quarta-feira, 22 de abril de 2020

Recessão aumentou mortes em cidades onde gasto com assistência e saúde foi menor

Na última recessão pela qual passou, o Brasil registrou aumento no número de mortes em municípios onde houve menos gasto com assistência social e atenção à saúde. O desemprego mais alto foi responsável por mais de 30 mil mortes adicionais entre 2012 e 2017.

Essa é a constatação de um artigo elaborado por sete pesquisadores, entre brasileiros e estrangeiros, publicado no fim do ano passado na revista Lancet Global Health.

Para surpresa dos autores, o texto começou a ser compartilhado por pessoas que defendem o fim da quarentena, como argumento de que o isolamento social poderia prejudicar a economia e portanto levar a mais mortes.

Os pesquisadores correram para dizer que as conclusões do artigo estavam sendo distorcidas e argumentaram que a discussão sobre salvar vidas ou a economia é um falso dilema.

Um dos responsáveis pelo estudo, o epidemiologista Rômulo Paes de Sousa, pesquisador da Fiocruz, disse à BBC News Brasil que "as pessoas querem fazer contraposições que não são reais, como: morrer infectado ou morrer como consequência do desemprego". Ele diz que, na verdade, as mortes dependem da resposta do governo para conter a epidemia e os efeitos dela.


"O Brasil ficou infantilizado do ponto de vista político. Discutimos coisas que não fazem sentido. Uma delas é: 'preciso que a gente saia logo do isolamento porque aí a economia vai voltar e vamos prevenir mortes no futuro em função da recessão'. Isso não faz o menor sentido. Se você sai de forma desorganizada, descontrolada, as pessoas vão se contaminar e vão começar a morrer."

Em países ricos, recessões passadas trouxeram redução da mortalidade, que pode ser explicada por redução em acidentes de trânsito, doenças hepáticas e doenças cardiovasculares nesses períodos.

Uma possível explicação para essas reduções é que o declínio da produtividade durante as recessões resulta em menor participação em atividades prejudiciais, como direção e consumo de álcool, redução do horário de trabalho e aumento do tempo gasto em atividades saudáveis.

Em países de baixa e média renda, no entanto, as tendências são diferentes.

A partir de dados do Ministério da Saúde, do Ministério de Desenvolvimento Social, do IBGE e do Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (Siops), de 2012 a 2017, os pesquisadores decidiram verificar a relação entre recessão, desemprego e mortalidade nos municípios brasileiros.

O resultado verificado foi que a recessão brasileira contribuiu para aumentos da mortalidade, mas que gastos com saúde e proteção social mitigaram os efeitos prejudiciais à saúde, especialmente entre populações vulneráveis.

Eles identificaram que os aumentos no desemprego não foram associados a aumentos na mortalidade em municípios com maiores gastos com assistência médica e proteção social.

"Nossas descobertas destacam a importância de sistemas de proteção social apropriados nacionalmente para proteger populações em risco dos impactos adversos à saúde das recessões econômicas nos países de média e baixa renda", apontam os autores.

A mortalidade por todas as causas aumentou entre brasileiros pretos e pardos, homens, e indivíduos de 30 a 59 anos de idade.

Isso tem a ver, segundo os autores, com evidências anteriores de que os brasileiros negros e pardos têm maior probabilidade de ter um emprego informal do que os brasileiros brancos, têm renda mais baixa do que os brasileiros brancos empregados no mesmo cargo, e que têm mais chances de estar na pobreza, dependendo de investimento público em saúde e programas de proteção social.

O estudo aponta que renda mais baixa, maior risco de problemas de saúde relacionados à pobreza e aumento do estresse psicossocial estão entre os fatores que podem ter contribuído para o aumento da mortalidade durante a recessão.

As mais de 30 mil mortes adicionais que ocorreram devido ao aumento do desemprego de 2012 a 2017, segundo os pesquisadores, foram principalmente devido a câncer e doenças cardiovasculares.

Devido ao artigo, Paes de Sousa diz que muitas pessoas têm perguntado a ele qual será a quantidade de mortes devido à nova recessão que o país deve viver como consequência da pandemia. Ele pondera, no entanto, que o contexto é diferente e que é necessário, primeiro, focar em questões como: saber a quantidade de mortes devido à covid-19, se os sistemas de saúde entrarão em colapso, e as políticas para reduzir os efeitos da crise.

