domingo, 24 de abril de 2022

Dilema do diabo

No inferno deve haver um lugar à parte para os medíocres, e o próprio Satã, contemplando a presa inerte, tridente erguido, deverá indagar de si mesmo um tanto perplexo: ‘Que farei com isto, se até o sofrimento em sua presença diminui de intensidade?
Lúcio Cardoso, "Crônica da Casa Assassinada"

As duas faces do general

Você lembra que Hamilton Mourão era o Mozão? Foi no início do governo, quando ele, em público e sobretudo no trato com a imprensa, assumiu ares de homem cordial e ganhou o apelido que desfazia a imagem de general linha-dura. O candidato a vice-presidente —que antes falava em "autogolpe" para evitar a "anarquia generalizada"— passou a representar o poder moderador, a sombra de um estadista preocupado com os destinos do país, garantia de que a presença do Exército no Palácio do Planalto iria conter a natureza autoritária de Bolsonaro. Era uma farsa. Quem acreditou nela dorme todos os dias com a ameaça do golpe batendo à porta.


O que Mourão, quando de novo é candidato (irá disputar uma vaga no Senado pelo Rio Grande do Sul), mostra quem é o verdadeiro Mozão. Só seus cabelos negros como a asa da graúna não mudaram.

Sua atuação era digna de aplausos. Se durante a pandemia, o presidente exibia a carantonha limpa, o vice cobria o rosto com a máscara do Flamengo, democrático, povão. O general se apresentava como alguém dotado de cérebro. Se Bolsonaro dizia que "o nazismo era um movimento de esquerda", ele rebatia: "De esquerda era o comunismo". Homem sem ódios ou ressentimentos, tirou uma foto sorrindo ao lado de FHC nos EUA, para provocar o atrito ensaiado com a chamada ala ideológica. O filho 02 disse que Mourão queria derrubar o pai, e o deputado Marco Feliciano chegou a entrar com pedido de impeachment contra ele.

São uns artistas. Quando presidia o Clube Militar e tramava com seus pares entrar para a política aproveitando a onda bolsonarista, Mourão já exaltava o Golpe de 64 e o coronel Brilhante Ustra. Não surpreende que faça piada com tortura.

"Eu não posso usar meu Viagra, pô?" Nem no Posto Seis de Copacabana, onde se reúnem os generais de pijama para jogar dama, a frase teria graça. Bolsonaro e Mourão governam o Brasil no modo esculacho.

Brasil de stand up

 


Bolsonaro é Sylvio Frota

À primeira vista, o desgraçado indulto que Jair Bolsonaro concedeu ao deputado Daniel Silveira foi visto pelo presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco, como um ato normal que não pode ser contestado. Depois, em entrevista ao GLOBO, disse que ele fragiliza a justiça penal, mas é legítimo. Antes do decreto ser assinado, o presidente da Câmara, deputado Arthur Lira, já havia enviado ofício ao Supremo Tribunal Federal em favor de Silveira, pedindo que a Corte defina que apenas o Congresso pode cassar o seu mandato. Os chefes da Câmara e do Senado, que deveriam defender as instituições e a democracia que as duas Casas sustentam, condenando com veemência a afronta de Bolsonaro, se posicionaram de maneira dúbia, com espinhas dobradas.

Pacheco e Lira foram condescendentes e são cegos. Não conseguem enxergar que mantida esta escalada, mais adiante os alvos da ira antidemocrática do presidente serão eles e seus pares. Bolsonaro se coloca acima da Constituição ao decretar que o Supremo Tribunal errou e indultar Silveira. E o que os presidentes das casas legislativas fazem? Nada. Apenas Pacheco fez uma breve ponderação, passando o pano sobre o ato que chamou de constitucional e que, segundo ele, tem de ser acatado pelo STF. O que houve, além da afronta ao Supremo, foi um insulto ao Congresso, mas seus líderes abaixaram a cabeça. Um dia podem ser obrigados a baixá-las para serem cortadas pelo presidente golpista.


Bolsonaro, todos sabem, é um candidato a autocrata que defende a ditadura de 1964 e faz reverência a torturadores, como o seu herói Brilhante Ustra. Se fosse mais velho e não tivesse sido expulso do Exército por baderna, certamente estaria entre a tigrada que desceu o pau nos porões do regime. Provavelmente teria se conflagrado contra o presidente Ernesto Geisel e apoiado o general Sylvio Frota na tentativa de golpe que o ministro do Exército quis aplicar contra a abertura do regime, em 1977. Bolsonaro, não tenham dúvida, seria da linha dura da ditadura.

