemia foi o elemento inesperado que precipitou a demonstração da falsidade da tese de que os problemas dos países são muito fáceis de resolver desde que se eleja o homem certo para o papel. Trump já sentiu os efeitos e corre o risco de ser derrotado nas eleições. Bolsonaro, também assustado, saiu em campanha eleitoral, apesar da distância no tempo.

Nem sempre há pandemias. Porém a rapidez com que os acontecimentos se desenrolam é um fator que sempre ajudará a demonstrar que as soluções não são simples e isso encurtará a vida política dos populistas.

No caso brasileiro, existe um fator tradicional. Quase todos os eleitos prometem combater a corrupção. Alguns, no curso de seu governo, como foi o caso de Collor e mesmo de Lula, acabam sendo envolvidos em denúncias.

Bolsonaro trazia um potencial explosivo na sua prática anterior à chegada ao poder. É o método que utilizou para contratar funcionários em seu gabinete e nos de seus filhos.

As investigações prosseguem no seu mandato. Não têm o poder de derrubá-lo. Mas o obrigam a negociações, a buscar apoio em juízes que certamente pedirão algo em troca por seus favores. O resultado disso é que, por necessidade, Bolsonaro tem de se conciliar com as forças que, na campanha eleitoral, ele insinuou que combateria.

De modo geral, o populismo se escora na democracia direta e afirma que para realizá-la é preciso remover os obstáculos institucionais. Bolsonaro não conseguiu demolir o STF e o Congresso. A prisão de Fabrício Queiroz foi um marco que o fez compreender que precisaria de ambos. Daí partiu para um acordo com o Centrão no Congresso e a distribuição de cargos, como sempre se fez no Brasil.

A bandeira anticorrupção foi para o espaço. Só restava agora empunhá-la contra seus adversários, governadores que também são potenciais candidatos à Presidência.

Ao compreender que o movimento não passaria numa área do eleitorado, Bolsonaro precipitou o mergulho no passado. Não mais combateria a corrupção, exceto na retórica, mas iria apoiar-se nos setores mais fisiológicos do Congresso e concluiria sua transição buscando novos eleitores, escorado no clientelismo, e não mais em demandas de coerência. Sua viagem ao Nordeste, montado a cavalo e usando um chapéu fake de vaqueiro, é a expressão visual de sua metamorfose.

Outro fator que tem peso é a relação dos tecnopopulistas com a imprensa profissional. Eles a incluem no sistema decadente que pretendem destruir. Consideram-na um lixo desprezível e articulam sua comunicação por meio das redes sociais e pequenos veículos que possam comprar com sua verba publicitária. A tática é insultá-la sempre que possível, produzir fatos e oportunidades negativas que possam despertar sua indignação, imperando em suas páginas e telas pela crítica que provocam.

Há duas brechas nessa tática. A primeira delas é que a complexidade da pandemia revitalizou a importância de uma imprensa profissional, associada à ciência, produzindo informações confiáveis para atenuar o desastre sanitário. A segunda brecha é também vital. Apostar apenas nas redes sociais como um espaço em que vale tudo.

Não é mais tão fácil como no passado. Grandes empresas ameaçam retirar sua publicidade se não houver controle do discurso do ódio. E agências especializadas vasculham os perfis inautênticos. O Facebook já derrubou muitos ligados à defesa de Bolsonaro e ataques aos seus adversários.

Ainda faltam elementos essenciais nessa análise. Um deles é a própria economia. O populismo floresceu porque há muito não se sentia um crescimento real do padrão de vida. Enquanto a vida melhorava, era tolerável a relativa distância das elites em relação ao povo. Sem a cloroquina econômica, com o País mais pobre, Bolsonaro cavalgará para onde?

Pensamento do Dia

Marco De Angelis (Itália)

 

O céu cairá sobre nós

O céu cairá sobre nós
e ainda assim estarei por cá
para vos amedrontar.
As nossas barbas
deixarão de ser grisalhas
e os nossos ossos
regressarão à terra que
os viu nascer.
Mas ainda assim cá
estarei para
vos atrapalhar.

