sexta-feira, 10 de julho de 2020

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Possivelmente nenhum outro presidente na recente história democrática do Brasil tem sido tão imprudente com ele próprio ou com o país
Financial Times.

O exemplo de Rondon

Há muito tempo, a política para a Amazônia deixou de ser um assunto de segurança nacional. Se tivéssemos que traçar uma linha divisória, do ponto de vista histórico, quem sacou a mudança foi o ex-presidente José Sarney, ao criar o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), em 1989. A criação do Ministério do Meio Ambiente veio depois, no governo Collor de Mello, em 1992, no rastro da Conferência Rio-92. Desde então, o Brasil passou a ser uma referência em termos de construção de uma política ambiental, apesar de todos os problemas nossos. Vem daí a ajuda internacional que recebíamos para preservar a biodiversidade da Amazônia, até Jair Bolsonaro assumir a Presidência e nomear Ricardo Salles para o Ministério do Meio Ambiente. Pôs tudo a perder. Agora, corre atrás do prejuízo, porque os investidores deram um basta à política de desmonte do Ibama e devastação da Amazônia. O conceito de sustentabilidade passou a ser parte integrante das cadeias de comércio global e a preservação da Amazônia, um problema de sobrevivência da humanidade.

Nem todos concordam com isso, é claro. Terraplanistas, negacionistas e reacionários existem no mundo inteiro, porém, nenhum deles tem o poder destruidor da Amazônia do ministro Ricardo Salles, com suas boiadas, como revelou na reunião ministerial de 22 de abril. Falou para agradar Bolsonaro, mas a divulgação dos vídeos desnudou a loucura de nossa atual gestão ambiental. O Brasil foi um dos grandes artífices das principais convenções internacionais de meio ambiente, que tratam de mudanças climáticas, diversidade biológica e desertificação, e do Acordo de Paris (2015). O governo Bolsonaro resolveu fazer a roda da história girar para trás. Em apenas um ano e meio de desatinos florestais, transformou o Brasil num pária ambiental, apesar de a legislação existente no país servir de referência para políticas de sustentabilidade no mundo todo: Lei das Águas (1997), Lei dos Crimes Ambientais (1998), Política Nacional de Educação Ambiental (1999), Sistema Nacional de Unidades de Conservação(2000) e Lei de Gestão de Florestas Públicas (2006).


A declarada intenção de burlar e desmontar essa legislação provocou uma forte reação de governos, investidores e personalidades de todo o mundo. O governo se viu obrigado a dar demonstrações de que vai mudar de postura em relação à Amazônia, o que resultou na reunião de ontem do vice-presidente Hamilton Mourão, que preside a Comissão da Amazônia, com investidores estrangeiros. O governo foi duramente cobrado. Ao lado do chanceler Ernesto Araújo, cuja gestão à frente do Itamaraty envergonha a diplomacia brasileira, e do próprio Ricardo Salles, Mourão anunciou a intenção de aumentar a fiscalização e proibir as queimadas na Amazônia Legal. No ano passado, a primeira grande crise do governo foi provocada pelo avanço do desmatamento e pelas queimadas na Amazônia. Na ocasião, o presidente Jair Bolsonaro protagonizou um bate-boca com o presidente francês, Emmanuel Macron, no qual se destacou pelas grosserias contra a primeira-dama francesa.

Agora, estamos diante de uma nova crise, por causa da pandemia de coronavírus, que chegou às aldeias indígenas. As dimensões das reservas indígenas sempre foram muito contestada pelos militares que cercam o presidente Jair Bolsonaro, com destaque para o chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, que foi comandante militar da Amazônia. Entretanto, os estudos ambientais e as fotografias dos satélites mostram que os índios, com suas reservas, são os verdadeiros protetores da floresta. Mesmo do ponto de vista militar, o Exército não teria a menor possibilidade de êxito em suas tarefas sem a incorporação dos índios às tropas que guarnecem nossas fronteiras.

Acontece que o mundo está de olho na sobrevivência de nossos índios, principalmente das etnias ameaçadas de extinção. O premiado fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado lidera uma campanha internacional em sua defesa. Mineiro de Aimorés, ocupa a cadeira nº 1 da Academia de Belas Artes da França e mobiliza artistas, intelectuais e personalidades de todo o mundo. Bolsonaro não tem a dimensão do tamanho do problema que criou, inclusive para o agronegócio brasileiro, que deixou de ser o grande vilão, porque a moderna agricultura não precisa derrubar as florestas.

O arquétipo do herói de Bolsonaro na Amazônia é o ex-deputado e major reformado do Exército Sebastião Curió Rodrigues, que atuou como agente de informações na campanha contra a Guerrilha do Araguaia (PCdoB) e, depois, como coordenador do garimpo de Serra Pelada. Quão distante é do papel histórico do marechal Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958), que realizou uma saga sem paralelo nos sertões do Centro-Oeste e do Norte do país, instalando linhas telegráficas ao longo de 1.650km de cerrado e 1.980km de florestas amazônicas.

“Matar nunca, morrer se preciso for”, foi o lema que adotou para proteger os índios Bororo, Botocudo, Kaingang, Xokleng, Nambikuára, Xavante e Umotina (foto do Museu do Índio) ao implantar a ligação telegráfica entre Brasil, Paraguai e Bolívia nos sertões de Goiás, Mato Grosso, Amazonas e Acre. Criador do Serviço de Proteção ao Índio, que deu origem à Funai, guiou o ex-presidente americano Theodore Roosevelt em sua expedição pelo Amazonas. De 1927 a 1930, inspecionou a fronteira brasileira desde as Guianas à Argentina. Em 1938, promoveu a paz entre Colômbia e Peru. O Parque Indígena do Xingu e o antigo Museu Nacional do Índio foram ideias suas. Não por acaso, o Congresso Nacional deu o nome de Rondônia ao território do Guaporé e lhe concedeu a patente de marechal.

Autoritarismo oportunista

Sempre que há no país um “surto” de autoritarismo, como no Estado Novo, na ditadura de 1964 ou no regime bolsonarista, nossa reação tem sido a de buscar para ele explicação em traços, supostamente excepcionais, de personalidade de quem chega ao poder em nome da vocação autoritária. Como se fosse mero defeito de caráter do governante, que impõe ao povo, tido como manso e democrático, sua vontade pessoal.

A personalidade autoritária é um fenômeno social e duradouro porque sobrevive e até se robustece nos períodos democráticos da história social. Os direitos sociais e políticos são tratados pelos oportunistas do autoritarismo como brechas de penetração na organização do Estado para subvertê-la. E revogá-los. Está acontecendo agora.