Se consumar o golpe que vem tentando desde 7 de setembro do ano passado, sua prática será absolutista. Não ouvirá ninguém. Se fosse moderado, cassaria alguns ministros do Supremo e parlamentares da oposição. Mas, não, Bolsonaro é Sylvio Frota. O golpista empoderado fecharia o Congresso e o STF, rasgaria a Constituição e governaria como um monarca totalitário. Pacheco, Lira e outros parlamentares do Centrão que apoiam o governo, a maioria por razões fisiológicas, não conseguem ver o óbvio. Aparentemente, a proximidade dos cofres públicos embaça a visão.

O objetivo de Bolsonaro é evidente. Obviamente ele não está indultando um presidiário que cumpriu parte da sua pena, que se comportou exemplarmente durante o encarceramento, que tem família para criar. Ele está beneficiando um criminoso aliado do seu agrupamento fascistóide de maneira a provocar o Supremo, gerando uma crise institucional que beneficia seu projeto golpista. Ele quer um óbice do STF para alegar que seus poderes constitucionais estão sendo violados. Por isso, para reforçar a posição do tribunal, os líderes do Congresso deveriam se manifestar de maneira firme e inequívoca contra o indulto. Não foi o que se viu.

Se com seus poderes hoje balizados pela Constituição Jair Bolsonaro já governa cercado por generais, imaginem se o seu golpe vingar. Seguirá escolhendo sempre generais que pensam como ele, os linha dura, agressivos, autoritários (Braga, Ramos, Heleno) e os lambe botas (Pazuello). Os mais inteligentes, independentes e éticos (Santos Cruz, Rêgo Barros) foram defenestrados do governo e continuarão fora do jogo. Será com aqueles, além dos zeros que o acompanham nas suas barbaridades, que o ditador vai compartilhar o poder e o butim se deflagrar com êxito um golpe. Aí, não sobrará muita coisa para Lira, Pacheco e o resto da turma.

Voltem aos Quartéis

Durante 21 anos de regime militar, as Forças Armadas foram temidas e criticadas, mas havia respeito, temeroso e indignado. Depois desse período, as Forças Armadas se recolheram aos quarteis e ao respeito somou-se admiração. Em 2018, um capitão e um general foram eleitos e levaram o Exército de volta ao poder, comprometendo as FFAA. Os eleitos representam seus partidos, não as instituições a que pertencem. Mas os soldados – Presidente, Vice-Presidente e os muitos militares – que foram eleitos em 2019 optaram por comprometer o Exército, a Marinha e a Aeronáutica nos erros do novo governo.

Em consequência, a partir de 2019, nossas Forças Armadas começaram a degradar sua imagem, em função do destempero irresponsável de um presidente despreparado para o cargo; da incompetência de ministros incompetentes para gestão; da falta de empatia diante do sofrimento dos doentes e mortos pela epidemia e dos mortos sob tortura durante a ditadura; diante também dos desperdícios de gastos com compras desnecessárias e até ridículas; por suspeitas de corrupção e conivência com ameaças às instituições democráticas e pelo desprezo diante de nossas riquezas naturais e nossos povos indígenas.

O governo militar eleito está degradando a imagem militar muito mais do que o governo militar golpista, tanto dentro quanto fora do país. Depois de quase quatro anos de governo, a imagem das FFAA está desgastada e ridicularizada, debochada em alguns momentos. Isto não é bom para o Brasil.

Um país com nossa dimensão precisa de FFAA fortes, preparadas, profissionais, bem equipadas e, sobretudo respeitada pela população, uma instituição de todos, sem partidarismo e sem comprometimento com os erros do governo do momento, passageiro como todos governos.

Por isto, o Brasil precisa retomar confiança e respeito por seus soldados, e não há outra forma, salvo eles se descomprometerem com os erros do governo e retornarem aos quarteis.

