sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Promessas vazias e retrocesso


Os candidatos tratam os eleitores brasileiros com a certeza de que eles gostam mesmo é de ser enganados. Tudo indica que é a pura verdade

O major e o capitão

Morreu Sebastião Curió, um dos mais notórios carrascos da ditadura militar. Em 1973, ele foi destacado para reprimir a Guerrilha do Araguaia. Comandou o sequestro e o assassinato de dezenas de militantes na floresta.

A operação pode ser resumida como um massacre. A ordem do Exército era não fazer prisioneiros. Os guerrilheiros eram capturados, levados para centros de tortura e executados.

Documentos militares mostram que os superiores do major o elogiavam pela “coragem e arrojo” na “árdua tarefa de combate à subversão”. Sem a proteção da ditadura, Curió não se mostrou tão destemido assim. Convocado pela Comissão da Verdade, apresentou três atestados médicos para não depor. Também se esquivou de ser ouvido em casa ou num hospital.

A rigor, seu depoimento nem seria necessário. Em 2009, Curió confirmou ao jornal O Estado de S. Paulo a execução de 41 militantes presos e desarmados. Com frieza, comparou o extermínio à limpeza de uma lavoura. “Quando se capina, não se corta a erva daninha só pelo caule. É preciso arrancá-la pela raiz”, afirmou.


O Ministério Público Federal apresentou sete denúncias criminais contra Curió. Todas foram arquivadas sem julgamento. Se tivesse nascido na Argentina ou no Chile, o major teria terminado seus dias na cadeia. Como nasceu no Brasil, morreu impune, aos 87 anos. Foi beneficiado por uma interpretação controversa da Lei da Anistia, que blinda os militares que praticaram terrorismo de Estado.

Protegido da Justiça, Curió ainda se aventurou na política. Depois de chefiar o garimpo em Serra Pelada, elegeu-se deputado e prefeito. Em maio de 2020, foi recebido com honras por Jair Bolsonaro. Num ato de escárnio com as famílias dos desaparecidos, a Secretaria de Comunicação da Presidência o chamou de “herói do Brasil”.

A relação entre o major e o capitão vinha de longe. Em 1986, Curió enviou uma carta a Bolsonaro, que ainda sonhava disputar sua primeira eleição para vereador. Em papel timbrado da Câmara, manifestou o desejo de “passar o bastão” ao “jovem companheiro”.

O documento foi localizado no Arquivo Nacional pelo historiador Lucas Pedretti. No texto, Curió se revela um visionário: foi o primeiro a identificar Bolsonaro como o legítimo herdeiro dos porões.

Brasil paga bem os patriotas

 


Michelle Bolsonaro e a esposa de Assuero

A pesquisa Datafolha divulgada nesta quinta assinalou que Luiz Inácio Lula da Silva (PT) teria hoje 32% dos votos de evangélicos e 47% da preferência total. No caso do presidente Jair Bolsonaro, o apoio no meio evangélico sobe para 49% e entre o público em geral, 32%.

O resultado mostra que evangélicos e não evangélicos parecem viver em mundos diferentes, um é o avesso do outro. No mundo evangélico quem está às portas da vitória no primeiro turno é Bolsonaro. Não há sinal mais eloquente para se constatar que neste segmento específico da população a decisão de voto é tomada de forma muito diferente do que no do restante da população.

Os evangélicos a si mesmos se denominam de rebanho, e os pastores desse rebanho, muitas vezes, recomendam o voto em Bolsonaro. É tentadora a explicação de que a preferência por Bolsonaro se deve a alguma espécie de obediência cega dos fiéis a guias como Edir Macedo, Silas Malafaia, bispo Waldomiro, apóstolo Estevam, reverendo R. R Soares e outros. Tão tentador quanto enganoso.


Sociólogo e pastor da Primeira Igreja Presbiteriana Independente, uma confissão brasileira surgida de um cisma presbiteriano em 1903, Valdinei Ferreira, de São Paulo, afirma que vem de baixo, do chão dos templos e não dos púlpitos, uma posição política contra a esquerda e, por exclusão, a favor de Bolsonaro.