"A recessão não acontece de forma exclusiva", afirmou, ao comentar o cenário atual.

Paes de Sousa diz que foi positivo o aumento de R$ 200 para R$ 600 no auxílio emergencial para trabalhadores informais, microempreendedores individuais, autônomos e desempregados, com objetivo fornecer proteção emergencial no período de enfrentamento à crise causada pela pandemia do coronavírus.

Ele diz, no entanto, que acredita que o valor pode ser insuficiente para manter os trabalhadores em casa sem trabalhar, porque está abaixo da renda média de cerca de R$ 1.400 dos trabalhadores sem carteira assinada, segundo dados do IBGE.

"Quando fazemos transferência de recursos, queremos mudar a atitude das pessoas. Qual é o objetivo dessa transferência neste momento? Que as pessoas reduzam sua atividade laboral, sobretudo nas grandes cidades, onde circulação do vírus tende a ser maior. Se o valor não permitir que possam pagar as contas, elas podem receber benefício e ele não ser eficaz na obtenção desse propósito."

O pesquisador disse, ainda, que o país hoje falha em políticas de combate à fome. "O Brasil já teve políticas de segurança alimentar muito mais fortes e isso faz com que, hoje, a entrega de cestas básicas, por exemplo, ocorra de forma desorganizada", diz.

Ele aponta que há "iniciativas generosas de parcelas da sociedade", mas que "algumas áreas são mais próximas dos centros de distribuição e são razoavelmente atendidas, enquanto lugares mais remotos e de maior conflito social ficam descobertos".

A responsabilidade pela distribuição, ele diz, é do Estado. "Perdemos capacidade de fazer política pública de segurança alimentar e voltamos para ação de caridade."

Só Freud explica

A política brasileira está confinada pela tragédia da pandemia e já não é possível desdenhar da realidade macabra. Portanto, não é política o que pratica o presidente Jair Bolsonaro no segundo ano do seu mandato. Por mais que deboche da vida e invente movimentos para esconder sua incapacidade de liderar e enfrentar os problemas, o placar das mortes e de contaminados não permite distrações.

Espera-se sempre pela próxima atração presidencial que só não é circense porque o circo se dá ao respeito. Uma performance vai superando a outra. Já se sabe que recuará se o seu teatro do absurdo extrapolar a medida. No dia seguinte, nova insanidade. E assim se passaram 16 meses.

De novo: não é política isto que se pratica, hoje, no Brasil, a partir do desempenho do presidente da República.


A negação da existência da pandemia que acha estar enxotando com seu megafone; a insistente, insolente e impune agressão aos poderes Legislativo e Judiciário; a tentativa de aliciar o Centrão na figura-símbolo de Valdemar Costa Neto, para uma pouco convincente vontade tardia de fazer base parlamentar de apoio; o recurso à velha política, condenada no palanque, se lhe serve melhor na ocasião; a escolha, a cada dia, de um inimigo forjado por temores paranoicos; o corte radical das cabeças que lhe devem o contrato, como os ministros Gustavo Bebianno, Santos Cruz, Luiz Henrique Mandetta, e a campanha permanente e irritada contra quem não pode domar, como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia; a retórica autoritária; o desrespeito à condição humana, mais perfeita expressão de fascismo.

Jair Bolsonaro transcendeu a política e a crônica não pode usá-la como régua para medir a extensão do atual desastre imposto ao País.

Um presidente que funciona aos espasmos. Se o espelho lhe aponta um ministro mais popular que ele, acende o alerta vermelho da traição; se a imagem refletida é de alguém em posição constitucional de interromper sua festa, muda sem pejo a rota da cruzada.

Fura o consenso do combate à pandemia, sai trôpego e de olhos vendados na contramão do mundo todo que se harmoniza para salvar a vida. Jair Bolsonaro é tão artificial que nem quando pede golpe militar dá para crer. A manifestação do último domingo, em frente ao QG do Exército, foi a mais recente provocação de um ex-capitão aos generais da ativa e da reserva que o servem. Um prazer vingativo de demonstrar poder sobre eles.

