quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Enquanto isso...

Esquerda errará mais se começar a briga para saber quem será o líder da oposição antes da autocrítica dos erros e a formulação de rumo para o futuro
Cristovam Buarque

Falta combinar com os eleitores

Há dois grandes obstáculos à expansão da economia brasileira. No macro, é o desajuste das contas públicas, com os déficits anuais e a dívida crescente. No micro, é o ambiente de negócios desfavorável à atividade das empresas.

Dentro do primeiro, o maior problema está na previdência, pública e privada, que gera déficits e desigualdades. No segundo, o principal entrave está no sistema tributário. As empresas pagam impostos elevados e gastam muito tempo, energia e dinheiro para pagá-los corretamente.


Há provas. Hoje, de cada 100 reais que o governo federal gasta, 50 vão para pagamento de aposentadorias e pensões. Há sete anos, eram 32 reais, ou 32% da despesa geral. E o sistema previdenciário não arrecada o dinheiro necessário para o pagamento dos benefícios. Resultado: o governo gasta cada vez mais com aposentadorias (e, portanto, cada vez menos com todos os demais serviços e investimentos) e usa a receita de outros impostos para financiar as aposentadorias.

No lado micro, a prova cabal está no extraordinário estudo do Banco Mundial, Fazendo Negócios, cuja versão 2018 foi divulgada ontem. Trata-se de avaliar a facilidade (ou dificuldade) para fazer negócios honestamente.

O Brasil até que melhorou. No ano passado, entre 190 países, estava na posição 125º, ou seja, na parte baixa da tabela. Na última versão, subiu para 109º, tendo melhorado na maior parte dos quesitos, como mais facilidade para abrir empresas. Mas no item “Pagando impostos”, não houve qualquer avanço. O Brasil continua na posição 184ª. Considerando que os seis últimos são países sem relevância, pode-se dizer com todas as letras: o Brasil tem o pior sistema tributário do mundo.

Mas o pior de tudo é que nada disso é novidade. Qualquer pessoa que lida com negócios sabe o inferno que é pagar impostos corretamente. Mais ainda, os temas, macro e micro, estão colocados há bastante tempo, de modo que as diversas soluções estão disponíveis.

Por exemplo, tem uma reforma da previdência prontinha para ser votada na Congresso. Não é a ideal, mas quebra um bom galho – garante uma economia de uns R$ 500 bilhões em dez anos. Está lá também um projeto de reforma tributária que simplifica bastante o sistema, reunindo vários impostos numa única guia.

Por que não se resolve?

Porque nos tem faltado um governo com clara maioria eleitoral e que tenha assumido essa agenda de reformas.

O governo Temer tentou boa parte dessa agenda e, de fato, avançou em pontos como o teto de gastos públicos e a reforma trabalhista. Mas faltaram votos e moral para continuar o serviço.

O futuro governo Bolsonaro tem os votos e promete colocar os corruptos à parte. Além disso, o futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, tem colocado uma agenda que faz inteiro sentido.

Primeiro de tudo, buscar o equilíbrio das contas públicas, começando pela principal fonte de desequilíbrio, o gasto previdenciário.

Tudo depende disso. Por exemplo: não adianta nada cortar todos os gastos se a previdência continua gerando déficits. Não adianta nada privatizar estatais e resgatar parte da dívida pública, o que permitiria reduzir juros, se a estrutura básica de gastos continuar gerando déficits. Seria matar uma dívida e começar outra.

Tem que ser tudo combinado. Por exemplo, começar o ajuste fiscal, com a reforma da previdência que está aí, e apoiar esse esforço com privatizações.

Tudo considerado, a agenda econômica do futuro governo está correta.

Porém, ah!, porém, essa agenda não foi claramente apresentada aos eleitores. Os milhões que votaram em Bolsonaro votaram pela reforma da previdência, essa que está no Congresso e que Paulo Guedes quer aprovada?

Ainda dá tempo. O presidente eleito tem a força das urnas. Mas ele precisa ir a público e dizer que tais e tais reformas são necessárias para a retomada do crescimento. Dizer claramente e convencer seus eleitores, e a sociedade, que esse é o caminho. Sem isso, não formará maioria no Congresso para votar as reformas.

Bolsonaro, o 'mito', derrotou a 'ideia' Lula

Desde 2013 que o demos (povo, em grego) bate à porta da kratia (governo), tentando fazer valer o preceito constitucional segundo o qual “todo poder emana do povo” (artigo 1.º, parágrafo único), mas só dá com madeira na cara. Então, em manifestações gigantescas na rua, a classe média exigiu ser ouvida e o poste de Lula, de plantão no palácio, fez de conta que a atendia com falsos “pactos” com que ganhou tempo. No ano seguinte, na eleição, ao custo de R$ 800 milhões (apud Palocci), grande parte dessa dinheirama em propinas, ela recorreu a um marketing rasteiro para manter a força.

Na dicotomia da época, o PSDB, que tivera dois mandatos, viu o PT chegar ao quarto, mas numa eleição que foi apertada, em que o derrotado obtivera 50 milhões de votos. Seu líder, então incontestado, Aécio Neves, não repetiu o vexame dos correligionários derrotados antes – Serra, Alckmin e novamente Serra – e voltou ao Senado como alternativa confiável aos desgovernos petistas.