“Fala-se muito na adesão dos pentecostais a Bolsonaro, mas nos evangélicos das denominações históricas isso é ainda mais forte”, comenta.

Outra pesquisadora, a antropóloga Jacqueline Moraes Teixeira, professora da UnB e pesquisadora do Cebrap, participou de pesquisas qualitativas com mulheres evangélicas em parceria com o Iser, do Rio de Janeiro, e atesta: as pessoas não decidem o voto em Bolsonaro apenas porque o líder de sua comunidade recomendou. Só o fazem quando recebem informações, falsas ou verdadeiras, que indicam que qualquer outra opção que não Bolsonaro podem colocar em xeque políticas que elas apoiam. É uma diferença sutil: não há o voto de curral, mas há o voto de um público sugestionável a mensagens que chegam no idioma que se entende na comunidade.

Bolsonaro fala a língua que é compreendida dentro de uma narrativa muito antiga. Se encaixa na tradição da luta do bem contra o mal, do conflito com o reino do materialismo, da promiscuidade, de Satanás. Um maniqueísmo onde, conforme observa o pastor Ferreira, se esquece de um preceito teológico, o de que o mal está dentro de cada um, e não exteriorizado em um outro.

Neste sentido, segundo Ferreira, é impossível entender a força de Bolsonaro entre os evangélicos sem lançar os olhos para a sua mulher, Michelle. Bolsonaro, frise-se, é um político católico, que até cerca de dez anos atrás nunca se notabilizou pela defesa das bandeiras tradicionais do conservadorismo religioso e nem demonstrava essa religiosidade em sua vida privada.

Michelle é uma evangélica raiz, como se diz atualmente. Neste sentido, ela é a representante do povo de Deus dentro do Palácio. Segundo o pastor, se assemelha no imaginário bíblico à figura de Ester, do Antigo Testamento.

Ester, judia, casou-se com Assuero, o rei dos medos e dos persas, um déspota afeito a alguns dos sete pecados. Tornou-se a rainha. A sua capacidade de persuasão levou Assuero a se tornar de perseguidor em protetor dos judeus, para desespero de seus adversários. Ester guiou a ação de Assuero, sem nunca substituí-lo.

“O evangélico tende a se imaginar dentro da Bíblia. Uma figura como Michelle é fundamental para garantir a aderência ao projeto bolsonarista. Ela é a evangélica. Ele não”, comenta o pastor Ferreira.

A associação entre Michelle e a rainha Ester também apareceu nos grupos de qualitativa com mulheres evangélicas, segundo Jaqueline Teixeira. “É a figura que representa o compromisso com valores maiores, já que o marido tem defeitos amplamente reconhecidos dentro da comunidade”, diz.

Há ainda uma questão de identificação. O antropólogo Juliano Spyer, pesquisador da UFRJ e criador do Observatório Evangélico, um portal de informações, lembra que a onda evangélica no Brasil é recente, tem suas raízes na migração do meio rural para as grandes cidades de uma massa com baixa instrução e valores conservadores que se chocou com a cultura das grandes cidades. Um aluvião humano que a Igreja Católica foi incapaz de acompanhar.

Neste universo a pessoa evangélica típica é mulher, não branca, distante das leituras. Reúne categorias do eleitorado muito propensas a votar em Lula. É um contingente ainda relativamente jovem, na faixa de 30 a 45 anos.

O peso do Nordeste é crescente. Não é possível vislumbrar hegemonia evangélica em nenhuma região do Brasil, mas especialistas apontam que é no Nordeste, um reduto lulista, que os evangélicos se expandem com maior velocidade. Se o petista conta com cerca de um terço das preferências no segmento evangélico, a razão principal aí está: nas mulheres, nordestinas, pretas e pardas, de baixa instrução e baixa renda, muitas vezes chefes da família e altamente sensíveis a políticas públicas na área social, como transferência de renda, educação e saúde.

A principal arma que Bolsonaro tem para sensibilizar um público com características tão próximas ao lulismo é a primeira-dama.

“Michelle se aproxima muito desse perfil. Ela não é alguém que aparece agora, desde o início do governo Bolsonaro tem visibilidade com causas como direitos a portadores de deficiência. Então seu surgimento na campanha não soa como estratégia eleitoreira”, diz Jaqueline.

