quarta-feira, 14 de maio de 2025
Pepe Mujica - Para Pensar
*É hora de o crescimento econômico não ser o único parâmetro com que medimos a vida humana. É preciso começar a pensar em paradigmas que tenham a ver com a felicidade do homem.
*Eu não sou pobre, eu sou sóbrio, de bagagem leve. Vivo com apenas o suficiente para que as coisas não roubem minha liberdade.
*Ocupamos o templo com o deus mercado que nos financia em parcelas e cartões a aparência de felicidade. O deus mercado organiza a economia, a vida e financia a aparência de felicidade. Parece que nascemos só para consumir e consumir. E quando não podemos, carregamos frustração, pobreza e autoexclusão.
*Todos os seres vivos são feitos para lutar pela vida: desde uma erva daninha, um sapo e até nós. Chega-se à conclusão de que isso serve para dar sabor à vida, pois, como dizia o velho Aristóteles: tudo o que a natureza faz é bem feito.
*Arrasamos a selva, as selvas verdadeiras, e implantamos selvas anônimas de cimento. Enfrentamos o sedentarismo com esteiras, a insônia com comprimidos, a solidão com eletrônicos, porque somos felizes longe da convivência humana.
*Tem gente que adora o dinheiro, se envolve em política, se eles adoram tanto o dinheiro que se envolvam no comércio, na indústria, deixem eles fazerem o que quiserem, não é pecado, mas política é para servir ao povo. Não é que alguém possa ser altruísta; não existe ser vivo que seja altruísta. Existe uma certa quantidade dentro de nós que nos ordena que sejamos assim. A vida é um jogo de solidariedade e fraternidade. Os políticos de alto escalão estão interessados no afeto do povo, algo que se transmite, que não tem preço e que não se compra no supermercado.
Currículo de hostilidades
As classes governantes têm nas suas mãos as tropas, o dinheiro, a escola, a religião, a imprensa. Nas escolas atiçam nas crianças o patriotismo, com histórias que descrevem o seu povo como o melhor de todos os povos e sempre justo; atiçam nos adultos esse mesmo sentimento por meio de espetáculos, solenidades, monumentos, de uma imprensa patriótica mentirosa; acima de tudo, atiçam o patriotismo praticando toda a espécie de injustiças e brutalidades contra outros povos, despertam neles a hostilidade contra o seu próprio povo e usam depois essa hostilidade para excitar a hostilidade no seu próprio povo.
Lev Tolstoi, "Os Últimos Escritos"
Lev Tolstoi, "Os Últimos Escritos"
'Almas digitais' e os limites da IA
Uma irmã enlutada decidiu recriar, digitalmente, o seu irmão falecido e trazê-lo “de volta à vida” para falar no julgamento do homem acusado de tê-lo assassinado. Durante mais de dois anos, reuniu conteúdos em vídeos, fotografias e áudios. Com a ajuda da inteligência artificial (IA), criou um vídeo e projetou-o naquele que, sem dúvida, foi um dos dias mais difíceis da sua vida.
O que poderia ser apenas mais um episódio da série britânica Black Mirror aconteceu, na verdade, na semana passada, num tribunal dos Estados Unidos. Christopher Pelkey, veterano do Exército norte-americano, assassinado num episódio de fúria no trânsito em 2021, “falou” diretamente ao seu assassino durante a audiência de sentença, por meio de um vídeo gerado por IA.
A iniciativa foi da sua irmã, Stacey Wales, que, em busca de uma forma de expressar a perda, decidiu criar uma cópia digital do irmão. Com o apoio do marido e de um amigo, produziram um vídeo em que Pelkey, na sua versão artificial, expressa perdão ao assassino, Gabriel Horcasitas, e reflete sobre a tragédia que os uniu.
No vídeo, Pelkey diz: “Noutra vida, provavelmente poderíamos ter sido amigos. Acredito no perdão e em Deus que perdoa. Sempre acreditei, e continuo a acreditar.” A apresentação emocionou o juiz Todd Lang, que afirmou: “Adorei este vídeo gerado por IA. Obrigado por isso. Senti que foi genuíno.” Em consequência, o juiz sentenciou Horcasitas a 10 anos e meio de prisão por homicídio culposo, excedendo a recomendação da promotoria, que era de nove anos e meio.
A defesa, no entanto, manifestou preocupações quanto ao uso do vídeo, argumentando que a representação digital de Pelkey poderia ter influenciado indevidamente a decisão judicial. O advogado de Horcasitas afirmou não ter sido informado previamente sobre o vídeo e que este será um dos pontos abordados no recurso, segundo reportagens publicadas pela CNN e pela BBC.