Se passar a pandemia e Bolsonaro se mantiver vivo e no poder, o Brasil que se prepare para uma página em branco. Um grande vazio, pois ele mostra, hoje, que não faz ideia do que fará, depois. O liberalismo econômico, sustentado em reformas estruturantes, vedete de suas intenções, desmanchou-se no ar em 40 dias.

Muitos intelectuais estão expondo sua perplexidade em estudos que tentam traduzir o impacto da pandemia sobre a humanidade. O ex-deputado, professor e sociólogo Paulo Delgado, em um ensaio por enquanto definido como “psicohistória presidencial”, sobre os nove presidentes que conheceu, desde Tancredo Neves, não foge à conjuntura político-sanitária ao tratar de Jair Bolsonaro.

“Vasculhar o inconsciente ajuda a entender por que ele se identifica tanto com este vírus, a ponto de ter necessidade sádica de ridicularizá-lo, insultá-lo, desafiá-lo.”

Invocando Freud, Delgado lembra que o presidente “coloca libido” nestas manifestações públicas de que participa, provocando “aglomeração, contato, contágio”. Diz, ao argumentar sobre esta hipótese: é “um comportamento psicossocial repetitivo, estimulado pelo prazer contínuo de transgredir”.

Um irônico enquadramento da ação presidencial no ambiente psicanalítico, que “só Freud explica”. Enfatiza a hiperexcitação do presidente brasileiro que poderá, conclui ele, conduzir o País a uma “derrota” de Pirro, uma espécie de fracasso altamente dispendioso. Bem além da competência da política.

Meia-volta, morrer

Trocar o ministro da Saúde durante a pandemia do novo coronavírus foi uma manobra arriscada. Abalou o precário equilíbrio entre a Ciência, as evidências sobre a magnitude e gravidade da doença e os adeptos da fé, em si próprios, em seus gestos e palavras, como indicadores de verdade. O recém-empossado titular da pasta — dedicado a estudar a futura saída da quarentena e omisso em relação ao presente aumento exponencial da ocorrência de casos — é funcional aos desejos de passar por cima das advertências sanitárias. Na última domingueira presidencial, desta vez acompanhada por carreatas em diversos estados, ouviu-se um brado de independência — “Nós não queremos negociar nada, queremos ação” — e manifestações contra o Congresso Nacional e o Poder Judiciário. Trata-se de uma emancipação política de araque, já que as conversas entre o núcleo de poder da presidência com parlamentares do Centrão seguem a pleno vapor.

Achatar o significado da palavra liberdade estimula mais gente nas ruas, comércio aberto e torna irrelevante o aumento do número de mortes, que dobra a cada dois dias. A autoridade máxima do país e ministros deram as costas para profissionais de saúde que se desdobram para atender a população.

Quem está na linha de frente da assistência diz nunca ter visto nada igual. A Covid-19 é uma infecção que mata silenciosamente. Pacientes sem queixas respiratórias, que não sentem faltar de ar, diabéticos, pessoas que desmaiaram sem motivo aparente, quando examinados já desenvolveram pneumonia difusa. Os esforços para salvar vidas têm sido orientados pela necessidade de diagnosticar — de preferência na fase inicial da doença e do suporte—, manter ventilação e condições favoráveis à respiração. Serviços básicos de saúde não podem mandar de volta para casa pessoas sem a verificação do nível de oxigênio e precisam acompanhar a evolução de quadros clínicos leves. O atendimento em hospitais e unidades de terapia intensiva requer médicos, enfermeiros, fisioterapeutas e outros especialistas, equipes completas. Manter doentes com ventilação mecânica implica, além do tubo na traqueia, o uso de sedativos, acessos intravenosos e arteriais, sondas gástricas e vesicais. Para melhorar a função pulmonar, é necessário contar com cinco ou seis profissionais para virar pacientes ligados a respiradores e bombas de infusão de medicamentos. De barriga para baixo e para cima, duas vezes por dia.

A vantagem do tempo, quatro meses após os primeiros registros da epidemia, foi gasta indevidamente com a polarização gripezinha versus alta letalidade. Continuamos com insuficiência de leitos, testes, respiradores, equipamentos de proteção individual e profissionais de saúde. Promessas de elevados investimentos no SUS ainda estão no papel, houve remanejamento do Orçamento e, por enquanto, o Ministério da Saúde empenhou para despesas relativas à Covid-19 apenas R$ 8 bilhões.