Historicamente, devemos essa nossa característica à escravidão e aos regimes de trabalho teoricamente livre, mas opressivo, que os sucederam. A opressão escravista criou entre nós estruturas peculiares de personalidade básica, de prontidão autoritária, tanto no mando quanto na sujeição. O que em outros países foi ou tem sido objeto de estudos preventivos de antropólogos, psicólogos e sociólogos. Aqui não.

São vários os fatores sociais e históricos que formam e consolidam personalidades que abrigam a disposição para a opção autoritária nas circunstâncias de crise e ruptura sociais. É quando as normas perdem a eficácia e a situação anômala se expressa nos medos e desafios da anomia.

A crise decorrente das transformações na organização e nas metas da economia, inspiradas no neoliberalismo econômico herdado da ditadura, ao desorganizar as bases de referência e estabilidade da sociedade, criou uma situação de incerteza social que desafia cada um a reagir com o que lhe indica sua visão de mundo que tem. E o que tem é o que sobrou na personalidade básica profunda. Sobretudo a dos setores mais consumistas da classe média.

Direitismo e fascismo não são apenas opção eleitoral pela direita, mas também disposição para transgredir normas como as normas sanitárias de resistência à pandemia, como se viu nestes dias no Rio de Janeiro e em outros lugares. É o egoísmo antissocial e a opção individualista por viver apenas o agora, mesmo que isso ponha em risco vidas alheias, especialmente a dos que cuidam da saúde e da vida dos enfermos.

Essa insegurança tem sido no Brasil a matéria-prima de que se valem os aventureiros para a tomada do poder, ainda que sob formas mal disfarçadas como a de agora. Podem organizar e pôr em funcionamento uma eficiente máquina de produção e manipulação da intolerância, por meio da qual o autoritarismo se concretiza como poder e política de Estado. Só que dotado de recursos econômicos e técnicos de acobertamento.

Indícios fortes de um poder paralelo. É o que viabiliza manter a eficácia da manipulação do pensamento e da conduta, ocultados nos interstícios e nas rebarbas do poder, e nos traz ao regime de minorias obscurantistas de agora.

Não nos dedicamos a estudar persistências e fenômenos como esse. Os progressistas deste país têm certezas demais e dúvidas de menos, mesmo em face da realidade adversa. Desconhecem o engendramento recíproco e oposto dos fatores da história.

Não cuidamos de interpretar os muitos sinais dos riscos de autoritarismo, como fizeram nos EUA os pesquisadores, sobretudo alemães, do Instituto de Pesquisa Social.

Em 1950, Theodor Adorno (1903-1969) e colaboradores publicaram, nos EUA, os dois robustos volumes do livro “The Authoritarian Personality” (A Personalidade Autoritária), resultados de uma pesquisa multidisciplinar sobre os fatores do autoritarismo e das tendências fascistas na personalidade dos americanos.

Muito concretamente os americanos nunca foram os paladinos da democracia, a não ser na parcela relativamente minoritária de sua população mais identificada com os valores da tradição democrática e igualitária. O estudo de Adorno e colaboradores permitiu definir os focos concretos de ameaça à democracia e a seus valores. Eram os anos da intolerância macarthista e sectária.

Mesmo assim, no Brasil nunca nos interessamos, propriamente, por esse tema, embora este seja um país notoriamente autoritário. Nossa visão do autoritarismo e da escravidão que aqui lhe deu origem é limitante e restritiva.

Aqui o autoritarismo é, no mínimo o de mandar nos outros, fazer-se obedecer, minimizar os demais, considerá-los inferiores e limitados.

Diferentemente de outros países, em que a diferença social vem da competência, aqui, para muitos, vem de alguma modalidade de poder. De modo que dá lugar à prepotência da ignorância e ao fascismo do poder ignorante. Gera, aqui, a oportunidade da compensação para os desprovidos de outros canais de afirmação e de ascensão social.
José de Souza Martins

Até Duterte critica matança

Nos EUA e no Brasil, os presidentes são corajosos. Bolsonaro tem dinheiro, ele é tipo o Trump, com a atitude ‘que o diabo os carregue’. Nós somos pobres. Não podemos permitir um pandemônio total.
 
Se nós seguíssemos os exemplos desses outros países de reabrir toda a economia, e milhares e milhares de novos casos acontecessem, nós estaríamos em uma grande merda
Rodrigo Duterte, "o Justiceiro" presidente das Filipinas

Bolsonaro está doente da alma

Mais do que doente de coronavírus, o que aflige o presidente Jair Bolsonaro é algo muito mais grave, é uma doença da alma, uma doença sem cura.

Do vírus ele poderá se curar ou morrer, como todo mundo. No entanto, o mal que nele é grave é sua soberba, sua teimosia em querer negar as evidências. Primeiro, enquanto se gabava de sua condição de atleta e exibia sua imunidade, levando os outros a acreditar que era uma simples gripe que a ciência e a medicina exageravam e que ele não tinha nada a ver com os mortos. E enquanto os cadáveres se amontoavam e cresciam as lágrimas daqueles que perdiam seus entes queridos, Bolsonaro continuava rindo e minimizando o risco de contágio.

Sua soberba ficou, se isso é possível, mais evidente na maneira arrogante e provocadora com que anunciou que sim, que foi contaminado. Ao dar a notícia, nunca fora visto rindo com tanto gosto. Parecia até feliz. E manifestou sua felicidade ao afirmar que, no fim das contas, o coronavírus era “uma chuva” que iria molhar todo mundo. E chegou a provocar a ciência e a medicina recomendando novamente o uso da cloroquina, cuja eficácia não só não foi comprovada, como seu uso poderia piorar o quadro dos pacientes com o vírus.



Exatamente no momento em que poderia ter demonstrado à nação com um gesto de humildade que havia se equivocado ao minimizar a doença que de alguma forma tinha se vingado dele, permaneceu fiel à sua teimosia e soberba ao afirmar que se está exagerando a força da pandemia. E voltou a repetir que mais importante que as mortes e mais urgente é que todos voltem ao trabalho para render culto ao deus da economia.

Enquanto ouvia o presidente falar, em minhas veias sentia pena, raiva e vergonha por este país que merecia nestes momentos de tragédia nacional, com 66.000 mortos, uma palavra de consolo e não de arrogância de quem detém a mais alta autoridade do Estado.