Como pesquisadora, dediquei os últimos cinco anos a estudar a intersecção entre o luto, a morte e as tecnologias digitais. Na minha tese de doutorado, analisei os impactos e os riscos do uso de tecnologias emergentes para recriar a identidade de pessoas falecidas. Entrevistei pessoas em processo de luto e perguntei-lhes se aceitariam conversar com um ente querido já falecido por meio de IA. Surpreendentemente, os entrevistados responderam afirmativamente, mesmo que com alguma relutância inicial.
Segundo o filósofo italiano Luciano Floridi, professor na Universidade de Oxford, os dados digitais são como órgãos informativos, uma extensão do nosso corpo biológico. Ou seja, fotografias, vídeos, áudios e todos os dados que produzimos são parte da nossa existência e devem ser preservados mesmo após a morte. E não devem ser alterados, duplicados ou distribuídos sem o nosso consentimento. Para Floridi, infringir a privacidade informativa de uma pessoa é uma violação da sua dignidade humana. Tal como os vivos, também os mortos têm direito à propriedade e ao controle da sua “viagem ao mundo”.
Sob uma perspectiva filosófica, ninguém tem o direito de recriar a identidade digital de alguém que já morreu. Delegar a uma IA o poder de falar em nosso nome representa um risco grave de distorção da nossa narrativa de vida. Por mais fiel que seja a reprodução da voz, imagem, gestos ou palavras, nunca será realmente a pessoa. A existência online após a morte levanta questões antigas sobre a busca pela imortalidade, quando, através de avatares e mind uploads, é nos dada a possibilidade de ser imortais. No entanto, nenhuma tecnologia conseguirá (ainda) representar genuinamente a “alma e a essência”, ou que a sua crença vai determinar como norma.
Só quem perdeu alguém sabe o quão doloroso é lidar com a ausência de quem amamos. Ainda assim, o uso de tecnologias para recriar identidades digitais póstumas deve ser tratado com extrema cautela e requer reflexão profunda. A inovação tecnológica pode oferecer consolo, como a possibilidade de “falar” com um ente querido falecido, mas os seus impactos ainda estão a ser investigados pela ciência, desde a psicologia ao direito.
Vivemos em um cenário de incerteza. E mesmo gestos aparentemente inofensivos, como publicar imagens de um ente querido nas redes sociais, podem ir contra a vontade da própria pessoa, se ela estivesse viva. Talvez não gostasse daquela imagem, talvez nunca quisesse ser exposta. Qual é, afinal, o limite do direito das pessoas em luto ao gerirem os legados digitais de quem partiu?
Por outro lado, o caso de Christopher Pelkey levanta sérias questões éticas e legais quanto ao uso de tecnologias emergentes no sistema judicial. Especialistas alertam para o risco de manipulação emocional e desigualdades, sobretudo, se tais ferramentas estiverem acessíveis apenas a quem tem mais recursos.
E eu iria mais longe: será que o verdadeiro Pelkey perdoaria o seu assassino? O que ele sentiria? Ou aquele vídeo refletia apenas o desejo da sua família? Nunca saberemos.
Por mais mórbido ou desconfortável que seja falar sobre a morte nas culturas ocidentais, é cada vez mais importante que deixemos claro, junto dos nossos familiares e amigos, o que desejamos que seja feito com os nossos legados digitais depois da nossa partida. É uma conversa que nunca queremos ter, mas de todos os seres vivos, nós, seres humanos, são os únicos que sabem que vão morrer.
Ionara Silva
O que poderia ser apenas mais um episódio da série britânica Black Mirror aconteceu, na verdade, na semana passada, num tribunal dos Estados Unidos. Christopher Pelkey, veterano do Exército norte-americano, assassinado num episódio de fúria no trânsito em 2021, “falou” diretamente ao seu assassino durante a audiência de sentença, por meio de um vídeo gerado por IA.
A iniciativa foi da sua irmã, Stacey Wales, que, em busca de uma forma de expressar a perda, decidiu criar uma cópia digital do irmão. Com o apoio do marido e de um amigo, produziram um vídeo em que Pelkey, na sua versão artificial, expressa perdão ao assassino, Gabriel Horcasitas, e reflete sobre a tragédia que os uniu.