Há muito que este solo
sagrado deixou de ser
fértil
e as nossas mulheres são feias;
Por que quereis então
este território?
Canto afegão, tradução de Manuel João Magalhães

Bolsonaro diz que fez o possível e o impossível para salvar vidas

Com a delicadeza que marca seus gestos e palavras, e a capacidade lendária de pôr-se no lugar dos outros, o presidente Jair Bolsonaro, na véspera de o Brasil ultrapassar a marca de 100 mil vítimas fatais do Covid-19, abriu sua live semanal no Facebook falando a respeito do 75º aniversário da explosão da bomba atômica que matou mais de 90 mil japoneses em Hiroshima.


Em seguida, perguntou ao ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, que estava ao seu lado, o que um país que deseje a paz deveria fazer. Pazuello, especialista em logística, que outro dia escolheu uma amiga que não entende de gestão pública nem de saúde para representar o ministério em Pernambuco, respondeu como se tivesse ensaiado a cena: “Prepare-se para a guerra”.

Desta vez até Bolsonaro pareceu surpreso com o que ouviu, mas não passou recibo. Voltou mais adiante ao assunto com uma caixa de cloroquina na mesa à sua frente, e declarou sem disfarçar o esforço de mostrar-se compungido: “Lamento a todas as mortes, já tá chegando nos 100.000, talvez hoje. Vamos tocar a vida e buscar uma maneira de se safar desse problema”.

Ao que Pazuello observou com naturalidade que o Covid-19 deve ser comparado com o HIV, e que é preciso adaptar-se a ele. “O HIV continua existindo, e a maioria se trata”, resumiu. “É vida que segue”. Horas antes, no Palácio do Planalto, Bolsonaro havia garantido: “Junto com os meios que temos, temos como realmente dizer que fizemos o possível e o impossível para salvar vidas”.

E assim transcorreu mais um dia em Brasília, aonde a paz da República não chegou a ser abalada nem mesmo pela notícia de que 8,9 milhões de brasileiros perderam o trabalho nos primeiros três meses de pandemia. A taxa de desemprego chegou a 13,3%. E os pessimistas de plantão, que sempre torcem pelo pior, calculam que poderá bater a casa dos 20% no fim do ano. Toc, toc, troc!

Se isso acontecer, Bolsonaro tirará de letra. Desde o início da pandemia, quando ainda apostava que o número de mortos não passaria de mil, ele repete que se alguém for culpado pelo recuo da economia serão os prefeitos e governadores que obrigaram as pessoas a ficarem em casa. Ele é inocente desse crime. Foi contra o isolamento e o uso de máscaras. Sua consciência está tranquila.

Brasil, um ano no foco da crítica ambiental mundial

Foi uma catástrofe anunciada, após a qual o Brasil voltaria a ser um pária ambiental, como décadas antes. Em junho de 2019, as primeiras análises de dados de satélite mostraram que a Floresta Amazônica estava queimando mais rápido do que se temia. O presidente Jair Bolsonaro insultou os críticos e, em agosto, demitiu o diretor do conceituado Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que comprovara as taxas de desmatamento.

Nos seis meses anteriores de seu mandato, Bolsonaro sistematicamente debilitara, dissolvera ou destruíra muitos dos mecanismos institucionais ou legais de controle e proteção da mata tropical.

O presidente começou sua guerra contra os críticos estrangeiros da política brasileira para a Amazônia após a assinatura do acordo de livre-comércio Mercosul-União Europeia, na cúpula do G20 em Osaka, no final de junho de 2019. Com muito esforço, ele acabou engolindo as críticas de Emmanuel Macron e Angela Merkel à falta de engajamento ambiental do país.

De volta a Brasília, contudo, ele "mandou ver", do modo habitual, alegando que as potências estrangeiras queriam se apoderar da Amazônia; que interesses obscuros estavam por trás da política ambiental dos europeus e suas ONGs.

Em agosto, quando a Alemanha suspendeu verbas para a Amazônia no âmbito da iniciativa de proteção climática, Bolsonaro recomendou à "senhora Merkel" utilizar o dinheiro para o reflorestamento da Alemanha. Dias depois, foi a vez da Noruega cortar seu crédito para o Fundo Amazônia, que já havia canalizado, juntamente com a Alemanha, mais de 3 bilhões de reais para a proteção da floresta e dos indígenas. Bolsonaro zombou, comentando que a Noruega mata baleias - e publicando um vídeo enganoso que mostrava um cetáceo sendo morto por habitantes de outro país.

