domingo, 16 de fevereiro de 2020

Brasil bota pra queimar


Tristeza não tem fim

“A felicidade do pobre parece/ A grande ilusão do carnaval/ A gente trabalha o ano inteiro/ Por um momento de sonho/ Pra fazer a fantasia/ De rei ou de pirata ou jardineira/ E tudo se acabar na Quarta-Feira.”

Os versos acima são da pungente A Felicidade, de Tom Jobim, e me voltaram à mente de forma recorrente nesta semana depois da fala de Paulo Guedes a respeito dos malefícios do real sobrevalorizado.


O ministro da Economia atravessou o samba e acabou por contribuir com uma fantasia candidata a hit do carnaval de 2020: além de reis, piratas e jardineiras, vem aí uma legião de empregadas com malas etiquetadas para a Disney.

Porque a tal “festa” das domésticas no exterior só é imaginável em blocos e carros alegóricos, uma vez que, ainda que o real estivesse na base do “um para um” com o dólar, não sobra dinheiro para a grande maioria dos empregados domésticos viajar.

Então, por que raios o homem mais importante do governo, aquele em quem o “deus mercado” aposta todas as fichas, a ponto de tapar o nariz para os despautérios do presidente e a incompetência gerencial em quase todas as outras áreas, se põe a fazer perorações sem nexo dia sim, outro também?

Talvez Guedes esteja percebendo que a pauta que idealizou para 2020 vai deslizando como a felicidade do pobre, e que a euforia com o “boom” da economia brasileira neste ano 2 da gestão Bolsonaro já passou antes mesmo da Quarta-Feira de Cinzas que anuncia a tristeza sem fim da música de Jobim.

Diante das dificuldades, o ministro viaja na maionese ao tentar fazer o jogo do contente da Pollyana. Sim, existem várias razões de teoria econômica para defender o dólar apreciado sobre o real. E nenhuma delas passa nem perto da fictícia festa das domésticas na Disney. Guedes sabe disso, percebeu por onde estava indo quando já era tarde demais e, em vez de encerrar a fala ali, se pôs a tentar emendá-la.

Não pode ser atribuída só à falta de tato retórico a reiteração de declarações atravessadas do ministro: ele está claramente pressionado e desgostoso com o ritmo dos seus projetos, e não pode culpar quem deveria.

Guedes imaginou que a tal linha de produção de reformas estaria mais azeitada neste ano. Depois de segurar a reforma administrativa, Bolsonaro começou 2020 enaltecendo sua urgência. Para, logo em seguida, engavetá-la de novo. E que aqui ninguém tente culpar sua fala comparando servidores a “parasitas”, outro meme instantâneo pela referência ao grande ganhador do Oscar deste ano. A má vontade com a reforma já havia sido replantada na cabeça do inseguro presidente pelos seus assessores palacianos, com os quais o titular da Economia vem se estranhando não é de hoje.

Sem poder mandar ao Congresso a reforma tributária que gostaria, com a administrativa engavetada, tendo de apagar incêndio de Bolsonaro com os governadores depois do ridículo “desafio” de zerar o ICMS dos combustíveis, tendo sido bucha de canhão em Davos para ouvir as críticas que deveriam ser destinadas ao colega do Meio Ambiente, Ricardo Salles, há de se convir que o Posto Ipiranga está numa fase “tristeza não tem fim”.

O duro é que a conjuntura internacional, com um surto do novo coronavírus cujos alcance e duração não são possíveis de estimar, e o calendário local, com eleições logo ali, não prenunciam que as coisas vão melhorar depois da Quarta-Feira. Dependerá da articulação política, que, por ser naturalmente desconjuntada, precisa da atuação direta de Guedes. Se ele não sair dessa maré braba, e rápido, a euforia da virada de ano terá sido como a felicidade do pobre. Ou das domésticas, que não conseguem viajar nem para Cachoeiro do Itapemirim, quem dirá para a Disney.