No vídeo, Pelkey diz: “Noutra vida, provavelmente poderíamos ter sido amigos. Acredito no perdão e em Deus que perdoa. Sempre acreditei, e continuo a acreditar.” A apresentação emocionou o juiz Todd Lang, que afirmou: “Adorei este vídeo gerado por IA. Obrigado por isso. Senti que foi genuíno.” Em consequência, o juiz sentenciou Horcasitas a 10 anos e meio de prisão por homicídio culposo, excedendo a recomendação da promotoria, que era de nove anos e meio.
A defesa, no entanto, manifestou preocupações quanto ao uso do vídeo, argumentando que a representação digital de Pelkey poderia ter influenciado indevidamente a decisão judicial. O advogado de Horcasitas afirmou não ter sido informado previamente sobre o vídeo e que este será um dos pontos abordados no recurso, segundo reportagens publicadas pela CNN e pela BBC.
Como pesquisadora, dediquei os últimos cinco anos a estudar a intersecção entre o luto, a morte e as tecnologias digitais. Na minha tese de doutorado, analisei os impactos e os riscos do uso de tecnologias emergentes para recriar a identidade de pessoas falecidas. Entrevistei pessoas em processo de luto e perguntei-lhes se aceitariam conversar com um ente querido já falecido por meio de IA. Surpreendentemente, os entrevistados responderam afirmativamente, mesmo que com alguma relutância inicial.
Segundo o filósofo italiano Luciano Floridi, professor na Universidade de Oxford, os dados digitais são como órgãos informativos, uma extensão do nosso corpo biológico. Ou seja, fotografias, vídeos, áudios e todos os dados que produzimos são parte da nossa existência e devem ser preservados mesmo após a morte. E não devem ser alterados, duplicados ou distribuídos sem o nosso consentimento. Para Floridi, infringir a privacidade informativa de uma pessoa é uma violação da sua dignidade humana. Tal como os vivos, também os mortos têm direito à propriedade e ao controle da sua “viagem ao mundo”.
Sob uma perspectiva filosófica, ninguém tem o direito de recriar a identidade digital de alguém que já morreu. Delegar a uma IA o poder de falar em nosso nome representa um risco grave de distorção da nossa narrativa de vida. Por mais fiel que seja a reprodução da voz, imagem, gestos ou palavras, nunca será realmente a pessoa. A existência online após a morte levanta questões antigas sobre a busca pela imortalidade, quando, através de avatares e mind uploads, é nos dada a possibilidade de ser imortais. No entanto, nenhuma tecnologia conseguirá (ainda) representar genuinamente a “alma e a essência”, ou que a sua crença vai determinar como norma.
Só quem perdeu alguém sabe o quão doloroso é lidar com a ausência de quem amamos. Ainda assim, o uso de tecnologias para recriar identidades digitais póstumas deve ser tratado com extrema cautela e requer reflexão profunda. A inovação tecnológica pode oferecer consolo, como a possibilidade de “falar” com um ente querido falecido, mas os seus impactos ainda estão a ser investigados pela ciência, desde a psicologia ao direito.
Vivemos em um cenário de incerteza. E mesmo gestos aparentemente inofensivos, como publicar imagens de um ente querido nas redes sociais, podem ir contra a vontade da própria pessoa, se ela estivesse viva. Talvez não gostasse daquela imagem, talvez nunca quisesse ser exposta. Qual é, afinal, o limite do direito das pessoas em luto ao gerirem os legados digitais de quem partiu?
Por outro lado, o caso de Christopher Pelkey levanta sérias questões éticas e legais quanto ao uso de tecnologias emergentes no sistema judicial. Especialistas alertam para o risco de manipulação emocional e desigualdades, sobretudo, se tais ferramentas estiverem acessíveis apenas a quem tem mais recursos.
E eu iria mais longe: será que o verdadeiro Pelkey perdoaria o seu assassino? O que ele sentiria? Ou aquele vídeo refletia apenas o desejo da sua família? Nunca saberemos.
Por mais mórbido ou desconfortável que seja falar sobre a morte nas culturas ocidentais, é cada vez mais importante que deixemos claro, junto dos nossos familiares e amigos, o que desejamos que seja feito com os nossos legados digitais depois da nossa partida. É uma conversa que nunca queremos ter, mas de todos os seres vivos, nós, seres humanos, são os únicos que sabem que vão morrer.
Ionara Silva
A aversão da extrema direita pela Universidade
A exemplo do que ocorreu com o nazismo e o fascismo, na década de 1930, e com o bolsonarismo e o trumpismo entre os anos de 2017/2018 e 2021/2022, as instituições acadêmicas continuam suscitando um desafio para governos autoritários e iliberais, como se vê no início do segundo mandato de Donald Trump, à frente do governo dos Estados Unidos.