A opinião pública mundial reagiu com atraso aos crescentes pedidos de socorro dos ambientalistas da América do Sul. Pois o Brasil, que ainda em 2004 incinerara quase 28 mil quilômetros quadrados de mata, tornara-se uma nação que, no início da década de 2010, só desmatava de 6 mil a 7 mil quilômetros quadrados por ano.

A cifra é surpreendentemente modesta, diante das dimensões do país, suas instituições fracas e a pobreza da população na região da mata amazônica. Assim, o Brasil se transformou num protagonista importante no acordo do clima, capaz de se comprometer convincentemente a proteger suas florestas e reter o dióxido de carbono na Amazônia.

A ilusão se desfez definitivamente com os xingamentos gritados de Bolsonaro e o rápido alastramento dos incêndios. As reações vieram sobretudo dos políticos da Europa: na cúpula do G7 em Biarritz, em agosto de 2019, a floresta em chamas ofereceu um flanco aberto para o presidente Macron.

Assim ele pôde fortalecer seu papel de autonomeado guardião do Acordo do Clima de Paris e absorver a pressão dos agricultores franceses contra o livre-comércio UE-Mercosul. No fim do ano, o balanço amazônico era catastrófico para o Brasil, com cerca de 10 mil quilômetros quadrados aniquilados. Bolsonaro reagiu com novos insultos. Aproveitou até mesmo para endossar ataques contra a aparência da primeira-dama francesa, Brigitte Macron.

Desde então, pouco mudou: apesar de o governo Bolsonaro ter mandado as Forças Armadas para a Amazônia e fundado um Conselho Amazônico, os incêndios deverão crescer 28% no ano corrente, preveem funcionários do Ministério do Meio Ambiente.

Mas no prazo de poucas semanas o clima vem mudando. Agora, poderosos investidores e fundos estrangeiros exigem uma redução sensível dos incêndios, senão retirarão seu capital. Aí, 60 firmas domésticas e estrangeiras em território brasileiro seguiram-lhes o exemplo: seus diretores-executivos reforçam as exigências, temendo que seus acionistas ou clientes as abandonem.

O governo continua contando que poderá acalmar os críticos com meros anúncios ou minimizações, e pretende iniciar uma campanha de imagem no exterior. Mas ela pouco adiantará: Bolsonaro já enganou demais em questões de meio ambiente.

Os investidores e empresas agora querem fatos, dizendo: "Os incêndios têm que parar, senão retiramos nosso capital." Isso já está acontecendo; em julho, investidores estrangeiros se distanciaram em massa da bolsa de valores e reduziram seus investimentos em empresas isoladas, como a de carne ou de mineração.

Cabe esperar se a pressão econômica bastará para Brasília começar a proteger seriamente a Amazônia. Pois, assim como para Bolsonaro, para muitos brasileiros a mata tropical pouco importa. Mas, exatamente como seu presidente, eles reagem alergicamente a lições de moral do exterior.

Liberdade para odiar

Minha geração lutou muito pela liberdade para amar. Amar pessoas do mesmo sexo ou de cor de pele diferente. Mulheres lutaram para fazer amor antes do casamento. E para amar vários outros sem correr o risco de ser mortas. Simone de Beauvoir, em “O segundo sexo”, dizia que a questão da mulher não era a felicidade, mas a liberdade. Precisávamos da lei ao nosso lado para exercer o livre-amar e o livre-pensar.

O sentimento na berlinda hoje no Brasil é o oposto. O ódio. Temos o gabinete do ódio ligado ao presidente Bolsonaro. Temos redes de ódio com milhões de seguidores, que destroem reputações, promovem linchamentos virtuais e chegam a levar adolescentes ao suicídio. Odiamos ideias e pessoas com a mesma paixão com que amamos. A Justiça pode coibir ou inibir uma manifestação de ódio? O que o Estado pode fazer para regular o livre-odiar sem que isso se transforme em censura? 