A mulher evangélica, diz a pesquisadora, é permeável a um tipo de agenda que não é a vocalizada pelo presidente, mas pode ser representada pela sua cônjuge. É bom lembrar que Michelle, ao contrário do marido, se vacinou contra a covid-19 e, de acordo com o próprio Bolsonaro, tem aversão a armas.

A ditadura moderna

A diferença [entre a ditadura convencional e a do capitalismo] é que não é a ditadura como nós conhecemos. É o que eu chamo de ‘capitalismo autoritário’. A ditadura tinha cara, e nós dizíamos é aquele, ou aqueles militares, o Hitler, o Franco, o Pinochet, mas agora não tem cara. E como não tem cara não sabemos contra quem lutar. Não há contra quem lutar. O mercado não tem cara, só tem nome. Está em toda parte e não podemos identificá-lo, dizer ‘eis tu’. Mesmo as pessoas que lutaram contra a ditadura, entrando na democracia acham que não têm mais que lutar. E os problemas estão todos aí. O mercado pode se tornar uma ditadura.

José Saramago, "As palavras de Saramago"

O Brasil, colônia de si mesmo

Ao completar 200 anos de idade, o Brasil ainda peleja no divã da história para se libertar de sua personalidade colonial. O volume 3 da trilogia Escravidão, transcreve trechos do abolicionista Joaquim Nabuco, que vestem perfeitamente no Brasil atual.

“Um país já velho… com paisagem marcada pelo abandono… cultiva o desprezo pelos interesses do futuro e a ambição de tirar o maior lucro imediato…, qualquer que seja o prejuízo das gerações futuras… Queimou, plantou e abandonou… não edificou escolas, não construiu pontes, nem melhorou rios… não concorreu para progresso algum na zona circunvizinha”.
(O Abolicionismo, 1883)

O que Nabuco descreve acima se aplicaria ao modelo colonial europeu em geral, como fonte inesgotável de riquezas às custas do meio ambiente e da vida de povos originários e africanos.

Contudo, não custa refletir se o Brasil não seria um projeto inacabado de República, no qual interesses políticos e econômicos irresponsáveis aliam-se, vez por outra, aos costumes arcaicos da sociedade, como se ainda fossem mercadores, apenas de passagem pela colônia.

Nesse sentido, cabe lembrar que, em pleno século XIX, quando outras colônias e monarquias tradicionais já iam longe na instalação de suas instituições democráticas, o Brasil insistia no sentido oposto.

Os Estados Unidos já eram república, a Revolução Francesa dava frutos, o Haiti fervia liderado por negros, a revolução industrial transformava as sociedades, e a escravidão era abolida mundo afora.


Enquanto isso, em 1822, o Brasil torna-se, não uma república, mas, um império na América (cujo imperador ‘independente’ era o herdeiro do trono colonizador!).

Não foi à toa que, enquanto o mundo criava tecnologias como a máquina a vapor, o telefone, a eletricidade, vacinas, e diferentes formas de democracia, o Brasil seguiu convictamente agrário e escravista.

Por isso, não surpreende que, até hoje, em plena emergência climática, o País continue na contramão, sem um plano de desenvolvimento (ou sobrevivência) que corresponda à estatura e à gravidade do desafio global.

Quando finalmente a escravidão foi abolida no Brasil, quase no séc. XX, cerca de 5 milhões de africanos (e quantidade semelhante de indígenas) haviam sido sequestrados, escravizados ou mortos (número de fazer inveja a qualquer holocausto).

A República só chegaria um ano depois, por meio de um golpe de Estado patrocinado pelos escravocratas ressentidos, que remodelaram seus negócios e suas relações de poder.

Escravidão III destaca que o conceito de República utilizado no século XIX ainda era dissociado da definição de Democracia (até então, considerada uma ideia anárquica demais).

Quem sabe, essa visão de república autocrática e positivista não persista no DNA brasileiro.

E, quem sabe, justifique, ainda hoje, o abandono da população negra ao próprio azar, o extermínio de indígenas, a devastação ambiental, a violência e os vaivéns da democracia.