Por um lado, Trump vê as universidades como ameaça aos valores tradicionais, motivo pelo qual seu governo só decidiu oferecer subsídios e financiar as atividades de ensino e pesquisa às universidades que se submetem à sua visão de mundo. Para se ter ideia do alcance dessa medida, em 2023 foram repassados pelo governo Biden a essas universidades US$ 60 bilhões para atividades de pesquisa e desenvolvimento – e, das 25 instituições que mais obtiveram recursos federais, 16 passaram a ser investigadas após o governo Trump tê-las acusado de desprezar os tais valores tradicionais.
Por outro lado, o governo Trump e a extrema direita que o apoia têm consciência de que precisam das inovações propiciadas pelas instituições acadêmicas para assegurar aquilo que ele persegue: o domínio absoluto nos campos da tecnologia, da economia e da força militar. No entanto, é possível conciliar as duas coisas? Se a resposta for afirmativa, como promover essa conciliação?
Esta discussão não é nova. A história moderna e contemporânea sempre evidenciou como as relações entre Estado e financiamento de universidades – especialmente no que se refere à formação de quadros técnicos e desenvolvimento da ciência e tecnologia de ponta – tendem a converter saber eficaz muitas vezes é sinônimo de poder econômico e político. Também mostrou como, num determinado momento, a extrema direita americana alargou o conceito de inimigo político interno, com o objetivo de incluir nele professores e intelectuais com pensamento crítico.
Os Estados Unidos, por exemplo, obtiveram a hegemonia econômica, política e militar em termos mundiais quando passaram a atrair as elites científicas europeias depois da primeira guerra mundial, entre 1914 e 1918. E, a partir do momento em que sucessivos governos americanos se tornaram um dos principais financiadores de pesquisa científica, inovação e desenvolvimento, eles impuseram a chamada pax americana a partir do final da segunda guerra mundial, ocorrida entre 1939 e 1945.
Agora, num período da história contemporânea em que os problemas sociais, econômicos e políticos mais importantes exigem a produção e o processamento de um alto grau de conhecimento científico inovador, o mundo assiste a ofensiva da extrema direita liderada por Trump contra a autoridade científica, à liberdade de expressão e à liberdade acadêmica, chegando até mesmo ao ponto de tentar intervir no Departamento de Estudos sobre Oriente Média da Harvard University e de tentar obrigá-la a reformular o processo seletivo de estudantes estrangeiros para impedir a matrícula de alunos hostis aos valores americanos.
Trata-se de uma iniciativa que retira isenções fiscais, subsídios e financiamentos às universidades americanas que se negam a ser submissas. E a justificativa – baseada em falsidades e mentiras – é que essas universidades não estariam combatendo o antissemitismo, seriam palco de um ativismo excessivamente progressista e enfatizariam a tríade diversidade, a equidade e a inclusão, pondo assim o ativismo à frente do conhecimento e, por consequência, deixando de formar “melhores cidadãos”.
Na realidade, o que se está vendo são dois fatos preocupantes – ambos ligados ao que a filósofa Hannah Arendt chamava de mentiras públicas. De um lado, destaca-se o risco de erosão da autoridade do establishment científico americano contemporâneo. De outro, a corrosão dos próprios os valores políticos americanos, baseados numa democracia multicultural.
Quando governantes mentirosos mascaram a verdade que desejam esconder paras se manter no poder, dizia Arendt, eles vão muito além do oportunismo e da má fé. Isto porque, quando têm sucesso, destroem tradições sociais, políticas e jurídicas, o que lhes abre caminho para transferir o poder democrático para a política, para o exército e para a massa alienada que os apoia.
Mentiras são mais clamantes à razão do que a realidade, pois os políticos mentirosos sabem, de antemão, o que a plateia ou o auditório quer ouvir. “A negação deliberada da verdade dos fatos – isto é, a capacidade de mentir – e a faculdade de mudar os fatos – a capacidade de agir – estão interligadas, devendo sua existência a uma mesma fonte. Trata-se da imaginação”, dizia Arendt. Publicado há quase seis décadas, seu ensaio sobre a mentira na política prima por uma preocupante atualidade. Um dos meios mais eficazes de deter o avanço da mentira e da manipulação da verdade quase sempre passa pela independência e pela autoridade dos espaços acadêmicos – concluía. Por isso, fica claro porque políticos como Trump e sua versão tupiniquim, Jair Bolsonaro, jamais hesitaram em investir contra o saber científico, contra as liberdades de expressão e de pesquisa, contra os processos vigentes de contratação de docentes e de seleção de estudantes e contra a autonomia universitária em didática e administrativa.