Os termos colapso do sistema e seu antônimo, existência de leitos vagos — antes bastante abstratos em função das imprecisões das informações sobre capacidade instalada —, perderam sentido. Unidades básicas de saúde e UPAS estão às voltas com inúmeros atendimentos de sintomáticos respiratórios e dificuldades para transferir pacientes graves. Manaus e Fortaleza não são exceções, unidades de terapia intensiva da rede pública de São Paulo e do Rio estão lotadas. Essa dura realidade sensibiliza a maioria da população, cientistas, quem trabalha na saúde, governadores e prefeitos, aqueles que não admitem escolher quem irá viver, que se indignam com a exposição de critérios para justificar genocídios.

Como decidir pela morte de alguém? Um idoso e ativo cientista que está pesquisando a vacina para o coronavírus deve se sacrificar pelos netos, a seleção deve recair sobre uma mãe cujos filhos ficarão órfãos? Sobre médicos? No Brasil, esses tradicionais questionamentos éticos, sem as devidas mediações científicas e democráticas, costumam ser respondidos com o uso indiscriminado da crueldade. Negros, os indígenas e os pobres foram imolados em nome da pátria e agora convocados para a morte para salvar a economia do pibinho. Existem sugestões alternativas. As redes sociais estão repletas de parâmetros para excluir do atendimento os arautos das aglomerações humanas que necessitarem de cuidados. Outra possibilidade é exigir a assinatura de um termo de responsabilidade pela ressurreição. Caso não ocorram milagres, os defensores da quebra do isolamento social e da subordinação das vidas à economia renunciam aos cargos.
Ligia Bahia

Brasil com nova cara

Novas covas em Manaus

O jogador

O pior dos mundos nesta pandemia de coronavírus no Brasil seria uma crise institucional, num momento em que as instituições políticas precisam convergir para combater a doença e mitigar os seus efeitos na economia. Em circunstâncias normais, o maior interessado nesse esforço coordenado seria, sem dúvida, o presidente da República, mas acontece que Jair Bolsonaro faz tudo ao contrário. Como no domingo, quando foi ao ato de extrema-direita em frente ao quartel-general do Exército para apoiar manifestantes que pediam o fechamento do Congresso, do Supremo Tribunal Federal (STF) e uma intervenção militar.


É difícil compreender seu comportamento, que foge à racionalidade, num momento tão dramático da vida nacional. O gesto de domingo, como não poderia deixar de ser, aprofundou o isolamento político de Bolsonaro. Foi repudiado pelos ministros do Supremo, pelos líderes da Câmara e do Senado, por instituições da sociedade civil e provocou um pedido do procurador-geral da República, Augusto Aras, para que o STF apure as responsabilidades pela organização do ato, que atenta contra a democracia, nos termos da Lei de Segurança Nacional. Bolsonaro foi poupado pelo Ministério Público Federal, mas o presidente do Cidadania, Roberto Freire, e o líder do partido na Câmara, deputado Arnaldo Jardim (SP), se encarregaram de requerer à PGR que investigue também os que participaram do ato.

Ontem, ao sair do Palácio da Alvorada, Bolsonaro minimizou os acontecimentos de domingo. Disse que em nenhum momento endossou os pedidos de fechamento dos demais poderes e de intervenção militar. Ironizou: “O pessoal geralmente conspira para chegar ao poder. Eu já estou no poder. Eu já sou presidente da República (…). Eu estou conspirando contra quem, meu Deus do céu? Falta um pouco de inteligência para aqueles que me acusam de ser ditatorial. O que eu tomei de providência contra a imprensa? Contra a liberdade de expressão?”