Alerta aos 'cristãos'

Não há razão para haver tanta miséria. Precisamos construir novos caminhos. Ter uma economia que faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da Criação e não a depreda
Papa Francisco

Não se enganem, nada disso é normal

Há quem prefira o autoengano. O governo hostiliza a imprensa, e o filho do presidente dá sequência a uma difamação sexista contra uma jornalista, da tribuna da Câmara. O presidente se cerca de militares da ativa. O ministro da Economia ofende grupos sociais. A Educação está sob o comando de um despreparado. Alguns ministros vivem em permanente delírio ideológico. Os indígenas são ameaçados pelo desmonte da Funai e pelo lobby da mineração e do ruralismo atrasado. Livros são censurados nos estados. A cultura é atacada. Há quem ache que o país não está diante do risco à democracia, apenas vive as agruras de um governo ruim. E existem os que consideram que o importante é a economia.

Existe mesmo uma diferença entre governo ruim e ameaça à democracia, mas, no caso, nós vivemos os dois problemas. As instituições funcionam mal até pela dificuldade de reagir a todos os absurdos que ocorrem simultaneamente. Quando um tribunal superior decide que uma pessoa que ofende os negros pode ocupar um cargo criado para a promoção da igualdade racial, é a Justiça que está funcionando mal. O Procurador-Geral da República, desde que assumiu, tem atuado como se fosse um braço do Executivo. O Supremo Tribunal Federal (STF) parece às vezes perdido no redemoinho de suas divergências.



A calúnia contra a jornalista Patrícia Campos Mello, da “Folha de S.Paulo”, foi cometida dentro do Congresso Nacional. O depoente de uma CPI praticou o crime diante dos parlamentares. Um deles, filho do presidente, reafirmou a acusação sexista. É mais um ataque à imprensa, num tempo em que este é o esporte favorito do presidente. Mas é também uma demonstração prática dos problemas do país. Alguém se sente livre para mentir e caluniar usando o espaço de uma comissão da Câmara e é apoiado por um parlamentar.

Não é normal que um general da ativa, chefe do Estado Maior do Exército, ocupe a Casa Civil, nem que o Planalto tenha apenas ministros militares e dois deles da ativa. Não é bom para as próprias Forças Armadas. Essa simbiose com o governo seria ruim em qualquer administração, mas é muito pior quando o chefe do Executivo cria conflitos com grupos da sociedade, divide a nação, faz constante exaltação do autoritarismo e apresenta projetos que ofendem direitos constitucionais. As Forças Armadas são instituições do Estado, com a obrigação de manter e proteger a Constituição. Deveriam preservar sua capacidade de diálogo com todo o país, neste momento de tão aguda fratura. O trauma da ruptura institucional comandada por generais é recente demais.

Não é normal que um governo estadual se sinta no direito de retirar das mãos de estudantes livros clássicos, um deles escrito pelo mestre maior da nossa literatura. A leitura de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, do genial Machado de Assis, precisa ser estimulada e não proibida. É tão despropositada a ideia de colocar livros em um índex que muitos reagem apenas com incredulidade e desprezo. O obscurantismo, a censura, o retrocesso são graves demais.

A economia nunca poderá ir bem num país enfermo. Não há uma bolha em que se possa isolá-la. Mesmo se houvesse essa capacidade de separação da realidade, é preciso entender que a economia não está nada bem. Se no mercado financeiro, se alguns líderes empresariais querem vender esse otimismo falso é porque têm interesses específicos. A verdade, que bons empresários e economistas lúcidos sabem, é que o mercado de trabalho exclui um número exorbitante de brasileiros, o país ainda tem déficit em suas contas, a alta excessiva do dólar cria distorções e a incerteza tem aumentado.

A crise econômica foi herdada por este governo, mas ele está cometendo o erro de subestimar os desafios. O ambiente de conflito constante com diversos grupos da sociedade, provocado pelo governo, esse clima de estresse permanente, não é bom para quem faz projetos de longo prazo no país. Quando o cenário de ruptura tem que ser considerado, os investidores se afastam.

Quem prefere o autoengano pode viver melhor no presente, mas deixa de ver os avisos antecedentes do perigo e, portanto, não se prepara para enfrentá-lo. Manter a consciência dos riscos é a atitude mais sensata em época tão difícil quanto a atual. Nada do que tem nos acontecido é normal.

Como o Brasil se compara com os países mais endividados do mundo

A dívida global atingiu um recorde histórico de US$ 253 trilhões (aproximadamente R$ 1 quatrilhão). E, entre os países da América Latina, o Brasil tem a maior dívida fiscal. Temos que nos preocupar?

