quarta-feira, 22 de abril de 2020

Decameron, o humano obrigatório

“E a peste ganhou maior força porque dos doentes passava aos sãos que com eles conviviam, de modo nada diferente do que faz o fogo com as coisas secas ou engorduradas que lhe estejam muito próximas. E mais ainda avançou o mal: pois não só falar e conviver com os doentes causava a doença nos sãos ou os levava igualmente à morte, como também as roupas ou quaisquer outras coisas que tivessem sido tocadas ou usadas pelos doentes pareciam transmitir a referida enfermidade a quem as tocasse.” Boccaccio, Decameron (1348 e 1353)
Muito já a espécie humana viveu de lutas contra pandemias. Longa seria essa história com momentos de gravíssimas crises, com mortandades incontáveis, com sofrimentos indescritíveis. Uma das mais graves e que maiores marcas deixou no nosso imaginário foi a chamada Peste Negra, que teve o seu momento máximo no século XIV, tendo sido erradicada apenas no séc. XIX.

É a essa pandemia que hoje quero regressar através de uma das maiores obras da literatura, o Decameron de Boccaccio. Nunca como hoje se tornou tão atual ler este clássico que nos descreve a própria peste, a forma como ela grassava e, acima de tudo, as múltiplas respostas dadas pelas populações atacadas.

Uns retiravam-se para um verdadeiro exílio, procurando numa vida virtuosa e sem pecado sobreviver ao contágio, enquanto outros afirmavam que era pelo quebrar dos limites morais que se conseguiria sobreviver. Uns e outros buscavam loucamente a sobrevivência nos limites do humano.


É nesse ambiente, propício a místicas de intensidades imediatas, onde procissões e orações se repetiam, que Boccaccio nos dá um quadro de um grupo de dez jovens, sete damas, “formosas e dotadas de bons costumes e elevada dignidade”, e três cavalheiros, “bastante agradáveis e [também] de bons costumes”, que nos narram cem contos.

“Que fazemos aqui? Que esperamos? Que sonhamos?” questiona Pampineia, uma das sete donzelas, logo no arranque do debate. É esta a tónica das narrativas que cada um irá fazer ao longo do tempo, sempre em busca da natureza humana, dos amores, das paixões e dos valores, mas também dos ódios e mesquinhices, das traições e invejas.

É o regresso que hoje nos faz falta, entre tanta informação que temos. Urge, em cada ser que somos, ir a fundo nas questões existenciais a que este confronto com a morte nos obriga. Um confronto que é com o estabelecido, com o que julgamos acertado e mesmo adquirido, com o que julgamos ser o humano e os valores pelos quais nos regemos.

Basta seguir Boccaccio:

“… como o é a dolorosa lembrança da última peste, com que ela se inicia, para todos os que a viram ou que de algum outro modo souberam de seus estragos. Mas não quero que isso as assuste e impeça de prosseguir, como se, lendo, houvessem de estar sempre entre suspiros e lágrimas. Este horripilante início não deve ser diferente do que é para o caminhante a montanha acidentada e íngreme, atrás da qual se encontre uma planície belíssima e amena, que lhe parecerá tanto mais agradável quanto maior tiver sido o padecimento da subida e da descida. E, assim como os confins da alegria são ocupados pela dor, as misérias têm seus limites no contentamento que sobrevém.

A este breve aborrecimento (digo breve porque contido em poucas linhas) seguem-se logo o deleite e o prazer já prometidos, que talvez não fossem esperados de tal início, caso isto não fosse dito. Na verdade, se me tivesse sido possível levá-las convenientemente àquilo que desejo por outro caminho, e não por esta senda tão árdua, eu o teria feito de bom grado: mas como, sem esta rememoração, não seria possível explicar por qual razão ocorreram as coisas que a seguir serão lidas, disponho-me a descrevê-las como que impelido pela necessidade.

Digo, pois, que os anos da frutífera encarnação do Filho de Deus já haviam chegado ao número 1348 quando, na insigne cidade de Florença, a mais bela de todas as da Itália, ocorreu uma peste mortífera, que – fosse ela fruto da ação dos corpos celestes, fosse ela enviada aos mortais pela justa ira de Deus para correção de nossas obras iníquas – começara alguns anos antes no lado oriental, ceifando a vida de incontável número de pessoas, e, sem se deter, continuou avançando de um lugar a outro até se estender desgraçadamente em direção ao ocidente.

E, de nada havendo servido os saberes e as providências humanas, como a limpeza das imundícies da cidade por funcionários encarregados de tais coisas, a proibição de entrada dos doentes e os muitos conselhos dados para a conservação da salubridade, e tampouco encontrando efeito as humildes súplicas feitas a Deus pelos devotos, não uma vez, mas muitas, em procissões e de outros modos, era já quase início da primavera do ano acima quando começaram a manifestar-se de maneira prodigiosa seus horríveis e dolorosos efeitos.”
Há muitas edições online, livres de qualquer custo.

Basta ler, por exemplo, no exemplar da Biblioteca Particular de Fernando Pessoa, que está online

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