Mas Bolsonaro revelou preocupação com o que aconteceu, quando nada porque sabe que seu gesto pode ser interpretado como crime de responsabilidade, sobretudo se houver ligações efetivas entre os organizadores do ato e o chamado “gabinete do ódio”, o grupo ideológico que o assessora na Presidência. “Em todo e qualquer movimento tem infiltrado, tem gente que tem a sua liberdade de expressão. Respeite a liberdade de expressão. Pegue o meu discurso, dá dois minutos, não falei nada contra qualquer outro poder, muito pelo contrário. Queremos voltar ao trabalho, o povo quer isso. Estavam lá saudando o Exército brasileiro. É isso, mais nada. Fora isso, é invencionice, é tentativa de incendiar uma nação que ainda está dentro da normalidade”, disse Bolsonaro, em defesa prévia.

Bolsonaro estimula uma militância fanatizada, que defende claramente um golpe de Estado. Militarizou seu governo a tal ponto que hoje existem mais generais na Esplanada do que em todos os governos do regime militar. Toda vez que tem um problema e não consegue resolver, apela aos ex-colegas de farda. Seu problema não é chegar ao poder, é a ambição de ter poderes absolutos, pois não consegue administrar a institucionalidade da própria Presidência, em situações emblemáticas, como a de domingo, desrespeitando a liturgia do cargo que ocupa. Não digere o sistema de pesos e contrapesos que normatiza as relações com o Congresso e o STF. No fundo, como um Luís XIV, tem uma visão absolutista da Presidência: “Eu sou realmente a Constituição”.

Enquanto isso, a epidemia avança. No balanço do Ministério da Saúde divulgado ontem, já são 2.575 mortes (no domingo, eram 2.462, aumento de 5,6%, ou seja, 113 óbitos a mais), num universo de grande subnotificação: apenas 40.581 confirmados (no domingo, eram 38.654, aumento de 5%, sendo a taxa de letalidade de 6,3% de letalidade). São Paulo tem 1.037 mortes e 14.580 casos confirmados. Bolsonaro minimiza a progressão da epidemia, diz que 70% da população será contaminada e “não adianta querer correr disso”. Lida com a morte como aquele general que manda seus soldados resistir apenas para ganhar tempo para a própria retirada, sabendo que o front está perdido e eles voltarão para casa dentro de um saco plástico: “Aproximadamente 70% da população vai ser infectada. Não adianta querer correr disso. É uma verdade. Estão com medo da verdade?”, afirmou.

Bolsonaro dobra a aposta de altíssimo risco: “Espero que esta seja a última semana desta quarentena, desta maneira de combater o vírus, todo mundo em casa. A massa não tem como ficar em casa, porque a geladeira está vazia”, disse. Assim, estimula a população a desrespeitar a quarentena, culpando governadores e prefeitos pela retração econômica e pelo desemprego, embora a situação esteja se agravando no sistema público de saúde, como em Manaus e Fortaleza, à beira do colapso. Seu novo ministro da Saúde, Nelson Teich, foi eclipsado. Não pode abrir a boca pra falar sobre o aconteceu no domingo. Não pode criticar Bolsonaro nem endossar suas ideias equivocadas.

O preço da pusilanimidade

O presidente Jair Bolsonaro assumiu de vez que é candidato a caudilho. Em comício para seus simpatizantes, de caráter escandalosamente golpista, anunciou: “Nós não queremos negociar nada. Queremos é ação pelo Brasil. Chega da velha política. Acabou a época da patifaria. Agora é o povo no poder. Lutem com o seu presidente”.

Não é possível dizer que Bolsonaro desta vez passou dos limites, pois, a rigor, ele já os havia ultrapassado quando, ainda militar, se insubordinou ou então, quando deputado, violentou o decoro parlamentar seguidas vezes. No primeiro caso, recebeu uma punição branda; no segundo, nem isso. Ou seja, a pusilanimidade das instituições ao lidar com Bolsonaro deu-lhe a segurança de que, para ele, não há limites, salvo os ditados por seu projeto autoritário de poder.


É reconfortante, no entanto, observar que, desta vez, integrantes de todas as instituições da República se manifestaram com firmeza contra mais essa afronta de Bolsonaro e de seus seguidores à democracia. Até mesmo o procurador-geral da República, Augusto Aras, que vinha se omitindo ante a escalada bolsonarista, anunciou a abertura de um inquérito para investigar “fatos em tese delituosos envolvendo a organização de atos contra o regime da democracia representativa brasileira”. O presidente não está entre os investigados, porque não há indícios de que tenha ajudado a organizar o comício, mas o simples fato de o procurador Aras ter qualificado como atentatório à democracia um ato que teve como sua estrela o presidente da República deveria ser suficiente para embaraçar Bolsonaro.