Conversei sobre os limites da liberdade com o constitucionalista Gustavo Binenbojm. Ex-aluno do ministro Barroso, do STF, Binenbojm foi advogado, no Supremo, de uma ação vitoriosa contra a proibição de biografias independentes e pela livre expressão. O voto mais expressivo foi o da ministra Cármen Lúcia: “Cala a boca já morreu!”. Agora, Binenbojm publica, pela Intrínseca, inaugurando o selo de não-ficção História Real, do editor Roberto Feith, o livro "Liberdade igual". 

O livro parte de um aparente paradoxo nesse Brasil tão polarizado: “Somos igualmente livres para sermos diferentes”. Isso significa que preciso aturar os sites bolsonaristas e aquele repugnante assessor do B., Tércio Arnaud Tomaz, o “rapaz das redes” do presidente, banido do Facebook e no Instagram por seu conteúdo tóxico? Afinal, querer ser livre é também querer livres os outros.

Sentimentos de aversão e de ódio são humanos, e não podem ser inibidos pelo Estado. Mas, externar isso de forma discriminatória ou violenta afeta a liberdade de terceiros. É aí que o Estado entra para regular. “A analogia que costumo fazer”, diz Binenbojm, “é com a liberdade de ir e vir. Todo mundo tem liberdade de locomoção, de ir, vir e permanecer, mas ninguém é livre para avançar um sinal vermelho e sair por aí a 160 km por hora, embriagado, arriscando a vida de outras pessoas. Isso também se reflete na liberdade de expressão”.

O que fazer com as fake news, que envenenam as democracias? O projeto começou muito ruim no Senado. Como uma espécie de censura digital, de controle do debate público. Mas o texto encaminhado à Câmara é bem mais amadurecido. Tenta evitar, com meios tecnológicos, campanhas de desinformação e linchamentos em massa. Restringe contas inautênticas, robôs, perfis falsos, que visam a ganhar dinheiro, manipular a opinião pública e até vencer eleições. “A internet não pode ser um território de ninguém, uma selva hobbesiana de luta de todos contra todos. (O filósofo Thomas) Hobbes dizia que, quando o estado de natureza impera, a vida passa a ser uma experiência brutal e breve”. 

Faroeste. Esse é o adjetivo que o autor de "Liberdade Igual" usa para se referir às redes. E o faroeste chega a nossa esquina. No gatilho, o dossiê para identificar servidores antifascistas. “Investigar ideias de cidadãos criando dossiês é uma prática de estados totalitários para discriminar, prejudicar ou perseguir servidores públicos com ideias diferentes do governo. Vindo do Estado, isso torna o Brasil um Estado policial totalitário”.

Vale para fascistas e comunistas? Nosso genial Millôr Fernandes dizia assim, cita Binenbojm: “Democracia é aquele regime em que eu mando em você. Ditadura é aquele regime em que você manda em mim”. 

“Defendo totalmente o Aroeira por sua charge satírica, copiando o símbolo nazista para criticar o comportamento de Bolsonaro diante da pandemia. Um exercício de crítica política. Mas também acho legítimo que o governo critique a esquerda por posturas autoritárias ou totalitárias de governos comunistas. Isso é um dos princípios cardeais de meu livro”. Discuta, ame, odeie, mas lembre sempre que os limites do bom senso e da lei garantem nossa democracia e um convívio civilizado, racional e inteligente. 

Num livre debate, deveria ser possível defender ideias da extrema direita à extrema esquerda, mesmo que pareçam abjetas, ignóbeis, lamentáveis. Mas há limites, como os conteúdos proscritos pela Constituição, não cobertos pela liberdade de expressão. Racismo, homofobia, nazismo, discriminação a qualquer religião, uso de pornografia não autorizada, apologia à pedofilia e ao terrorismo são alguns desses crimes. 

Deveria também ser crime um presidente elogiar torturadores e incitar o povo a se armar e investir contra as instituições democráticas. Ou incitar o povo a contrair coronavírus, aglomerando sem proteção e sem o uso de máscaras. Ou incitar doentes a tomar remédios como a cloroquina, não recomendada pela OMS, nem pela Fiocruz, nem pelos dois ex-ministros da Saúde. Você não acha?