Bolsonaro alardeia ser católico, evangélico e se importar mais com a Bíblia do que com a Constituição. Deveria saber que nesses textos fica evidente que todos os pecados podem ser perdoados, menos o da soberba que pressupõe que a pessoa se coloca acima de Deus. O vírus de Bolsonaro é de um gênero diferente dos milhões já contagiados. O seu é diabólico.

Pensamento do Dia

Osama Hajjaj

Por que julgamos mais duramente as decisões dos pobres

“Para vocês seria porcaria, para estes pais não era porcaria. Quando falam assim, não me ofendem, ofendem a eles.” Quando Isabel Díaz Ayuso, presidente da Comunidade de Madri, defendeu com essas palavras os menus da Telepizza para crianças vulneráveis, talvez o debate subjacente não fosse sobre a qualidade dos alimentos. Porque os especialistas não tinham dúvidas. Um estudo recentemente divulgado pela Universidade Harvard mostra que talvez o debate não fosse, na realidade, sobre o que consideramos aceitável para famílias pobres. Esse limite do aceitável é mais baixo para pessoas com menos recursos? Pesquisadoras da universidade dos EUA queriam responder a essa pergunta e as conclusões de seu trabalho são reveladoras: “Temos um padrão duplo preocupante”.

Por meio de 11 experimentos, as pesquisadoras mostram que pessoas de baixa renda são julgadas de modo mais negativo por consumirem os mesmos itens do que outras com renda mais alta, o que acrescenta uma pressão social extra às restrições materiais que já enfrentam. Mas não é por terem menos para gastar, mas porque se considera que suas despesas deveriam ser mais parcimoniosas. “Descartamos a explicação de que pessoas com renda mais alta podem consumir socialmente mais simplesmente porque podem pagar mais; pelo contrário, observamos que para as pessoas de baixa renda se considera socialmente que tenham de consumir menos porque se supõe que necessitam de menos”, diz Serena Hagerty, principal autora do artigo. Segundo Hagerty, o estudo revela que as necessidades básicas têm que ser mais básicas para os pobres.


Em um dos testes, a história de Joe é apresentada a dois grupos diferentes: para um, esse personagem tem baixa renda, para outro, tem uma boa renda. Joe ganhou 200 dólares (1.070 reais) em um sorteio, tudo bem se gastar o dinheiro em uma nova televisão? Se Joe é de baixa renda, isso é muito mais malvisto do que se tem um bom padrão de vida. Curiosamente, há um terceiro grupo, o de controle, ao qual não se conta nada sobre a situação financeira de Joe. Para este grupo, é tão admissível que o Joe neutro compre a TV como para o grupo do Joe rico. Só é malvisto pelo que tem como referência o Joe pobre.

À medida que o estudo, publicado na PNAS, vai mais fundo, os experimentos se tornam mais complexos para delinear melhor os mecanismos pelos quais as pessoas são julgadas de acordo com seus recursos. Por exemplo, em outro teste a pergunta é que cartão-presente dariam ao Joe pobre ou ao Joe rico, um de 100 dólares para comprar comida ou outro de 200 dólares para uma TV? O pobre Joe recebe principalmente o cartão da comida, enquanto o Joe rico ganha o que lhe permite comprar uma TV, ou seja, o dobro do dinheiro. No cômputo final, em média, o Joe pobre recebe 125 dólares e o rico, 152. Ou seja, mesmo quando se trata de um presente, quem tem mais, merece mais, e quem tem menos, ganha um presente inferior. Mesmo que saibam que Joe disse expressamente que gostaria de uma nova TV, os participantes do estudo dão muito menos TVs ao Joe pobre do que ao rico.

“Uma implicação desse duplo padrão é que as pessoas parecem mais confortáveis dirigindo e limitando as decisões de gastos dos pobres”, resume Hagerty. Este estudo é muito revelador no contexto atual, como indicam essas pesquisadoras, em que se discute a promoção da renda mínima em países como a Espanha. “Uma crítica potencial à renda vital mínima pode ser que as pessoas de baixa renda gastarão o dinheiro em coisas erradas”, diz Hagerty sobre o caso espanhol. “No entanto, é provável que esse medo resulte em primeiro lugar de uma visão limitada de quais produtos são considerados ‘necessários’ para pessoas de baixa renda”, diz ela.

É algo claro em outro de seus experimentos, como o que mostra 20 objetos de consumo cotidiano que uma família poderia comprar: jornais, móveis, relógios, computadores, equipamentos esportivos, etc. Em todos é mais malvista sua compra por uma família de baixa renda, exceto em um item: produtos de higiene corporal. Com essa mesma abordagem propuseram 20 critérios a serem levados em consideração por uma família que procure uma nova casa: garagem, ar-condicionado, bairro barulhento, proximidade de áreas de lazer, etc. A aquisição de todos esses itens é mais malvista quando se considera uma família de baixa renda, exceto em dois deles: que a casa esteja perto de um supermercado e do transporte público. O mais revelador é que se considera supérfluo que uma família pobre procure uma casa perto de um hospital ou em um bairro seguro, o que implica que, mesmo com pouca renda, até buscar segurança é considerado um capricho desnecessário.

A segurança como um luxo para famílias sem recursos também aparece em outro experimento do estudo, no qual se propõe a compra de um carro com um sistema de câmera traseira. Mesmo quando se explica aos participantes que é um item adicional importante para a segurança do veículo, isso é considerado menos necessário para uma família de poucos recursos. É malvisto que os pobres comprem um objeto que para os ricos é fundamental para sua segurança. De novo, não é que o rico tenha mais condição, é que os vulneráveis não merecem tanto, mesmo que esteja em jogo sua saúde.

“A principal contribuição deste estudo é que definimos as necessidades a partir dos recursos que as pessoas têm, porque o que definimos como necessário ou supérfluo muda de acordo com a renda da pessoa”, afirma o economista Luis Miller, pesquisador do CSIC. E acrescenta: “Isso tem implicações importantes, sobretudo no que chamamos de armadilha da pobreza, esse círculo vicioso que nega os recursos necessários para se ter acesso a mais recursos”.


Quando alguém critica um sem-teto ou um refugiado por ter um smartphone é porque isso é considerado um capricho desnecessário, embora para todos seja uma ferramenta imprescindível para nos relacionarmos com nossos familiares, empregadores ou clientes. Sem esse tipo de recurso, é impossível romper o círculo de que Miller fala: sem uma casa, chuveiro, telefone celular etc., é impossível conseguir um emprego que permita sair da armadilha da pobreza.