As FFAA não deveriam ser um partido, mas parece que se preparam para disputar eleição com uma chapa puro sangue militar. Se perderem, voltarão aos quarteis rejeitadas; se ganharem, ficarão mais quatro anos com o atual presidente, e a desmoralização será ampliada. Se decidirem apoiar ruptura na ordem democrática, poderão ficar mais tempo, adiarão a saída, mas sairão do poder com a imagem ainda mais desgastada, como mostra a experiência no Brasil e em todas partes.

Todo cidadão, civil ou militar, tem direito de se candidatar, mas sem levar as FFAA como reféns de líderes ou seus partidos. O Brasil precisa de seus soldados respeitados, profissionalizados na caserna. Se forem patriotas, voltem aos quarteis.

Distopia (trecho)

Para Mussa José Assis
Como será o amanhã...!?
um itinerário sem destino?
um calendário de incertezas?
O que restará dessa anêmica biosfera...!?
do fluxo agonizante das nascentes...
das bandeiras hasteadas pela vida!?
Dia a dia e esse palco inquietante...!
esse escasso oxigênio,
essa delgada água,
esse termômetro assustador.
Ano a ano e a ampulheta do caos escorrendo lentamente nossas vidas...!
nessa paisagem devorada,
nesse carbono letal,
nesse mapa pontilhado pela morte.


Como será o planeta do amanhã...!?
Um mar sem arquipélagos?
um oceano de migrantes?
uma praia de naufrágios?
Falo de uma temperatura cruel,
de paisagens derretidas,
de uma frota de icebergs navegando os sete mares.

Como será a terra do amanhã!?
um campo calcinado?
uma lavoura sinistra?
Que sabor terão os frutos na próxima estação?
que surpresas nos escondem os segredos da ciência?
o que colheremos da alquimia da ganância?
Falo de patentes criminosas,
de sementes suicidas,
dessa dinastia de flores virulentas polinizando a vida
e desse bizarro contrabando germinando sobre a terra.

Como será teu amanhã!?
um teclado de emoções?
um híbrido palpitar?
Com que apetite digitarás as tuas ânsias
degustando essa cultura cibernética?
digerido pelos circuitos virtuais,
pelo marketing neurológico das partículas,
por esse “chip” instalado no teu cérebro,
processando uma ordem dogmática: conecte, “navegue”, consuma...
Com que senha abrirás teu coração?
haverá um ícone para a solidariedade?
um link para a compaixão?
Qual a fronteira entre tu mesmo e a máquina?
quem são essas moléculas engenhosas?
esses átomos amestrados
a devassar teu íntimo recanto de criatura?

Como será nosso amanhã!?
Uma bússola sem norte?
um insulto à liberdade?
com que farol iluminaremos nosso rumo
acuados pela ousadia da violência
e sitiados pelo próprio livre-arbítrio?
Aqui e acolá as estreitas fronteiras do pânico...
esse semáforo que não abre...
esse alguém que te observa...
esse olhar engatilhado...
uma abordagem indigesta
e o cronômetro do pavor computando teu destino.
No roteiro dantesco da sobrevivência
reabres dia a dia tua agenda...,
é o teu cotidiano decomposto,
essa incerteza diária de chegar...
essas balas que assobiam no perímetro dos teus passos.

Como será nosso amanhã!?
Um mundo sem idioma?
um cântaro de fel?
Falo de um território dominado por estranhas hierarquias,
por facções tatuadas com os signos da maldade,
pelos mercenários do vício
enriquecidos pelos lucros homicidas.
Falo de uma legião de vítimas,
de uma síndrome cruel e invencível,
de criaturas e sonhos em farrapos.
Falo dos “juízes” da vida e da morte,
de sentenças e chacinas,
de um comando sinistro e impassível.
Falo da cidadania encurralada pelas milícias do ódio
e de um mercado inexorável do extermínio.

Como será o amanhã!?
um shopping de entretenimentos?
uma oficina de vaidades?
um imenso bazar de grifes e mesmices?
Quem sabe..., uma alameda “fashion”...
onde desfilam as esbeltas silhuetas da ilusão,
estampadas, dia a dia, nas páginas coloridas do glamour.
Ou, talvez, um teatro de incautos “marionetes”...
encenando a sensualidade e o acinte
na pública ribalta do hedonismo!

Como será o amanhã?
Um santuário virtual do “encanto”?
uma cidadela da luxúria?
Falo da explícita pedagogia do erotismo,
seus ícones, seus balcões,
suas vitrines pontocom.
De suas telas insinuantes,
seu varejo literário,
e sua indigesta ditadura musical.
Falo da sodomia on-line,
de devassadas alcovas eletrônicas
e desse promíscuo ritual de fantasias.