Com empresários golpistas, Bolsonaro realiza o sonho da elite própria

Em menos de uma semana, Jair Bolsonaro conseguiu preencher uma cartela com o repúdio de quatro grupos influentes da vida nacional. Na quinta passada (11), um manifesto encabeçado por intelectuais e pela elite econômica denunciou as ameaças golpistas do presidente. Cinco dias depois, cardeais da política e dos tribunais se opuseram aos ataques do capitão e aplaudiram as urnas eletrônicas em cerimônia no TSE.

Bolsonaro disputou a última eleição com o figurino de um candidato que desafiava os interesses dos ricos e poderosos. O presidente tenta renovar a imagem sempre que se vê isolado por esses grupos: andou dizendo que os bancos só defendem a democracia porque perderam dinheiro com a criação do Pix e alega que o establishment trabalha contra ele porque seu governo não cedeu a velhos conchavos.


A ideia é a mesma desde a campanha passada: assumir o rótulo de um movimento antielitista e reivindicar uma suposta legitimidade popular a favor de seus interesses políticos. Essa linha vale tanto para o discurso eleitoral clássico como para suas incansáveis propostas de ruptura ("eu faço o que o povo quiser").

Apesar de aproveitar o personagem, Bolsonaro está muito bem servido por uma elite que parece disposta a ficar a seu lado para o que der e vier. Não são poucos os endinheirados que apostam numa vitória do capitão, enquanto outros querem que ele permaneça no poder mesmo que seja derrotado nas urnas.

Há meses, um grupo de empresários lidera uma torcida organizada do golpismo pelo WhatsApp. Segundo uma reportagem do site Metrópoles, estão lá o notório Luciano Hang e os donos das marcas Multiplan e Coco Bambu, entre outros. Um deles disse abertamente preferir um "golpe do que a volta do PT".

Com empresários amigos, políticos poderosos alimentados com verba pública e aliados em postos-chave, Bolsonaro realizou o sonho da elite própria. Resta saber se essa turma está disposta a pagar a conta dos delírios autoritários do capitão.

Bolsonaro embalsamado

Enquanto Bolsonaro tinha de engolir sem água o discurso de posse do ministro Alexandre de Moraes na presidência do TSE, sua tropa nas redes sociais disparava milhares de mensagens convocando para ataques ao mesmo TSE nas arruaças de 7 de Setembro. Esses disparos eram como o braço mecânico do "Dr. Fantástico", personagem de Peter Sellers no filme de Stanley Kubrick, automático, incontrolável, programado para fazer sem parar a saudação nazista, e seriam as senhas para um possível golpe contra as eleições. Mas, como Bolsonaro percebeu, a fala de Moraes foi um direto de muay thai contra seu projeto.


O significativo é que a mensagem do discurso —a garantia de que qualquer ameaça às instituições será rechaçada por elas— foi feita na presença dos representantes dessas instituições. Ali estavam os três Poderes da República, a sociedade civil e as missões estrangeiras, o que cobre praticamente o leque. Todos aplaudindo de pé, para constrangimento de Bolsonaro, rígido como uma múmia recém-embalsamada. E houve o que me calou mais fundo: Moraes e demais oradores fizeram uma incisiva pregação antigolpe sem usar a palavra golpe.

Não foi preciso. A ideia de golpe já está no ar há muito tempo, o que anula certas condições indispensáveis para torná-lo possível: a conspiração, o segredo, a surpresa. Todo mundo, inclusive lá fora, sabe hoje que Bolsonaro é golpista.

Quando falei em golpe pela primeira vez neste espaço, na coluna "Remédio para azia", de 13 de dezembro de 2019, leitores me acusaram de estar vendo fantasmas. Ainda se achava que Bolsonaro era só um destrambelhado. Mas ali já se via que, por trás do destrambelho, havia um projeto. Um projeto de golpe.
Desde então, perdi a conta de quantas vezes usei aqui essa palavra. Sempre achei que, quanto mais se falasse de golpe, mais difícil seria tentá-lo. E talvez ainda não se tenha falado o suficiente.