Uma década de baixas taxas de juros facilitou o crédito a governos, empresas e indivíduos, elevando o endividamento a um nível gigantesco, equivalente a 322% do Produto Interno Bruto (PIB) global.

E, no atual contexto econômico, esse índice deve continuar crescendo, de acordo com uma pesquisa do Instituto de Finanças Internacionais (IIF, na sigla em inglês), uma associação global de instituições financeiras com sede em Washington.

O recorde foi impulsionado principalmente por empréstimos adquiridos por governos e empresas não financeiras. O problema é que, quanto mais altos os níveis de endividamento, maior o risco de inadimplência em qualquer ambiente econômico.

E embora não se vislumbre de uma recessão, a economia mundial não está passando pelo seu melhor momento. As expectativas de crescimento para 2020 são modestas, situando-se em torno de 2,5%, e supõem que não haverá uma escalada de atritos em nível comercial ou geopolítico.


Nesse contexto, o Banco Mundial alertou no início de janeiro sobre o risco de uma nova crise da dívida global, estimulando governos e bancos centrais a reconhecerem que taxas de juros historicamente baixas podem não ser suficientes para compensar outro colapso financeiro generalizado.

A análise baseia-se no fato de que, nos últimos 50 anos, houve quatro ondas de acumulação de dívida.

O último ciclo, iniciado em 2010, mostra "o maior, mais rápido e amplo aumento" da dívida global desde a década de 1970.

E um dado não animador é que as três ondas anteriores terminaram com crises financeiras que afetaram muitas economias em desenvolvimento e emergentes.

"A história das ondas passadas de acumulação de dívidas mostra que elas tendem a ter finais infelizes", escreveu Ayhan Kose, diretor do Grupo de Perspectivas do Banco Mundial.
Os dois grandes motores

Em entrevista à BBC Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC, Emre Tiftik, diretor de Pesquisas sobre Sustentabilidade do Instituto de Finanças Internacionais e principal autor do relatório Global Debt Monitor, diz que "o aumento da dívida global foi significativo e não há sinais de diminuição no futuro próximo".

Por trás deste fenômeno, explica, existem dois principais motores que imupulsionaram o aumento do endividamento: os Estados Unidos (pelo aumento da dívida fiscal e corporativa) e a China (pelo aumento da dívida de empresas não financeiras).

A dívida da China está se aproximando de 310% do seu PIB, um dos mais altos níveis de endividamento entre as economias emergentes.

Enquanto alguns economistas argumentam que o nível de endividamento do país asiático cresceu a uma taxa insustentável para sua economia, outros argumentam que, como a maior parte dessa dívida é de propriedade do Estado, ela ainda é administrável.

A partir de uma perspectiva global, Tiftik diz que altos níveis de endividamento aumentam as preocupações sobre como financiar a Agenda 2030 das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, que, entre seus 17 objetivos, inclui a redução da pobreza e a luta contra as mudanças climáticas.

"Estamos preocupados. Temos que encontrar os recursos para financiar obras de infraestrutura em países emergentes e de baixa renda", afirma.

Embora essa situação represente uma grande oportunidade para investidores, diz, países com pouca capacidade de endividamento podem enfrentar dificuldades para concluir trabalhos em áreas como energia, telecomunicações, transporte e fornecimento de água.
Os mais endividados da América Latina

Depois do Líbano (155% do PIB), o Brasil tem o maior endividamento público entre os países emergentes — o índice cresceu, segundo o IIF, de 62% do PIB em 2014 para 88% no ano passado.

"Infelizmente, não há nenhum sinal de declínio na relação dívida/PIB no curto e médio prazos: o endividamento geral do governo deve passar de 95% do PIB nos próximos três anos", diz Emre Tiftik.

De acordo com ele, a aprovação e a implementação efetiva da reforma da Previdência é essencial para conter o aumento da dívida pública "antes que ela se torne um fardo ainda maior para o Brasil".

Considerando o endividamento total (que inclui ainda empresas financeiras e não-financeiras, e pessoas físicas), o crescimento da dívida entre os emergentes se concentrou em dois países: Coreia do Sul e Chile.