“Há a ideia de que, se você ajuda uma família, faz com que ela trabalhe menos. Um projeto de monitoramento analisou isso, e não é assim”, disse recentemente Esther Duflo, ganhadora do Prêmio Nobel de Economia. “Isso não os torna mais preguiçosos, como também lhes proporciona o bem-estar e a segurança que os tornam mais produtivos “. Todas as pessoas precisam sair da “visão de túnel” imposta pelas carências, essas penúrias que as impedem de tomar decisões calmas, como explicaram Sendhil Mullainathan e Eldar Shafir em seu livro Escassez: uma nova forma de pensar a falta de recursos na vida das pessoas e nas organizações (Editora Best Business): “A escassez arrebata nossa atenção e Isso nos proporciona um benefício muito estreito: temos um desempenho melhor ao nos ocuparmos das necessidades mais prementes. Mas, de modo mais amplo, pagamos um custo: negligenciamos outros assuntos e somos menos eficientes no resto de nossos afazeres cotidianos”. Dar uma TV ao Joe pobre talvez lhe proporcione um estímulo emocional que lhe permita acordar mais animado pela manhã. Ou não. Mas, em geral, pensamos que ele deveria se contentar com o que tem e se concentrar em comprar o imprescindível para subsistir.

Miller acredita que esses mecanismos ocorrem na Espanha de uma maneira mais sutil, porque lá as pesquisas mostram claras preferências pela redistribuição e não há com tanto peso “a figura do libertário dos EUA, aquele que diz que cada um tem o que merece”. E acrescenta: “Aqui esses mecanismos têm mais a ver com a necessidade de nos diferenciarmos dos pobres”. Segundo explica Hagerty por e-mail, a renda dos participantes do estudo não influenciou em suas opiniões: independentemente de sua renda, todos reduziam o círculo das compras aceitáveis para o Joe pobre, mesmo que pusessem em risco sua saúde, como uma cadeirinha para as crianças no carro, um bairro sem criminalidade ou acesso próximo a um posto de saúde, que são vistos quase como caprichos somente quando a pessoa tem pouca renda. “O fato de darmos menos margem de manobra às decisões dos economicamente desfavorecidos parece expressar noções mais básicas de mérito e autonomia”, diz a pesquisadora.

Voltando ao menu da Telepizza, Hagerty tem uma resposta clara à luz de seu trabalho: “Essa visão parcial da necessidade também pode explicar por que deram comida porcaria às crianças de baixa renda [em Madri], quando a mesma comida pode não ser adequada para crianças de alta renda”. E ela ressalta que suas descobertas sugerem que debates como esse estão na realidade fazendo duas perguntas diferentes que terão duas respostas substancialmente diferentes: O acesso a alimentos saudáveis é necessário? O acesso a alimentos saudáveis é necessário para as pessoas de baixa renda? “Isso precisa ser levado em consideração no debate político: como são feitas as perguntas relevantes em política e que preconceitos implícitos podem influir nas respostas?”.

Javier Salas

'Fakelândia'

Ter um governante que não se dá conta do peso da pandemia e do que está acontecendo no mundo é uma enorme tristeza.

Os fracassos que chegam de Brasília nos educaram há muito tempo para o sofrimento. É como se se pudesse esperar o pior de Brasília. É um câncer que começou há muito. Chego à conclusão de que as administrações se impõem a favor de seus interesses e não dos do povo 
Nélida Piñon 

Amazônia, protagonista da bioeconomia

As florestas tropicais estão ausentes da mais consagrada literatura científica e de políticas públicas sobre bioeconomia. As Academias de Ciências, de Engenharia e de Medicina dos EUA acabam de publicar um relatório mostrando que a bioeconomia corresponde a 5% do PIB americano, que a competição global em torno das conquistas tecnológicas da área se intensifica e que os dispositivos da revolução digital estão fazendo da bioeconomia uma das fronteiras científicas mais importantes para o desenvolvimento sustentável. Mas é em vão que o leitor procurará no texto alguma referência às florestas tropicais.

O relatório do Conselho Alemão de Bioeconomia sobre as estratégias de bioeconomia ao redor do mundo localiza 50 países já dotados de planos para o setor. Mas quando se trata de florestas, a ênfase é na produção de biomassa para substituição de energias fósseis ou para a elaboração de novos materiais, sobretudo nos países de clima temperado. Mesmo no trabalho recente da Cepal, “Towards a Sustainable Bioeconomy in Latin America and the Caribbean”, as florestas tropicais não são decisivas na bioeconomia sustentável.


Para os nove países em cujos territórios encontra-se a maior floresta tropical do planeta - e sobretudo para o Brasil - esta ausência só pode ser tratada como um paradoxo. Pior, como trágica anomalia. A Amazônia possui 40% dos remanescentes de floresta tropical no mundo e 25% da biodiversidade terrestre, com 40 mil espécies de plantas. Sua rede fluvial (a maior do planeta), concentra mais espécies de peixes que qualquer outro sistema de rios. O carbono que ela armazena é equivalente a mais de dez anos das emissões globais de gases de efeito estufa.

Não basta impedir sua destruição, embora este seja o ponto de partida para que suas gigantescas riquezas sejam aproveitadas. Os países onde está o epicentro científico e tecnológico da bioeconomia global (Estados Unidos e Alemanha) possuem centros de pesquisa, empresas, movimentos sociais, organizações financeiras, em suma, uma rede diversificada de atores voltada a encontrar soluções para substituir energias fósseis e moléculas sobre as quais vão se apoiar algumas das mais notáveis inovações do Século XXI em alimentação, energia e produção de materiais.

Interromper a devastação, respeitar a cultura material e espiritual dos povos da floresta é apenas o ponto de partida para enfrentar um desafio maior que é a inclusão da Amazônia no radar das iniciativas e dos investimentos em bioeconomia. Esta inclusão não é importante apenas para a Amazônia e sim para o Brasil, pois representa a oportunidade de valorizar ativos dos quais o restante do mundo não dispõe e, por aí, reduzir a distância que nos separa da inovação científica e tecnológica global.

A discussão pública sobre este tema ganhou novo ímpeto com os artigos publicados pelo ministro Luís Roberto Barroso em co-autoria com a professora Patrícia Perrone Campos Mello na “Folha de São Paulo” e na “Revista de Direito da Cidade”. O debate foi enriquecido pela carta pública que Denis Minev dirigiu a Barroso e Campos Mello1. Denis Minev conhece a Amazônia não só por estudá-la e nela ter exercido cargos públicos, mas por dirigir hoje uma das mais importantes redes de varejo do interior da região, a Bemol e por ter atuado como “investidor anjo” em diversos projetos.