Mas será difícil constranger o presidente, cuja desconsideração pela opinião alheia, salvo quando é a dos filhos ou dos bajuladores que o cercam, é notória. Diante da repercussão negativa de seu discurso autoritário, o presidente, como sempre, tratou de minimizar o fato, insultando a inteligência de todos. No dia seguinte à afronta, Bolsonaro negou que tivesse atacado os demais Poderes e disse que, “no que depender do presidente Jair Bolsonaro, democracia e liberdade acima de tudo”.

Felizmente, nem a democracia nem a liberdade dependem de Jair Bolsonaro. Dependem, exclusivamente, do cumprimento da Constituição. Num arroubo à Luís XIV, Bolsonaro chegou a dizer: “Eu sou realmente a Constituição”. Não é. A Constituição é a materialização do pacto democrático, aquele ao qual todos se submetem, do mais humilde cidadão ao presidente da República.

Mas Bolsonaro, como sempre fez em sua trajetória política, está testando a disposição da sociedade de defender a ordem democrática por ele sistematicamente ameaçada. Pode-se quedar inerte diante das bravatas bolsonaristas, permitindo que se instaure um clima golpista, mas também se pode riscar uma linha no chão e dizer que, deste ponto em diante, é o terreno do intolerável.

Por isso, espera-se que o até agora silente ministro da Justiça, Sérgio Moro, faça jus à sua fama de inflexível cruzado da moralidade e da lei no exercício do serviço público e manifeste pelo menos desconforto diante do comportamento acintosamente impróprio de Bolsonaro na chefia da Nação. O mesmo se espera dos tantos ministros do presidente, militares reformados e da ativa, tidos como bedéis do governo, responsáveis por conter os muitos excessos de Bolsonaro. Até agora, contudo, predomina o silêncio - tão mais embaraçoso quando se recorda que o ato golpista protagonizado pelo presidente Bolsonaro, que é o comandante em chefe das Forças Armadas, ocorreu no Dia do Exército e diante do QG do Exército.

Consta que a afronta bolsonarista gerou mal-estar nas Forças Armadas, que não querem se ver vinculadas a movimentos que pedem a volta da ditadura militar e de medidas de exceção, como o famigerado AI-5, em franco desafio à Constituição. Para os generais, a guerra a ser vencida hoje não é contra os inimigos que Bolsonaro inventa todos os dias, mas contra o coronavírus.

Mas a guerra de Bolsonaro, já está claro, é contra as instituições da República e contra a maioria absoluta dos brasileiros, afrontados por um presidente que só se importa com o poder. Quem estiver na trincheira com Bolsonaro, seja no governo, seja em movimentos golpistas, vai se desmoralizar junto com ele.

Achatar as desigualdades

(...) Da parte de quem sempre defendeu políticas neoliberais, não vale a pena contar com um momento de iluminação socialista. Para salvarem a própria pele, políticos, comentadores e meios de comunicação que sempre defenderam a corrosão do Estado em benefício de interesses privados precisam, momentaneamente, da nossa disciplina sanitária. A COVID-19 não se detém às portas das suas vivendas. Nem às portas de hospitais privados que vivem das transferências do público ou de empresas que esmagam salários para arrecadar lucros. 


Mas a seguir aproveitarão a nossa aceitação da perda de instrumentos de trabalho e de acção colectiva – como o direito à greve. Basta olhar para o que tem escrito o director do jornal Observador para ver que os neoliberais não mudaram uma linha ao seu pensamento: mesmo pedindo subsídios ao Estado, querem manter o direito de despedir. Os únicos aliados em que vale a pena confiar são aqueles que, achatada a curva da contaminação, continuarão a trabalhar para achatar a curva das desigualdades. E isso só se faz lutando por justiça social, por políticas de emprego e de rendimentos robustas, por um SNS forte e por um ecossistema sustentável. Achatar as desigualdades
Sandra Monteiro

Quarentenando

Armando descobriu que sua maquina de lavar roupa tem cinco níveis de água. Enroscou-se. Pra que serve o menor nível d’água?

