O resultado mostra que evangélicos e não evangélicos parecem viver em mundos diferentes, um é o avesso do outro. No mundo evangélico quem está às portas da vitória no primeiro turno é Bolsonaro. Não há sinal mais eloquente para se constatar que neste segmento específico da população a decisão de voto é tomada de forma muito diferente do que no do restante da população.
Os evangélicos a si mesmos se denominam de rebanho, e os pastores desse rebanho, muitas vezes, recomendam o voto em Bolsonaro. É tentadora a explicação de que a preferência por Bolsonaro se deve a alguma espécie de obediência cega dos fiéis a guias como Edir Macedo, Silas Malafaia, bispo Waldomiro, apóstolo Estevam, reverendo R. R Soares e outros. Tão tentador quanto enganoso.
Sociólogo e pastor da Primeira Igreja Presbiteriana Independente, uma confissão brasileira surgida de um cisma presbiteriano em 1903, Valdinei Ferreira, de São Paulo, afirma que vem de baixo, do chão dos templos e não dos púlpitos, uma posição política contra a esquerda e, por exclusão, a favor de Bolsonaro.
“Fala-se muito na adesão dos pentecostais a Bolsonaro, mas nos evangélicos das denominações históricas isso é ainda mais forte”, comenta.
Outra pesquisadora, a antropóloga Jacqueline Moraes Teixeira, professora da UnB e pesquisadora do Cebrap, participou de pesquisas qualitativas com mulheres evangélicas em parceria com o Iser, do Rio de Janeiro, e atesta: as pessoas não decidem o voto em Bolsonaro apenas porque o líder de sua comunidade recomendou. Só o fazem quando recebem informações, falsas ou verdadeiras, que indicam que qualquer outra opção que não Bolsonaro podem colocar em xeque políticas que elas apoiam. É uma diferença sutil: não há o voto de curral, mas há o voto de um público sugestionável a mensagens que chegam no idioma que se entende na comunidade.
Bolsonaro fala a língua que é compreendida dentro de uma narrativa muito antiga. Se encaixa na tradição da luta do bem contra o mal, do conflito com o reino do materialismo, da promiscuidade, de Satanás. Um maniqueísmo onde, conforme observa o pastor Ferreira, se esquece de um preceito teológico, o de que o mal está dentro de cada um, e não exteriorizado em um outro.
Neste sentido, segundo Ferreira, é impossível entender a força de Bolsonaro entre os evangélicos sem lançar os olhos para a sua mulher, Michelle. Bolsonaro, frise-se, é um político católico, que até cerca de dez anos atrás nunca se notabilizou pela defesa das bandeiras tradicionais do conservadorismo religioso e nem demonstrava essa religiosidade em sua vida privada.
Michelle é uma evangélica raiz, como se diz atualmente. Neste sentido, ela é a representante do povo de Deus dentro do Palácio. Segundo o pastor, se assemelha no imaginário bíblico à figura de Ester, do Antigo Testamento.
Ester, judia, casou-se com Assuero, o rei dos medos e dos persas, um déspota afeito a alguns dos sete pecados. Tornou-se a rainha. A sua capacidade de persuasão levou Assuero a se tornar de perseguidor em protetor dos judeus, para desespero de seus adversários. Ester guiou a ação de Assuero, sem nunca substituí-lo.
“O evangélico tende a se imaginar dentro da Bíblia. Uma figura como Michelle é fundamental para garantir a aderência ao projeto bolsonarista. Ela é a evangélica. Ele não”, comenta o pastor Ferreira.
A associação entre Michelle e a rainha Ester também apareceu nos grupos de qualitativa com mulheres evangélicas, segundo Jaqueline Teixeira. “É a figura que representa o compromisso com valores maiores, já que o marido tem defeitos amplamente reconhecidos dentro da comunidade”, diz.
Há ainda uma questão de identificação. O antropólogo Juliano Spyer, pesquisador da UFRJ e criador do Observatório Evangélico, um portal de informações, lembra que a onda evangélica no Brasil é recente, tem suas raízes na migração do meio rural para as grandes cidades de uma massa com baixa instrução e valores conservadores que se chocou com a cultura das grandes cidades. Um aluvião humano que a Igreja Católica foi incapaz de acompanhar.
Neste universo a pessoa evangélica típica é mulher, não branca, distante das leituras. Reúne categorias do eleitorado muito propensas a votar em Lula. É um contingente ainda relativamente jovem, na faixa de 30 a 45 anos.
O peso do Nordeste é crescente. Não é possível vislumbrar hegemonia evangélica em nenhuma região do Brasil, mas especialistas apontam que é no Nordeste, um reduto lulista, que os evangélicos se expandem com maior velocidade. Se o petista conta com cerca de um terço das preferências no segmento evangélico, a razão principal aí está: nas mulheres, nordestinas, pretas e pardas, de baixa instrução e baixa renda, muitas vezes chefes da família e altamente sensíveis a políticas públicas na área social, como transferência de renda, educação e saúde.
A principal arma que Bolsonaro tem para sensibilizar um público com características tão próximas ao lulismo é a primeira-dama.
“Michelle se aproxima muito desse perfil. Ela não é alguém que aparece agora, desde o início do governo Bolsonaro tem visibilidade com causas como direitos a portadores de deficiência. Então seu surgimento na campanha não soa como estratégia eleitoreira”, diz Jaqueline.
A mulher evangélica, diz a pesquisadora, é permeável a um tipo de agenda que não é a vocalizada pelo presidente, mas pode ser representada pela sua cônjuge. É bom lembrar que Michelle, ao contrário do marido, se vacinou contra a covid-19 e, de acordo com o próprio Bolsonaro, tem aversão a armas.
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