Neste debate, não se trata de polir a “imagem” da Amazônia, como se houvesse recurso publicitário capaz de apagar o que os dados da devastação revelam. Trata-se sim de estabelecer as premissas de uma verdadeira estratégia para que ciência, tecnologia, informação e conhecimento sejam os vetores do uso dos recursos na região. O primeiro passo neste sentido consiste em levar a ciência a sério.

Como diz a carta de Minev, o mais importante centro de pesquisa da região, o Inpa, tem orçamento de R$ 50 milhões. Só a Universidade de Stanford conta com recursos de US$ 6,8 bilhões. O Brasil possui doutores vivendo na Amazônia e centros de pesquisa que poderiam fazer avançar muito o conhecimento e a utilização prática da sua biodiversidade, com base na melhor ciência. Mas não existe uma estratégia nacional nesta direção. É como se o país tivesse se habituado com a posição de fornecedor de commodities e renunciado a qualquer ambição de ter alguma importância na fronteira global da inovação.

Esta renúncia se traduz na tolerância com o status quo de ilegalidade que impera na região. Além da criminalidade, a ilegalidade se difunde de forma pervasiva por todo o tecido econômico da Amazônia e se ergue como obstáculo a iniciativas sustentáveis envolvendo atores diversificados. E a própria concepção predominante de infraestrutura na Amazônia hoje reflete a ambição míope de fortalecer as cadeias de valor menos promissoras da região e que, além de não gerar retorno expressivo aos que nela habitam, acabam sendo vetores de desmatamento.

Mais que meios de transportes de grãos e carnes, a Amazônia precisa de conexão de alta velocidade, de soluções sustentáveis para seus problemas de acesso a saneamento básico e incentivos a tecnologias modernas e descentralizadas para a geração de energia.

O Brasil democrático quer a Amazônia em pé. Os povos da floresta, os empresários responsáveis, os investidores com visão de futuro, as organizações ativistas e a cooperação internacional são os principais componentes de uma rede que só vai conseguir fazer jus ao que a Amazônia representa para o Brasil quando houver governantes que assumam a liderança de uma estratégia para que sejamos protagonistas da bioeconomia global.
Ricardo Abramovay

Nefasta gestão

A gestão de um episódio tão nocivo e de graves consequências sociais e econômicas como a covid-19 revelou ser uma tarefa complicadíssima para todos os Governos do mundo. A maior parte da comunidade internacional optou por medidas drásticas ―fundamentalmente o confinamento― para achatar a curva de contágios e mortes. Enquanto isso, outros Executivos, entre os quais se destacou em certo momento o do Reino Unido, escolheram uma atitude mais frouxa à espera de resultados. Também se viu como alguns Governos ―o Reino Unido volta a ser o exemplo― mudaram de estratégia quando ficou demonstrado que a utilizada não era eficaz. Por isso, é particularmente desconcertante a obstinação do presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, em minimizar o impacto de uma doença sobre a qual já não há dúvidas quanto ao seu custo, tanto em vidas como em termos econômicos. E o mesmo acontece com sua atitude de atacar e ridicularizar quem, com razão, adverte para o perigo e pede uma mudança de atitude.
Emanuele Del Rosso
Bolsonaro é um dos políticos mais negacionistas do mundo em relação à covid-19, e o Brasil ocupa a segunda posição em mortes em nível global, com mais de 67.000 óbitos confirmados. O outro grande negacionista é Donald Trump, e os EUA ostentam o triste recorde de mortos e contágios. O presidente brasileiro, além disso, evita constantemente os dados objetivos. Também é algo que ocorreu em outras latitudes antes que a doença chegasse ao Brasil. E a isso somou o hábito de se burlar dos estudos científicos e das instituições que os sustentavam. Como sinal disso, o Brasil está há mais de 50 dias sem ministro da Saúde. Entre abril e maio, dois titulares dessa pasta se demitiram sucessivamente por seu total desacordo com a atitude de Bolsonaro.

E, com este permanente desprezo governista por medidas mínimas de prudência, o próprio mandatário brasileiro anunciou ter contraído o novo coronavírus. Uma péssima notícia tanto do ponto de vista humano como institucional. Se, lamentável e indesejavelmente, a saúde de Bolsonaro piorar, será alterada tanto a ação do Governo brasileiro como a própria chefia do Estado num momento crítico em que o Brasil necessita urgentemente conter a pandemia, mitigar seus efeitos sociais e econômicos e encarar sua recuperação.

Sem necessidade de ser ele próprio vítima do contágio, Bolsonaro (65 anos), que continua afirmando que a doença não é tão grave e afeta sobretudo os idosos, deveria ter compreendido já há bastante tempo que sua gestão da pandemia é nefasta, que sua estratégia está causando um alto número de vítimas desnecessárias e provocando, além disso, um grave dano interno e externo ao país que preside. E tampouco parece ter compreendido que nunca é tarde para se corrigir.

Bolsonaro é o ciclone-bomba

Louco. Lunático. Psicopata. Sociopata. Genocida. Cruel. Esdrúxulo. Inepto. Ignorante. Insensível. Rastaquera. Rude. Machista. Homofóbico. Arrogante. Tirano. Desequilibrado. Inconveniente. Chulo. Insolente. Oco. Irascível. Mentiroso. Violento. Vingativo. Manipulador. Abominável. Bizarro. Perigoso. 

Um formidável conjunto de adjetivos, listados acima, tem sido associado ao presidente do Brasil ao longo de seu mandato por pessoas de diferentes idades, níveis de instrução e origens. Essas qualidades atingiram uma diversidade espantosa durante a pandemia, em dezenas de artigos na imprensa nacional e estrangeira.

B. é considerado hoje o pior líder do planeta no combate ao novo coronavírus. Pior do que Trump, segundo o Washington Post. Uma ameaça ambulante à vida humana e ambiental. E, portanto, à viabilidade comercial e econômica do Brasil como parceiro. B. não apenas corta água potável para os índios ou queima a Amazônia. Ele corta nosso oxigênio cultural e educacional. É o ciclone-bomba.


Percebam que não há nesses adjetivos duros nenhum viés ideológico. Não escrevi “fascista”. São falhas sobretudo de caráter, que não definem extrema direita ou extrema esquerda. 

O mais carinhoso adjetivo atribuído a B. foi o primeiro, o “tosco”, quando ainda só falava errado e se gabava de comer pão com leite condensado. Depois, o país condescendente o chamou de populista de direita. Mas populista costuma ter apoio de 70% e não 30%. Nem sei se continua popular em casa.