Pra lavar meias, arrisquei. Minha santa máquina, mais modesta, só oferece três níveis d’água. Um problema a menos na minha vida.

A lavadora superprogramável da Mirian rebelou-se. Só lava. Não enxágua, não enxuga. Parece, anda sentindo falta de sua costumeira operadora. A auxiliar doméstica de Mirian, no momento, em ausência compulsória.

Silvio conta que a quarentena pegou a família no meio de uma reforma – da cozinha. Sem saída (literalmente), ele e a mulher seguem quarentenando sem cozinha.

Joana, limpando armários, encontrou um precioso e perdido vidro de doce de leite uruguaio. Foi a alegria de sua sexta semana de prisão domiciliar.


Meu amigo Toni lamentou: Imagina se a gente depois de, lá pra trás, se acabar em sexo sem camisinha, morrer agora por um singelo aperto de mão.

Leila foi despertada na madrugada por Cris que, em crise de pânico, pedia socorro. Foram três segundos de susto. Não pela crise que poderia ser socorrida com uma ligação ao SAMU, mas pelo ressurgimento do Cris, ex tudo - amor, marido, amigo -, com quem não falava há anos.

Meio engasgada, fez a recomendação básica: respire! Era o que podia fazer. Ela vive em São Paulo, ele em Barcelona. Ele emendou algum respiro com uma declaração de amor.

Ela nem pode dizer que era tardia e despropositada. Fingiu que não entendeu e continuou recomendando: respire, respire, respire. Retomando o bom humor – e o ar -, Cris despediu-se: Infelizmente, esse seu respirador não me alcança. Riram. Foi refeito o contato.

Meu cachorro manifestou-se de direita. Faz de tudo pra quebrar a quarentena e chora quando ouve bateção de panela e gritos de Forabolsonaro! Felizmente os dois gatos, indicam, são de esquerda. Completamente solidários e atentos aos panelaços, focadíssimos no forabozo. Temos gastado madrugadas debatendo essas domésticas diferenças político-ideológicas.

Histórias – pequenas na causa e no tamanho - da confortável quarentenice da colegagem de classe média, onde, além do medo com o inusitado de tudo, pesam a impossibilidade de ir e vir, a trabalheira no constante e frenético limpar muito tudo – casa, compras, gavetas, cabeça, tronco e mãos. Não falta dinheiro, não falta conforto, não faltam família e amigos - ainda que só em lives.


Quem me relembrou disso tudo foi minha amiga Dora, quando me salvou de uma derrapada no baixo astral. “Sufoco de verdade a gente sabe bem onde está.”

Cada um de nós sabe bem onde está e qual é esse onde. Está na nossa rua, na esquina e segue periferias afora, nas grandes e pequenas cidades, no campo. São os brasileiros mais desiguais do que a desigualdade. Os sem quase tudo, os do dinheiro suado que passa ligeiro da mão pra boca. Os do sufoco diário de levar comida pra casa com um ou dois cômodos e muitas bocas.

São milhares. Sempre os mais ameaçados, desconsiderados. Na pandemia, seguem sendo. São números mal contados pela economia oficial, descartáveis pela saúde oficial. De ofício, ameaçados pela doença, pela desassistência, pela fome.

A propósito, meu neto Caio, de 16 anos, o down mais incrível do planeta, nas conversas quarentenárias sobre sufocos e desigualdades, declarou-se: Sou muito comunista!

Comunista? Jura?

Completamente.

Decameron, o humano obrigatório

“E a peste ganhou maior força porque dos doentes passava aos sãos que com eles conviviam, de modo nada diferente do que faz o fogo com as coisas secas ou engorduradas que lhe estejam muito próximas. E mais ainda avançou o mal: pois não só falar e conviver com os doentes causava a doença nos sãos ou os levava igualmente à morte, como também as roupas ou quaisquer outras coisas que tivessem sido tocadas ou usadas pelos doentes pareciam transmitir a referida enfermidade a quem as tocasse.” Boccaccio, Decameron (1348 e 1353)
Muito já a espécie humana viveu de lutas contra pandemias. Longa seria essa história com momentos de gravíssimas crises, com mortandades incontáveis, com sofrimentos indescritíveis. Uma das mais graves e que maiores marcas deixou no nosso imaginário foi a chamada Peste Negra, que teve o seu momento máximo no século XIV, tendo sido erradicada apenas no séc. XIX.