Para eles, o desprezo pela ciência e a compulsão pela mentira são as armas que têm para ascender ao poder e tentar nele se manter, independentemente do que dizem as constituições de seus países. São os meios que utilizam para reduzir a autonomia universitária e acabar com a auto-organização da ciência. São os instrumentos de que se valem ao destinar recursos financeiros apenas às instituições de ensino superior que substituem debates abertos – mas teórica e analiticamente bem fundamentados – pelo princípio do magister dixit e pelo culto ao líder.
Para aqueles de minha geração que entraram na universidade na segunda metade dos anos de 1960, nada do que vemos hoje nos Estados Unidos surpreende. Naquela época, a ditadura brasileira cassava, torturava e exilava professores e intervinha nos programas acadêmicos, vetando determinados autores. Para aqueles de minha geração que seguiram a carreira universitária, também não surpreendeu o lançamento, pelo Instituto General Villas Bôas, meses antes das eleições presidenciais de 2022, de um “projeto de nação” formulado por militares vinculados ao bolsonarismo, no qual pregavam a luta contra “a ideologização radical do ensino”, o combate “práticas comportamentais distorcidas que afetam as atividades de ensino superior, prejudicando a formação do cidadão” e mudanças no “processo de escolha de reitores das universidades públicas com o objetivo de restringir as influências de grupos de interesses políticos, ideológicos e outros que não voltados ao bem comum”.
A verdade é que não há muita diferença entre o que Trump vem fazendo nos Estados Unidos, comprometendo o desenvolvimento da ciência, da tecnologia e da inovação, e o que já ocorreu no Brasil por iniciativas decorrentes de golpes militares. É assim que a extrema-direita trata a universidade: como um locus em que os horizontes de vida e as ideias de alunos e professores são encarados pelo poder político dominante tão perigosos que não têm direito a salvaguardas constitucionais.
Se na década de 1930 nazistas e fascistas promoviam queimas públicas de livros como parte da sua política de perseguição a intelectuais e acadêmicos, na década de 2020 a extrema direita promove a asfixia financeira da universidade.
Por um lado, Trump vê as universidades como ameaça aos valores tradicionais, motivo pelo qual seu governo só decidiu oferecer subsídios e financiar as atividades de ensino e pesquisa às universidades que se submetem à sua visão de mundo. Para se ter ideia do alcance dessa medida, em 2023 foram repassados pelo governo Biden a essas universidades US$ 60 bilhões para atividades de pesquisa e desenvolvimento – e, das 25 instituições que mais obtiveram recursos federais, 16 passaram a ser investigadas após o governo Trump tê-las acusado de desprezar os tais valores tradicionais.
Por outro lado, o governo Trump e a extrema direita que o apoia têm consciência de que precisam das inovações propiciadas pelas instituições acadêmicas para assegurar aquilo que ele persegue: o domínio absoluto nos campos da tecnologia, da economia e da força militar. No entanto, é possível conciliar as duas coisas? Se a resposta for afirmativa, como promover essa conciliação?
Esta discussão não é nova. A história moderna e contemporânea sempre evidenciou como as relações entre Estado e financiamento de universidades – especialmente no que se refere à formação de quadros técnicos e desenvolvimento da ciência e tecnologia de ponta – tendem a converter saber eficaz muitas vezes é sinônimo de poder econômico e político. Também mostrou como, num determinado momento, a extrema direita americana alargou o conceito de inimigo político interno, com o objetivo de incluir nele professores e intelectuais com pensamento crítico.
Os Estados Unidos, por exemplo, obtiveram a hegemonia econômica, política e militar em termos mundiais quando passaram a atrair as elites científicas europeias depois da primeira guerra mundial, entre 1914 e 1918. E, a partir do momento em que sucessivos governos americanos se tornaram um dos principais financiadores de pesquisa científica, inovação e desenvolvimento, eles impuseram a chamada pax americana a partir do final da segunda guerra mundial, ocorrida entre 1939 e 1945.
Agora, num período da história contemporânea em que os problemas sociais, econômicos e políticos mais importantes exigem a produção e o processamento de um alto grau de conhecimento científico inovador, o mundo assiste a ofensiva da extrema direita liderada por Trump contra a autoridade científica, à liberdade de expressão e à liberdade acadêmica, chegando até mesmo ao ponto de tentar intervir no Departamento de Estudos sobre Oriente Média da Harvard University e de tentar obrigá-la a reformular o processo seletivo de estudantes estrangeiros para impedir a matrícula de alunos hostis aos valores americanos.
