quarta-feira, 22 de abril de 2020

Quarentenando

Armando descobriu que sua maquina de lavar roupa tem cinco níveis de água. Enroscou-se. Pra que serve o menor nível d’água?

Pra lavar meias, arrisquei. Minha santa máquina, mais modesta, só oferece três níveis d’água. Um problema a menos na minha vida.

A lavadora superprogramável da Mirian rebelou-se. Só lava. Não enxágua, não enxuga. Parece, anda sentindo falta de sua costumeira operadora. A auxiliar doméstica de Mirian, no momento, em ausência compulsória.

Silvio conta que a quarentena pegou a família no meio de uma reforma – da cozinha. Sem saída (literalmente), ele e a mulher seguem quarentenando sem cozinha.

Joana, limpando armários, encontrou um precioso e perdido vidro de doce de leite uruguaio. Foi a alegria de sua sexta semana de prisão domiciliar.


Meu amigo Toni lamentou: Imagina se a gente depois de, lá pra trás, se acabar em sexo sem camisinha, morrer agora por um singelo aperto de mão.

Leila foi despertada na madrugada por Cris que, em crise de pânico, pedia socorro. Foram três segundos de susto. Não pela crise que poderia ser socorrida com uma ligação ao SAMU, mas pelo ressurgimento do Cris, ex tudo - amor, marido, amigo -, com quem não falava há anos.

Meio engasgada, fez a recomendação básica: respire! Era o que podia fazer. Ela vive em São Paulo, ele em Barcelona. Ele emendou algum respiro com uma declaração de amor.

Ela nem pode dizer que era tardia e despropositada. Fingiu que não entendeu e continuou recomendando: respire, respire, respire. Retomando o bom humor – e o ar -, Cris despediu-se: Infelizmente, esse seu respirador não me alcança. Riram. Foi refeito o contato.

Meu cachorro manifestou-se de direita. Faz de tudo pra quebrar a quarentena e chora quando ouve bateção de panela e gritos de Forabolsonaro! Felizmente os dois gatos, indicam, são de esquerda. Completamente solidários e atentos aos panelaços, focadíssimos no forabozo. Temos gastado madrugadas debatendo essas domésticas diferenças político-ideológicas.

Histórias – pequenas na causa e no tamanho - da confortável quarentenice da colegagem de classe média, onde, além do medo com o inusitado de tudo, pesam a impossibilidade de ir e vir, a trabalheira no constante e frenético limpar muito tudo – casa, compras, gavetas, cabeça, tronco e mãos. Não falta dinheiro, não falta conforto, não faltam família e amigos - ainda que só em lives.


Quem me relembrou disso tudo foi minha amiga Dora, quando me salvou de uma derrapada no baixo astral. “Sufoco de verdade a gente sabe bem onde está.”

Cada um de nós sabe bem onde está e qual é esse onde. Está na nossa rua, na esquina e segue periferias afora, nas grandes e pequenas cidades, no campo. São os brasileiros mais desiguais do que a desigualdade. Os sem quase tudo, os do dinheiro suado que passa ligeiro da mão pra boca. Os do sufoco diário de levar comida pra casa com um ou dois cômodos e muitas bocas.

São milhares. Sempre os mais ameaçados, desconsiderados. Na pandemia, seguem sendo. São números mal contados pela economia oficial, descartáveis pela saúde oficial. De ofício, ameaçados pela doença, pela desassistência, pela fome.

A propósito, meu neto Caio, de 16 anos, o down mais incrível do planeta, nas conversas quarentenárias sobre sufocos e desigualdades, declarou-se: Sou muito comunista!

Comunista? Jura?

Completamente.

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