E pergunto, perplexo, pela pátria do amanhã...
e falo das paisagens sedutoras do poder,
desse cheiro putrefato que chega do planalto.
Falo de uma oficial voracidade...
dessa doméstica fauna de homens públicos,
...essa nossa biodiversidade insustentável.
Falo da ascensão vertiginosa da esperteza,
dessa inumerável galeria de “celebridades”,
trajadas com as fisiológicas legendas do poder.
Falo do escândalo nosso de cada dia,
da nação envergonhada por quadrilhas palacianas,
por dossiês sonegados e pelos crimes arquivados.
Falo dessa insultante presunção de inocência,
dessa triste balada da alma humana,
dançando pela culpa absolvida
e gargalhando com escárnio da justiça.

O que sobrará enfim desse perene banquete...!?
para onde caminha essa infantil humanidade...
embriagada pelo licor das ilusões
e indiferente à dor dos desgraçados?
Quem sabe reste um naco qualquer de fraternidade
para ser digerido com um gole de esperança...
um “cardápio” para os filhos da miséria,
uma migalha perene...
para saciar essa fome que janta, na calçada, o nosso lixo remexido.

E eis porque falo de uma alarmante geografia de lágrimas,
de uma favela planetária
de uma legião mundial de parias.
Falo de criaturas açoitadas pela vida
de um mundo que “não dorme e que não come”
que “não lê e não escreve”...
Como saciar tanta sede de justiça?
como conter essa fome parindo seus herdeiros?
Manoel de Andrade, "Cantares"

O clube dos moinhos de vento

A imigração certamente não é o problema mais sério da França. Todos os dias chegam à União Europeia trabalhadores de várias nacionalidades e qualificações. Segundo estudos da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE – o clube dos países ricos –, os imigrantes movimentam a economia em países onde a população está envelhecendo. A seleção de futebol que ganhou a Copa do Mundo é o emblema da nova França multicultural.

O segundo turno entre Emmanuel Macron e Marine Le Pen será hoje – e a imigração foi tema no debate eleitoral francês. “Le Pen suavizou seu discurso, mas sua posição histórica – fechar as fronteiras francesas – atentaria contra um dos princípios básicos da União Europeia, que é a livre circulação de pessoas”, diz o cientista político Andrei Roman, entrevistado no minipodcast da semana. Ele é CEO do Atlas, empresa de análise de dados que atua em eleições em vários países.

O Brasil tem problemas seriíssimos – inflação, corrupção, pobreza – e a falta de liberdade de expressão não está entre eles. O tema, no entanto, ganhou relevância ao longo desta semana. Em decisão “pedagógica”, como observou o Estadão em editorial, o Supremo Tribunal Federal condenou o deputado federal Daniel Silveira a oito anos e nove meses de cadeia, “por usar de violência ou grave ameaça para impedir o exercício dos Poderes”.


Para atiçar uma discussão falaciosa sobre liberdade de expressão, o presidente Jair Bolsonaro peitou o STF ao quebrar uma promessa de campanha e conceder indulto ao deputado criminoso. De acordo com o editorial do Estadão, “não existe liberdade de expressão para atacar a democracia”.

Um traço comum entre Brasil e França é a existência de políticos que usam a tática de desviar o assunto para temas irrelevantes, mas com apelo popular – os “moinhos de vento”. 60% dos franceses se preocupam com a imigração, segundo pesquisa do Atlas. “Os benefícios econômicos não são óbvios para grande parte dos eleitores, e a direita radical usa isso”, diz Roman.

É uma tática disseminada. Na Hungria e na Polônia, candidatos à presidência inventaram um complô internacional LGBTQIA+. Viktor Orbán e Andrzej Duda venceram seus pleitos usando esse discurso. A última pesquisa do Atlas, no entanto, aponta uma vitória de Macron por 53 a 47. Mais uma vez os franceses deverão fugir do radicalismo.

As eleições de outubro dirão se Bolsonaro terá sucesso ao desviar a campanha dos problemas sérios. Qualquer que seja o resultado do pleito, a democracia perde quando o debate foge dos fatos e abraça o universo ficcional dos moinhos de vento.