Trata-se de uma iniciativa que retira isenções fiscais, subsídios e financiamentos às universidades americanas que se negam a ser submissas. E a justificativa – baseada em falsidades e mentiras – é que essas universidades não estariam combatendo o antissemitismo, seriam palco de um ativismo excessivamente progressista e enfatizariam a tríade diversidade, a equidade e a inclusão, pondo assim o ativismo à frente do conhecimento e, por consequência, deixando de formar “melhores cidadãos”.
Na realidade, o que se está vendo são dois fatos preocupantes – ambos ligados ao que a filósofa Hannah Arendt chamava de mentiras públicas. De um lado, destaca-se o risco de erosão da autoridade do establishment científico americano contemporâneo. De outro, a corrosão dos próprios os valores políticos americanos, baseados numa democracia multicultural.
Quando governantes mentirosos mascaram a verdade que desejam esconder paras se manter no poder, dizia Arendt, eles vão muito além do oportunismo e da má fé. Isto porque, quando têm sucesso, destroem tradições sociais, políticas e jurídicas, o que lhes abre caminho para transferir o poder democrático para a política, para o exército e para a massa alienada que os apoia.
Mentiras são mais clamantes à razão do que a realidade, pois os políticos mentirosos sabem, de antemão, o que a plateia ou o auditório quer ouvir. “A negação deliberada da verdade dos fatos – isto é, a capacidade de mentir – e a faculdade de mudar os fatos – a capacidade de agir – estão interligadas, devendo sua existência a uma mesma fonte. Trata-se da imaginação”, dizia Arendt. Publicado há quase seis décadas, seu ensaio sobre a mentira na política prima por uma preocupante atualidade. Um dos meios mais eficazes de deter o avanço da mentira e da manipulação da verdade quase sempre passa pela independência e pela autoridade dos espaços acadêmicos – concluía. Por isso, fica claro porque políticos como Trump e sua versão tupiniquim, Jair Bolsonaro, jamais hesitaram em investir contra o saber científico, contra as liberdades de expressão e de pesquisa, contra os processos vigentes de contratação de docentes e de seleção de estudantes e contra a autonomia universitária em didática e administrativa.
Para eles, o desprezo pela ciência e a compulsão pela mentira são as armas que têm para ascender ao poder e tentar nele se manter, independentemente do que dizem as constituições de seus países. São os meios que utilizam para reduzir a autonomia universitária e acabar com a auto-organização da ciência. São os instrumentos de que se valem ao destinar recursos financeiros apenas às instituições de ensino superior que substituem debates abertos – mas teórica e analiticamente bem fundamentados – pelo princípio do magister dixit e pelo culto ao líder.
Para aqueles de minha geração que entraram na universidade na segunda metade dos anos de 1960, nada do que vemos hoje nos Estados Unidos surpreende. Naquela época, a ditadura brasileira cassava, torturava e exilava professores e intervinha nos programas acadêmicos, vetando determinados autores. Para aqueles de minha geração que seguiram a carreira universitária, também não surpreendeu o lançamento, pelo Instituto General Villas Bôas, meses antes das eleições presidenciais de 2022, de um “projeto de nação” formulado por militares vinculados ao bolsonarismo, no qual pregavam a luta contra “a ideologização radical do ensino”, o combate “práticas comportamentais distorcidas que afetam as atividades de ensino superior, prejudicando a formação do cidadão” e mudanças no “processo de escolha de reitores das universidades públicas com o objetivo de restringir as influências de grupos de interesses políticos, ideológicos e outros que não voltados ao bem comum”.
A verdade é que não há muita diferença entre o que Trump vem fazendo nos Estados Unidos, comprometendo o desenvolvimento da ciência, da tecnologia e da inovação, e o que já ocorreu no Brasil por iniciativas decorrentes de golpes militares. É assim que a extrema-direita trata a universidade: como um locus em que os horizontes de vida e as ideias de alunos e professores são encarados pelo poder político dominante tão perigosos que não têm direito a salvaguardas constitucionais.
Se na década de 1930 nazistas e fascistas promoviam queimas públicas de livros como parte da sua política de perseguição a intelectuais e acadêmicos, na década de 2020 a extrema direita promove a asfixia financeira da universidade.
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