Coitada da Michelle. Em cerimônia do Dia Internacional da Mulher, ela precisou parar o discurso e se dirigiu a B.: “Psiu, eu estou falando. Posso continuar?” A primeira-dama prometia “um Brasil mais justo, seguro e inclusivo”. Imagino por que Michelle não aparece mais e, nas raras vezes, está de máscara. A pandemia mostrou a pior face de seu esposo. 

Você leu, Michelle, que o governo do B. se aliou à Arábia Saudita para vetar o termo “educação sexual” em resolução na ONU contra a discriminação de mulheres e meninas? E que o Brasil agora se opõe a citar “saúde sexual e reprodutiva” num texto de países africanos destinado a banir a mutilação genital feminina? Essa violência indizível atinge 3 milhões de meninas por ano. Cristã, como você se sente? Ou sua leitura se resume às fake news produzidas no Palácio?

Articulistas estrangeiros dizem sentir “pena, raiva e vergonha” pelo Brasil. Mesmo sem ser brasileiros. Citando o Juan Arias, do El País: “O que aflige Bolsonaro é algo muito mais grave, é uma doença da alma, uma doença sem cura. Alardeia ser católico, evangélico e se importar mais com a Bíblia do que com a Constituição. Deveria saber que nesses textos fica evidente que todos os pecados podem ser perdoados, menos o da soberba que pressupõe que a pessoa se coloca acima de Deus. O vírus de Bolsonaro é de um gênero diferente do que já contagiou milhões. O seu é diabólico”.

Se for verdade que contraiu o novo coronavírus e não virou apenas um mercador da cloroquina ou um miliciano da medicina, B. é inqualificável em seu comportamento na doença. Diz que “máscara é coisa de viado”, não dispensa assessores e aperta a mão de visitas constrangidas, segundo Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo. Age como homem-bomba, com a diferença de que não vai explodir junto porque não tem vocação para mártir.

B. não é homem-bomba. Repetindo: é o ciclone-bomba. O fenômeno, com rajadas impiedosas de vento que causaram estragos e mortes, é provocado pelo choque de massas. Se você não confiar na reação do STF e do Congresso, ao menos confie nos meteorologistas. O B. vai passar.

Brasil sem freio pro fundo


Como os EUA lucraram com tráfico de africanos escravizados para o Brasil

Com cerca de 450 africanos da região do rio Congo, a escuna norte-americana Mary E Smith foi a última a tentar desembarcar escravizados no Brasil. No dia 20 de janeiro de 1856, ela foi capturada em São Mateus, no Espírito Santo, em uma operação que deixou claro que a Lei Eusébio de Queiroz, aprovada em 1850 proibindo a entrada de escravos, de fato pretendia acabar com o tráfico de escravos no país. Antes dela, tratados assinados por pressão da Inglaterra após a Independência ficaram conhecidos como "leis para inglês ver", pois na prática as próprias autoridades locais eram coniventes com o contrabando.

Pesando 122 toneladas e com um valor estimado em US$ 15 mil dólares, a Mary E. Smith foi construída em Massachusetts especificamente para o tráfico negreiro. Antes mesmo de deixar Boston rumo à África, no dia 25 de agosto de 1855, a escuna chamou a atenção das autoridades britânicas e norte-americanas. Houve até uma tentativa de prisão na saída, mas o capitão, Vincent D. Cranotick, conseguiu expulsar os intrusos e partir.

Poucas embarcações do tráfico foram tão monitoradas quanto a Mary E. Smith. A Marinha no Rio de Janeiro, ao receber a correspondência dos EUA, alertou oficiais britânicos, brasileiros e americanos sobre a chegada iminente da escuna. Ao se aproximar da costa, foi abordada pelo navio de guerra Olinda e levada para Salvador, na Bahia.

A situação era preocupante. Majoritariamente jovens com entre 15 e 20 anos, os africanos padeciam de diversas doenças — nos 11 dias de viagem entre São Mateus e Salvador, mais 71 morreram. Quando os oficiais baianos condenaram a Mary E. Smith e levaram os sobreviventes para a cidade, a população teria entrado em pânico: desde agosto do ano anterior, Salvador enfrentava uma epidemia de cólera, e acreditava-se que a presença dos africanos doentes pioraria a situação. Mais africanos morreram nas semanas seguintes. No dia 14 de fevereiro, dos 213 que sobreviveram, 88 continuavam muito doentes, inclusive de cólera.

Entre 1831 e 1850, navios americanos corresponderam
a 58,2% de todo tráfico negreiro para o Brasil
O capitão também morreu na chegada da Mary E. Smith a Salvador, escapando da acusação por tráfico ilegal de escravos. No dia 30 de junho de 1856, 10 membros da tripulação foram julgados — destes, 5 eram cidadãos norte-americanos. As penas variaram de 3 a 5 anos de prisão, além do pagamento de uma multa de 200 mil réis (algo em torno de US$ 112 mil) para cada africano que teria entrado no Brasil.

A história da Mary E. Smith é simbólica não só por marcar o fim do tráfico de escravos no país, mas por indicar a participação dos Estados Unidos na atividade ilegal. Entre 1831 e 1850, navios construidos nos EUA corresponderam a 58,2% de todas as expedições negreiras com destino ao Brasil. Muitos deles não chegaram a usar a bandeira americana e foram comandados por traficantes de outras nacionalidades. A estimativa é de que tenham transportado quase 430 mil africanos — foi o Camargo, um brigue americano, aliás, que em 1852 desembarcou com sucesso os últimos escravizados no país.

Ao contrário dos africanos da Mary E. Smith, que foram emancipados e submetidos à tutela do Estado por 14 anos, os cerca de 500 que chegaram ao porto do rio Bracuí, na região de Angra dos Reis, não tiveram o mesmo destino. "Após desembarcarem, pela proximidade da Serra do Bananal onde havia plantações de café, os senhores começaram a escondê-los na senzala", diz a professora de História Martha Campos Abreu, da Universidade Federal Fluminense (UFF).

As autoridades locais chegaram a tentar reaver os escravizados, decretando pela primeira vez uma busca pelas fazendas, em uma demonstração do que estaria por vir com a Mary E. Smith. Mas a tentativa foi quase em vão: segundo a professora de História Beatriz Mamigonian, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), somente cerca de 70 foram recuperados. O comandante do brigue, Nathaniel Gordon, por sua vez, conseguiu escapar. Após atear fogo no Camargo, fugiu para os EUA — uma década depois, foi enforcado por sua participação no tráfico, único norte-americano a sofrer pena capital pelo crime.

