domingo, 24 de abril de 2022

Distopia (trecho)

Para Mussa José Assis
Como será o amanhã...!?
um itinerário sem destino?
um calendário de incertezas?
O que restará dessa anêmica biosfera...!?
do fluxo agonizante das nascentes...
das bandeiras hasteadas pela vida!?
Dia a dia e esse palco inquietante...!
esse escasso oxigênio,
essa delgada água,
esse termômetro assustador.
Ano a ano e a ampulheta do caos escorrendo lentamente nossas vidas...!
nessa paisagem devorada,
nesse carbono letal,
nesse mapa pontilhado pela morte.


Como será o planeta do amanhã...!?
Um mar sem arquipélagos?
um oceano de migrantes?
uma praia de naufrágios?
Falo de uma temperatura cruel,
de paisagens derretidas,
de uma frota de icebergs navegando os sete mares.

Como será a terra do amanhã!?
um campo calcinado?
uma lavoura sinistra?
Que sabor terão os frutos na próxima estação?
que surpresas nos escondem os segredos da ciência?
o que colheremos da alquimia da ganância?
Falo de patentes criminosas,
de sementes suicidas,
dessa dinastia de flores virulentas polinizando a vida
e desse bizarro contrabando germinando sobre a terra.

Como será teu amanhã!?
um teclado de emoções?
um híbrido palpitar?
Com que apetite digitarás as tuas ânsias
degustando essa cultura cibernética?
digerido pelos circuitos virtuais,
pelo marketing neurológico das partículas,
por esse “chip” instalado no teu cérebro,
processando uma ordem dogmática: conecte, “navegue”, consuma...
Com que senha abrirás teu coração?
haverá um ícone para a solidariedade?
um link para a compaixão?
Qual a fronteira entre tu mesmo e a máquina?
quem são essas moléculas engenhosas?
esses átomos amestrados
a devassar teu íntimo recanto de criatura?

Como será nosso amanhã!?
Uma bússola sem norte?
um insulto à liberdade?
com que farol iluminaremos nosso rumo
acuados pela ousadia da violência
e sitiados pelo próprio livre-arbítrio?
Aqui e acolá as estreitas fronteiras do pânico...
esse semáforo que não abre...
esse alguém que te observa...
esse olhar engatilhado...
uma abordagem indigesta
e o cronômetro do pavor computando teu destino.
No roteiro dantesco da sobrevivência
reabres dia a dia tua agenda...,
é o teu cotidiano decomposto,
essa incerteza diária de chegar...
essas balas que assobiam no perímetro dos teus passos.

Como será nosso amanhã!?
Um mundo sem idioma?
um cântaro de fel?
Falo de um território dominado por estranhas hierarquias,
por facções tatuadas com os signos da maldade,
pelos mercenários do vício
enriquecidos pelos lucros homicidas.
Falo de uma legião de vítimas,
de uma síndrome cruel e invencível,
de criaturas e sonhos em farrapos.
Falo dos “juízes” da vida e da morte,
de sentenças e chacinas,
de um comando sinistro e impassível.
Falo da cidadania encurralada pelas milícias do ódio
e de um mercado inexorável do extermínio.

Como será o amanhã!?
um shopping de entretenimentos?
uma oficina de vaidades?
um imenso bazar de grifes e mesmices?
Quem sabe..., uma alameda “fashion”...
onde desfilam as esbeltas silhuetas da ilusão,
estampadas, dia a dia, nas páginas coloridas do glamour.
Ou, talvez, um teatro de incautos “marionetes”...
encenando a sensualidade e o acinte
na pública ribalta do hedonismo!

Como será o amanhã?
Um santuário virtual do “encanto”?
uma cidadela da luxúria?
Falo da explícita pedagogia do erotismo,
seus ícones, seus balcões,
suas vitrines pontocom.
De suas telas insinuantes,
seu varejo literário,
e sua indigesta ditadura musical.
Falo da sodomia on-line,
de devassadas alcovas eletrônicas
e desse promíscuo ritual de fantasias.

E pergunto, perplexo, pela pátria do amanhã...
e falo das paisagens sedutoras do poder,
desse cheiro putrefato que chega do planalto.
Falo de uma oficial voracidade...
dessa doméstica fauna de homens públicos,
...essa nossa biodiversidade insustentável.
Falo da ascensão vertiginosa da esperteza,
dessa inumerável galeria de “celebridades”,
trajadas com as fisiológicas legendas do poder.
Falo do escândalo nosso de cada dia,
da nação envergonhada por quadrilhas palacianas,
por dossiês sonegados e pelos crimes arquivados.
Falo dessa insultante presunção de inocência,
dessa triste balada da alma humana,
dançando pela culpa absolvida
e gargalhando com escárnio da justiça.

O que sobrará enfim desse perene banquete...!?
para onde caminha essa infantil humanidade...
embriagada pelo licor das ilusões
e indiferente à dor dos desgraçados?
Quem sabe reste um naco qualquer de fraternidade
para ser digerido com um gole de esperança...
um “cardápio” para os filhos da miséria,
uma migalha perene...
para saciar essa fome que janta, na calçada, o nosso lixo remexido.

E eis porque falo de uma alarmante geografia de lágrimas,
de uma favela planetária
de uma legião mundial de parias.
Falo de criaturas açoitadas pela vida
de um mundo que “não dorme e que não come”
que “não lê e não escreve”...
Como saciar tanta sede de justiça?
como conter essa fome parindo seus herdeiros?
Manoel de Andrade, "Cantares"

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