Achatar o significado da palavra liberdade estimula mais gente nas ruas, comércio aberto e torna irrelevante o aumento do número de mortes, que dobra a cada dois dias. A autoridade máxima do país e ministros deram as costas para profissionais de saúde que se desdobram para atender a população.
Quem está na linha de frente da assistência diz nunca ter visto nada igual. A Covid-19 é uma infecção que mata silenciosamente. Pacientes sem queixas respiratórias, que não sentem faltar de ar, diabéticos, pessoas que desmaiaram sem motivo aparente, quando examinados já desenvolveram pneumonia difusa. Os esforços para salvar vidas têm sido orientados pela necessidade de diagnosticar — de preferência na fase inicial da doença e do suporte—, manter ventilação e condições favoráveis à respiração. Serviços básicos de saúde não podem mandar de volta para casa pessoas sem a verificação do nível de oxigênio e precisam acompanhar a evolução de quadros clínicos leves. O atendimento em hospitais e unidades de terapia intensiva requer médicos, enfermeiros, fisioterapeutas e outros especialistas, equipes completas. Manter doentes com ventilação mecânica implica, além do tubo na traqueia, o uso de sedativos, acessos intravenosos e arteriais, sondas gástricas e vesicais. Para melhorar a função pulmonar, é necessário contar com cinco ou seis profissionais para virar pacientes ligados a respiradores e bombas de infusão de medicamentos. De barriga para baixo e para cima, duas vezes por dia.
A vantagem do tempo, quatro meses após os primeiros registros da epidemia, foi gasta indevidamente com a polarização gripezinha versus alta letalidade. Continuamos com insuficiência de leitos, testes, respiradores, equipamentos de proteção individual e profissionais de saúde. Promessas de elevados investimentos no SUS ainda estão no papel, houve remanejamento do Orçamento e, por enquanto, o Ministério da Saúde empenhou para despesas relativas à Covid-19 apenas R$ 8 bilhões.
Os termos colapso do sistema e seu antônimo, existência de leitos vagos — antes bastante abstratos em função das imprecisões das informações sobre capacidade instalada —, perderam sentido. Unidades básicas de saúde e UPAS estão às voltas com inúmeros atendimentos de sintomáticos respiratórios e dificuldades para transferir pacientes graves. Manaus e Fortaleza não são exceções, unidades de terapia intensiva da rede pública de São Paulo e do Rio estão lotadas. Essa dura realidade sensibiliza a maioria da população, cientistas, quem trabalha na saúde, governadores e prefeitos, aqueles que não admitem escolher quem irá viver, que se indignam com a exposição de critérios para justificar genocídios.
Como decidir pela morte de alguém? Um idoso e ativo cientista que está pesquisando a vacina para o coronavírus deve se sacrificar pelos netos, a seleção deve recair sobre uma mãe cujos filhos ficarão órfãos? Sobre médicos? No Brasil, esses tradicionais questionamentos éticos, sem as devidas mediações científicas e democráticas, costumam ser respondidos com o uso indiscriminado da crueldade. Negros, os indígenas e os pobres foram imolados em nome da pátria e agora convocados para a morte para salvar a economia do pibinho. Existem sugestões alternativas. As redes sociais estão repletas de parâmetros para excluir do atendimento os arautos das aglomerações humanas que necessitarem de cuidados. Outra possibilidade é exigir a assinatura de um termo de responsabilidade pela ressurreição. Caso não ocorram milagres, os defensores da quebra do isolamento social e da subordinação das vidas à economia renunciam aos cargos.
Ligia Bahia
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