Em 1896, o sociólogo W.E.B. Du Bois chamou a atenção para as relações entre os EUA e o Brasil no período do tráfico ilegal. "O tráfico americano de escravos finalmente passou a ser conduzido principalmente por capital dos Estados Unidos, em navios dos Estados Unidos, comandados por cidadãos dos Estados Unidos e sob a bandeira dos Estados Unidos", escreveu Du Bois.

Autor de O Sul mais distante: os Estados Unidos, o Brasil e o Tráfico de Escravos Africanos (Companhia das Letras, 2010), o historiador Gerald Horne engrossa o coro de críticos americanos ao papel do país na escravidão brasileira. "O governo brasileiro deveria buscar reparação, porque esses traficantes de escravos estavam violando as leis do Brasil e praticando uma atividade ilegal. O fato de que aconteceu 170 anos atrás não diminui a reclamação, não existe um estatuto de limitação na legislação internacional por crimes contra a humanidade, e o contrabando era um crime contra a humanidade", disse Horne em entrevista à BBC News Brasil. "Mas há relutância em trazer justiça para, pelo menos, os brasileiros que são descendentes dos escravos trazidos por navios norte-americanos."

O historiador da UFF Leonardo Marques, um dos maiores pesquisadores brasileiros da participação dos EUA na escravidão brasileira, aponta algumas ressalvas. Para Marques, os recursos norte-americanos estiveram mais presentes a partir de 1820, mas de forma indireta e ainda muito ligados a grupos específicos de contrabandistas portugueses. "Por muito tempo, acharam que eram americanos, mas hoje sabemos que muitos eram portugueses que chegaram a adquirir a cidadania para conduzir o tráfico", explica o professor, que teve a tese de doutorado sobre o assunto na Universidade Emory, The United States and the Transatlantic Slave Trade to the Americas 1776-1856, transformada em um livro publicado pela Yale Press em 2016.

O interesse nos Estados Unidos se dava por um conjunto de fatores. O primeiro era a qualidade das embarcações. Desde o período colonial, a região da Nova Inglaterra fortaleceu a tradição de construção naval, competindo com os próprios britânicos, e as guerras contra os colonizadores também contribuíram para o desenvolvimento dos barcos. "A qualidade deles era muito alta, eles eram a vela, mais rápidos, e aos poucos foram desbancando a própria frota britânica", conta Marques. Além de economizar tempo nas viagens, as embarcações eram consideradas capazes de despistar perseguidores da Marinha Britânica e piratas.

A bandeira americana era também uma das poucas imunes a vistorias a bordo. A partir de 1807, a Inglaterra começou a fechar o cerco contra o tráfico de escravos — mais do que razões humanitárias, havia diferentes interesses econômicos por trás da pressão, entre os quais criação de mercado consumidor para produtos industrializados. Embora internamente tanto abolicionistas quanto escravistas (que acreditavam já ter uma população de africanos interna suficiente e autossustentável) tenham concordado com as medidas, os EUA se recusaram a autorizar vistorias em seus barcos, acusando os britânicos de ferirem a soberania da ex-colônia.

Para os criminosos, a situação era perfeita: navios rápidos e com uma bandeira imune à fiscalização inglesa. Não à toa, conta Marques, no período havia várias companhias dos EUA que vendiam navios para traficantes no Rio de Janeiro. "No Jornal do Comércio, havia anúncios de navios como 'excelentes para transporte de escravatura'", diz o historiador.

A situação chegou a gerar alguns incidentes diplomáticos, dividindo as autoridades entre as que acreditavam que a venda dos barcos e o uso da bandeira era legítima, e os que achavam que não. Em 1844, Henry Wise foi nomeado ministro dos EUA no Brasil e, em conjunto com o cônsul George Gordon, buscou eliminar a bandeira do país do tráfico. Entre as medidas, passaram a enviar envolvidos no tráfico para serem julgados nos EUA e promoveram o desmantelamento de esquemas de cidadãos norte-americanos que vendiam ou fretavam embarcações para traficantes brasileiros.
Consumo financiado pela escravidão

Um dos esquemas envolvia a companhia Maxwell Wright & Co, que combinava duas atividades que acabaram interligadas ao longo da década de 1840: de um lado, vendiam os navios para traficantes de escravos; de outro, exportavam o café produzido pelos mesmos escravos de volta para os Estados Unidos, onde o mercado consumidor crescia. Neste sentido, observa Marques, a participação dos EUA na escravidão brasileira transcende a questão econômica. "A identidade nacional que estava sendo construída no país, do americano tomador de café em vez de chá, está amarrada com a escravidão", diz.

A professora Mamigonian, cuja pesquisa se concentra na abolição do tráfico e nas transformações da escravidão no século 19, complementa o raciocínio: "vemos um elemento muito próprio do capitalismo do século 19, quando a ascensão do consumo vai na contramão do abolicionismo." O problema, neste caso, não era restrito aos EUA. O próprio Reino Unido, que em 1833 aboliu a escravidão, continuou consumindo produtos brasileiros produzidos com mão de obra escrava e fornecendo itens industrializados para o comércio ilegal na África.

O crescimento do mercado consumidor para os produtos brasileiros, ao mesmo tempo em que vinculou os americanos ainda mais profundamente à escravidão no Brasil, corrobora a tese de que o tráfico existiria com ou sem a presença dos EUA. Em suas pesquisas, Marques observa que, embora uma cláusula no acordo entre EUA e Inglaterra permitindo a revista das embarcações possivelmente diminuiria a presença dos norte-americanos no tráfico, o controle da compra e venda de navios permaneceria ambíguo. Não à toa, traficantes portugueses acabaram criando suas próprias redes, principalmente em Nova York, adquirindo inclusive a cidadania do país.

A conclusão dos especialistas é que, enquanto houvesse demanda pelos produtos do trabalho escravo no mercado mundial e a escravidão se mantivesse um mercado lucrativo (um escravo comprado na África por US$ 40 valia em terras brasileiras algo entre US$ 400 a US$ 1.200, em torno de US$ 48 mil), haveria criminosos dispostos a manter o sistema ativo. Tanto é que, quando a captura do Mary E Smith finalmente sinalizou que o tráfico para Brasil não era mais um bom negócio, muitos traficantes voltaram as atenções para Cuba, que adotou medidas semelhantes somente em 1862.