É a essa pandemia que hoje quero regressar através de uma das maiores obras da literatura, o Decameron de Boccaccio. Nunca como hoje se tornou tão atual ler este clássico que nos descreve a própria peste, a forma como ela grassava e, acima de tudo, as múltiplas respostas dadas pelas populações atacadas.

Uns retiravam-se para um verdadeiro exílio, procurando numa vida virtuosa e sem pecado sobreviver ao contágio, enquanto outros afirmavam que era pelo quebrar dos limites morais que se conseguiria sobreviver. Uns e outros buscavam loucamente a sobrevivência nos limites do humano.


É nesse ambiente, propício a místicas de intensidades imediatas, onde procissões e orações se repetiam, que Boccaccio nos dá um quadro de um grupo de dez jovens, sete damas, “formosas e dotadas de bons costumes e elevada dignidade”, e três cavalheiros, “bastante agradáveis e [também] de bons costumes”, que nos narram cem contos.

“Que fazemos aqui? Que esperamos? Que sonhamos?” questiona Pampineia, uma das sete donzelas, logo no arranque do debate. É esta a tónica das narrativas que cada um irá fazer ao longo do tempo, sempre em busca da natureza humana, dos amores, das paixões e dos valores, mas também dos ódios e mesquinhices, das traições e invejas.

É o regresso que hoje nos faz falta, entre tanta informação que temos. Urge, em cada ser que somos, ir a fundo nas questões existenciais a que este confronto com a morte nos obriga. Um confronto que é com o estabelecido, com o que julgamos acertado e mesmo adquirido, com o que julgamos ser o humano e os valores pelos quais nos regemos.

Basta seguir Boccaccio:

“… como o é a dolorosa lembrança da última peste, com que ela se inicia, para todos os que a viram ou que de algum outro modo souberam de seus estragos. Mas não quero que isso as assuste e impeça de prosseguir, como se, lendo, houvessem de estar sempre entre suspiros e lágrimas. Este horripilante início não deve ser diferente do que é para o caminhante a montanha acidentada e íngreme, atrás da qual se encontre uma planície belíssima e amena, que lhe parecerá tanto mais agradável quanto maior tiver sido o padecimento da subida e da descida. E, assim como os confins da alegria são ocupados pela dor, as misérias têm seus limites no contentamento que sobrevém.

A este breve aborrecimento (digo breve porque contido em poucas linhas) seguem-se logo o deleite e o prazer já prometidos, que talvez não fossem esperados de tal início, caso isto não fosse dito. Na verdade, se me tivesse sido possível levá-las convenientemente àquilo que desejo por outro caminho, e não por esta senda tão árdua, eu o teria feito de bom grado: mas como, sem esta rememoração, não seria possível explicar por qual razão ocorreram as coisas que a seguir serão lidas, disponho-me a descrevê-las como que impelido pela necessidade.

Digo, pois, que os anos da frutífera encarnação do Filho de Deus já haviam chegado ao número 1348 quando, na insigne cidade de Florença, a mais bela de todas as da Itália, ocorreu uma peste mortífera, que – fosse ela fruto da ação dos corpos celestes, fosse ela enviada aos mortais pela justa ira de Deus para correção de nossas obras iníquas – começara alguns anos antes no lado oriental, ceifando a vida de incontável número de pessoas, e, sem se deter, continuou avançando de um lugar a outro até se estender desgraçadamente em direção ao ocidente.

E, de nada havendo servido os saberes e as providências humanas, como a limpeza das imundícies da cidade por funcionários encarregados de tais coisas, a proibição de entrada dos doentes e os muitos conselhos dados para a conservação da salubridade, e tampouco encontrando efeito as humildes súplicas feitas a Deus pelos devotos, não uma vez, mas muitas, em procissões e de outros modos, era já quase início da primavera do ano acima quando começaram a manifestar-se de maneira prodigiosa seus horríveis e dolorosos efeitos.”
Há muitas edições online, livres de qualquer custo.

Basta ler, por exemplo, no exemplar da Biblioteca Particular de Fernando Pessoa, que está online