Olhando para o cenário latino-americano, Tiftik diz que a Argentina conseguiu com êxito reduzir sua dívida em relação ao PIB. A Colômbia tem visto um declínio e a dívida mexicana permanece limitada.

Por outro lado, o Chile testemunhou um aumento significativo em seus níveis de endividamento, especialmente entre empresas não financeiras.

No entanto, o especialista não vê um grande motivo de preocupação.

O Chile tem um mercado de capitais relativamente robusto e, como é um país orientado para a exportação, explica ele, teve a oportunidade de receber mais capital do que o resto do mundo, além do disponível no mercado doméstico.

"Países como Chile e Coreia do Sul estão em uma posição segura", diz Tiftik. "Não é algo negativo."

"Se eu visse esse nível de dívida em outros países que não o Chile ou a Coreia do Sul, ficaria mais preocupado".
Cecilia Barría

Não há boa-fé na América

Lamento do timoneiro Simon Bolívar, há dois séculos, parece apropriado para nossos dias: “Não há boa-fé na América, nem entre os homens ,nem entre as nações. Os tratados são papéis, as Constituições não passam de livros, as eleições são batalhas, a liberdade é anarquia, e a vida um tormento”. O cotidiano nacional que o diga.

A desconfiança grassa, a boa-fé se esvai, as emboscadas se multiplicam. Matar? Coisa banal. A política é uma colcha de retalhos; partidos, fontes de negócios. Hoje, há 33, e mais um pouco serão 70. O governo vai trocando músicos de sua orquestra, convocando generais de grande expressão e mantendo seus dois pilares: o “Posto Ipiranga” pilota a economia e tem falas desastradas, enquanto o outro comanda a Justiça e a Segurança Pública, desviando-se de enfrentamentos. Olha para 2022, se não subir ao STF.


Ontem, petistas semeavam o ódio com o “nós e eles”. E o maestro Luiz Inácio glorificava: “Nunca se fez tanto na história no Brasil”. Não reconhece os desvios petistas nem a maior recessão da história, fruto do lulopetismo.

Hoje, bolsonaristas cultivam o refrão invertido “eles e nós”. O capitão desfralda a bandeira da “salvação do país contra a ameaça comunista”. Os Poderes vivem às turras. Dias Toffoli, presidente do STF, decidiu-se pela criação do “juiz de garantias” em 180 dias; o vice-presidente Luiz Fux suspendeu a pretensão por tempo indeterminado. O governo tinha urgência na reforma administrativa. Não tem mais. Na tributária, a briga é de cachorro grande. No Congresso, o desfile de falas e caricaturas se estenderá até o pleito sob o hino: “É dando que se recebe”.

A Constituição, amontoado gigantesco de detalhes, se presta a litígios e em muitos pontos não é obedecida, abrindo o espaço da impunidade e da desorganização. Vira letra morta.

As eleições deste ano prometem uma batalha renhida, com impropérios, fake news, calúnia, difamação, compra de votos (isso continuará), cooptação, distribuição de benesses. A política vira negócio – e que negócio! Aristóteles jamais imaginou que a arte de fazer o bem seria usada só para os bens de alguns. Milhões inundam cofres partidários.

A liberdade, esteio da democracia, transforma-se em baderna, com irresponsabilidade e invasão de espaços privados. Vituperar contra a imprensa torna-se prática de governantes (e também das oposições). O escopo libertário da Revolução Francesa parece fantasia. Dignidade e cidadania só para poucos. O inimigo, que era o Estado opressor, agora é o Estado coletor. Impostos e tributos sobem a montanha. A igualdade é uma quimera.

Os cárceres são escritórios de planejamento do tráfico de armas e de drogas. Balas perdidas matam sem parar. Milhares de leis são papéis rotos. A anomia ganha corpo. Os órgãos de controle e defesa social – MP, PF, AGU, entre outros – disputam poder. O desemprego fustiga quase 12 milhões de brasileiros. A Lava Jato perde força. Grupos continuam a se incrustar nas administrações federal, estadual e municipal para aumentar seu poder de fogo. A corrupção acabou? Nada. Diminuiu um tiquinho. O lamento de Bolívar está escrito em todos os cantos. Claro, sem falar da Venezuela, onde Maduro está caindo de podre.