O fim do tráfico nas Américas, por sua vez, só ocorreu de fato com a abolição da escravidão no Brasil, em 1888, último país do Ocidente a libertar africanos escravizados.

Liberdade vendida ao lixo

Hoje vendemos nossa liberdade de indivíduos pátrios por objetos perecíveis sem nenhum valor. Não tenho medo, enfim, do dano que possa ocorrer, porque o pior já está ocorrendo

É impossível acreditar em Bolsonaro

Quando Bolsonaro disse que não estava com Covid-19, em março, ninguém acreditou. Agora ele diz que está — e, claro, ninguém acredita de novo. Parece bobagem, mas só isso já bastaria para torná-lo inapto para o cargo em qualquer país minimamente funcional: um presidente em cuja palavra ninguém acredita nunca não tem condições de governar um país.

Aqueles famosos 30% não estão, claro, incluídos nesse “ninguém”. Eles acreditam. Mas eles também acreditam que o seu líder é boa pessoa, que a quantidade de milicianos envolvidos no assassinato de Marielle em torno da famiglia é simples coincidência e que Rodrigo Maia é comunista. Alguns acreditam até que a Terra é plana.

É muito sintomático que, quando a notícia se espalhou, nenhum jornal tenha tido confiança suficiente na fonte para afirmar que o presidente estava infectado. Em vez disso, o que se lia nas manchetes era “Bolsonaro diz que está com Covid-19”. Imaginem se na Alemanha ou na Nova Zelândia, governadas por mulheres de palavra, alguém precisaria tomar esse cuidado.

Quando a imprensa de um país não tem coragem de dar como verdadeira a declaração de um presidente a respeito da própria saúde, por qualquer motivo que seja, quem vai mal é o país.


As manchetes só mudaram quando o atestado foi exibido. E, ainda assim, muita gente — essa colunista y compris — continua não acreditando. Que valor tem um atestado em nome de Jair Messias Bolsonaro? Por que acreditar no atestado de um hospital que já aceitou fazer exames com nomes falsos? Em que circunstâncias foram feitos os exames anteriores? E em que circunstâncias foi feito o atual? Por que os resultados negativos foram ocultados por tanto tempo, e o resultado positivo foi exibido assim que saiu, com tanta festa?

Corta para o garoto-propaganda da cloroquina.

Acho que nunca antes na história deste país descemos tão baixo: um presidente da República fazendo o papel de charlatão oficial, apregoando uma droga equivocada, dando risada.

— Bem, estou aqui tomando a terceira dose da hidroxicloroquina. Tou me sentindo muito bem. Tava mais ou menos domingo, mal segunda-feira, hoje, terça, tou muito melhor do que sábado. Então, com toda a certeza, tá dando certo. Eu confio na hidroxicloroquina. E você?

Apesar do mal que ele já fez, apesar do mal que ele está fazendo e do mal que essa declaração ainda vai fazer, torço para que Bolsonaro se recupere.

Se ele estiver mesmo infectado, coisa na qual não acredito, como não acreditei antes que não estivesse, quero que tenha uma experiência Boris Johnson da doença: suficientemente didática para que saia do hospital convencido de que a Covid-19 não é apenas uma gripezinha, agradecendo aos médicos e enfermeiros pela sua vida e, sobretudo, tendo respeito pelo sofrimento e pela vida dos outros.

Torço para que fique bem e que mantenha o “histórico de atleta” para, um dia, responder pelos seus atos diante do Tribunal Internacional de Haia — o destino dos genocidas quando se faz Justiça no mundo.

Bolsonaro, fique em casa!

Caros brasileiros,

Bolsonaro esta com covid-19. E daí? Quando o presidente anunciou a infecção pelo vírus, tentou tranquilizar todo mundo: "Estou perfeitamente bem."

Se existe uma coisa da qual não se pode acusar o presidente é de falta de coerência. Com ou sem coronavírus, ele permanece o mesmo. Continua minimizando os efeitos da pandemia, mesmo depois de ser infectado.

É uma coerência impressionante, porém puramente negativa. É baseada na falta de tudo o que é importante para um bom governo: falta de responsabilidade, falta de empatia, falta de conhecimento, falta de sinceridade, falta de racionalidade, falta de educação, falta de tato, falta de atitude de estadista.

Essa coerência negativa é a marca registrada do governo Bolsonaro. E ela contribuiu definitivamente para a propagação da epidemia no Brasil. Mesmo com mais de 65 mil mortos pela covid-19, aposto aqui que Bolsonaro não vai mudar sua atitude.

Pelo contrário: ele vai continuar insistindo em uma narrativa de que está enfrentando o mal e a "histeria" em torno do combate à "gripezinha" – como ele se referiu à doença numa entrevista à Radio Bandeirantes em 16 de março deste ano.

"Se a economia afundar, afunda o Brasil. E qual o interesse dessas lideranças políticas? Se acabar a economia, acaba qualquer governo. Acaba o meu governo. É uma luta de poder."

Essa "luta de poder" causou uma tragédia política e econômica no Brasil. Mas Bolsonaro deve ir até o fim. E seus apoiadores vão segui-lo. Pois a cegueira ideológica não permite outra saída.

Só um pequeno detalhe: Bolsonaro pode se dar o luxo de manter uma postura tão radical. Afinal, ele terá o melhor tratamento médico possível. Para ele, com certeza não vai faltar leito na UTI, nem médicos e enfermeiros.

Mas para milhões de brasileiros, inclusive muitos dos seguidores do presidente, a situação é bem diferente. O vírus continua matando numa velocidade assustadora. E ele ataca especialmente pessoas vulneráveis, sem plano de saúde, que correm um risco ainda maior de contaminação, pois não podem trabalhar em casa.

"E daí!?" Os familiares dos mais de 65 mil mortos por covid-19 com certeza não falariam uma frase dessas no enterro dos seus entes queridos. "A vida continua" para eles de um modo bem diferente daquele que Bolsonaro sugere.

Para Bolsonaro, "a vida continua" na coerência negativa. Com ou sem coronavírus, ele não tem mais como fugir do caminho rumo ao abismo. Pois até o final do mandato não terá tempo suficiente para corrigir suas inúmeras decisões erradas e pedir perdão pelos inúmeros insultos e ofensas proferidos.

Para o Brasil, chegou a hora de decidir se o país vai continuar caminhando rumo ao abismo ao lado de seu presidente doente. Eu ficaria feliz se o presidente seguisse os conselhos dos seus médicos e ficasse em casa. Melhoras!
Astrid Prange de Oliveira