Não é possível dizer que Bolsonaro desta vez passou dos limites, pois, a rigor, ele já os havia ultrapassado quando, ainda militar, se insubordinou ou então, quando deputado, violentou o decoro parlamentar seguidas vezes. No primeiro caso, recebeu uma punição branda; no segundo, nem isso. Ou seja, a pusilanimidade das instituições ao lidar com Bolsonaro deu-lhe a segurança de que, para ele, não há limites, salvo os ditados por seu projeto autoritário de poder.
É reconfortante, no entanto, observar que, desta vez, integrantes de todas as instituições da República se manifestaram com firmeza contra mais essa afronta de Bolsonaro e de seus seguidores à democracia. Até mesmo o procurador-geral da República, Augusto Aras, que vinha se omitindo ante a escalada bolsonarista, anunciou a abertura de um inquérito para investigar “fatos em tese delituosos envolvendo a organização de atos contra o regime da democracia representativa brasileira”. O presidente não está entre os investigados, porque não há indícios de que tenha ajudado a organizar o comício, mas o simples fato de o procurador Aras ter qualificado como atentatório à democracia um ato que teve como sua estrela o presidente da República deveria ser suficiente para embaraçar Bolsonaro.
Mas será difícil constranger o presidente, cuja desconsideração pela opinião alheia, salvo quando é a dos filhos ou dos bajuladores que o cercam, é notória. Diante da repercussão negativa de seu discurso autoritário, o presidente, como sempre, tratou de minimizar o fato, insultando a inteligência de todos. No dia seguinte à afronta, Bolsonaro negou que tivesse atacado os demais Poderes e disse que, “no que depender do presidente Jair Bolsonaro, democracia e liberdade acima de tudo”.
Felizmente, nem a democracia nem a liberdade dependem de Jair Bolsonaro. Dependem, exclusivamente, do cumprimento da Constituição. Num arroubo à Luís XIV, Bolsonaro chegou a dizer: “Eu sou realmente a Constituição”. Não é. A Constituição é a materialização do pacto democrático, aquele ao qual todos se submetem, do mais humilde cidadão ao presidente da República.
Mas Bolsonaro, como sempre fez em sua trajetória política, está testando a disposição da sociedade de defender a ordem democrática por ele sistematicamente ameaçada. Pode-se quedar inerte diante das bravatas bolsonaristas, permitindo que se instaure um clima golpista, mas também se pode riscar uma linha no chão e dizer que, deste ponto em diante, é o terreno do intolerável.
Por isso, espera-se que o até agora silente ministro da Justiça, Sérgio Moro, faça jus à sua fama de inflexível cruzado da moralidade e da lei no exercício do serviço público e manifeste pelo menos desconforto diante do comportamento acintosamente impróprio de Bolsonaro na chefia da Nação. O mesmo se espera dos tantos ministros do presidente, militares reformados e da ativa, tidos como bedéis do governo, responsáveis por conter os muitos excessos de Bolsonaro. Até agora, contudo, predomina o silêncio - tão mais embaraçoso quando se recorda que o ato golpista protagonizado pelo presidente Bolsonaro, que é o comandante em chefe das Forças Armadas, ocorreu no Dia do Exército e diante do QG do Exército.
Consta que a afronta bolsonarista gerou mal-estar nas Forças Armadas, que não querem se ver vinculadas a movimentos que pedem a volta da ditadura militar e de medidas de exceção, como o famigerado AI-5, em franco desafio à Constituição. Para os generais, a guerra a ser vencida hoje não é contra os inimigos que Bolsonaro inventa todos os dias, mas contra o coronavírus.
Mas a guerra de Bolsonaro, já está claro, é contra as instituições da República e contra a maioria absoluta dos brasileiros, afrontados por um presidente que só se importa com o poder. Quem estiver na trincheira com Bolsonaro, seja no governo, seja em movimentos golpistas, vai se desmoralizar junto com ele.
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