Mas jogou-a literalmente no lixo, dedicando-se à vadiagem no cumprimento do que lhe restava do mandato. O neto do fundador da Nova República, Tancredo Neves, deixou de ser a esperança de opção viável aos desmandos do PT de Lula e passou a figurar na galeria do opróbrio ao ser pilhado numa delação premiada de corruptores, acusado de se vender para fazer o papel de oposição de fancaria. O impeachment interrompeu a desatinada gestão de Dilma, substituída pelo vice escolhido pelo demiurgo de Garanhuns, Temer, do MDB, que assumiu e impediu o salto no abismo, ficando, porém, atolado na própria lama.

Foi aí que o demos resolveu exercer a kratia e, donas do poder, as organizações partidárias apelaram para a força que tinham. Garantidas pelo veto à candidatura avulsa, substituídas as propinas privadas pelo suado dinheiro público contado em bilhões do fundo eleitoral, no controle do horário político obrigatório e impunes por mercê do Judiciário de compadritos, elas obstruíram o acesso do povo ao palácio.

Em janeiro, de volta pra casa outra vez, o cidadão sem mandato sonhou com o “não reeleja ninguém” para entrar nos aposentos de rei pelas urnas. Chefões partidários embolsaram bilhões, apostaram no velho voto de cabresto do neocoronelismo e pactuaram pela impunidade geral para se blindarem. Mas, ocupados em só enxergar seus umbigos, deixaram que o PSL, partido de um deputado só, registrasse a candidatura do capitão Jair Bolsonaro para conduzir a massa contra a autossuficiência de Lula, ladrão conforme processo julgado em segunda instância com pena de 12 anos e 1 mês a cumprir.

O oficial, esfaqueado e expulso da campanha, teve 10 milhões de votos a mais do que o preboste do preso.

Na cela “de estado-maior” da Polícia Federal em Curitiba, limitado à visão da própria cara hirsuta, este exerceu o culto à personalidade com requintes sadomasoquistas e desprezo pela sorte e dignidade de seus devotos fiéis. Desafiou a Lei da Ficha Limpa, iniciativa popular que ele sancionara, transformou um ex-prefeito da maior cidade do País em capacho, porta-voz, pau-mandado, preposto, poste e, por fim, portador da própria identidade, codinome, como Estela foi de Dilma na guerra suja contra a ditadura.

Essa empáfia escravizou a esquerda Rouanet ao absurdo de insultar 57 milhões, 796 mil e 986 brasileiros que haviam decidido livrar-se dele de nazistas, súditos do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, que não se perca pelo nome, da Alemanha de Weimar: a ignorância apregoada pela arrogância.

Com R$ 1,2 milhão, 800 vezes menos do que Palocci disse que Dilma gastara há quatro anos, oito segundos da exposição obrigatória contra 6 minutos e 3 segundos de Alckmin na TV, carregando as fezes na bolsa de colostomia e se ausentando dos debates, Bolsonaro fez da megalomania de Lula sua força, em redes sociais em que falou o que o povo exigia ouvir.

A apoteose triunfal do “mito” que derrotou a “ideia” produziu efeitos colaterais. Inspirou a renovação de 52% da Câmara; elegeu governadores nos três maiores colégios eleitorais; anulou a rasura na Constituição com que Lewandowski, Calheiros e Kátia permitiram a Dilma disputar e perder a eleição; e forçou o intervalo na carreira longeva de coveiros da república podre.

O nostálgico da ditadura, que votou na Vila Militar, tem missões espinhosas a cumprir: debelar a violência, coibir o furto em repartições públicas e estatais, estancar a sangria do erário em privilégios da casta de políticos e marajás e seguir os exemplos impressos nos livros postos na mesa para figurarem no primeiro pronunciamento público após a vitória, por live. Ali repousavam a Constituição e um livro de Churchill, o maior estadista do século 20.

Não lhe será fácil cumprir as promessas de reformas, liberdade e democracia, citadas na manchete do Estado anteontem. Vai enfrentar a oposição irresponsável, impatriótica e egocêntrica do presidiário mais famoso do Brasil, que perdurará até cem anos depois de sua morte. E não poderá fazê-lo com truculência nem terá boa inspiração nos ditadores que ornam a parede do gabinete que ocupou. Sobre Jânio e Collor, dois antecessores que prometeram à cidadania varrer a corrupção e acabar com os marajás, tem a vantagem de aprender com os erros que levaram o primeiro à renúncia e o outro ao impeachment.

Talvez o ajude recorrer a boas cabeças da economia que trabalharam para candidatos rivais, como os autores do Plano Real e a equipe do governo Temer, para travarem o bom combate ocupando o “posto Ipiranga” sob a batuta de Paulo Guedes. Poderá ainda atender à cidadania se nomear bons ministros para o Supremo Tribunal Federal e levar o Congresso a promover uma reforma política que ponha fim a Fundo Partidário, horário obrigatório e outros entulhos da ditadura dos partidos, de que o povo também quer se livrar em favor da desejável igualdade.

Brasil no Halloween


Saio das eleições de domingo como se tivesse levado uma surra

Saio das eleições do último domingo como se tivesse levado uma surra. Que começou no primeiro turno. O equilíbrio do centro desapareceu, e a radicalização só me trouxe sofrimento. Os dois candidatos mais rejeitados conseguiram chegar ao segundo turno. Por outro lado, mais de 43 milhões de brasileiros não compareceram às urnas, votaram em branco ou anularam o voto. Mas a melancolia, leitor, que quase me abateu, tem outras causas. Uma delas está na senectude, que às vezes desperta inevitável (e às vezes doloroso) acerto de contas. Pertenço a uma geração que viveu muitas crises ao longo dos anos, mas que também conheceu, na vida pública, exemplos realmente admiráveis.

Um importante alerta: os eleitores que elegeram Jair Bolsonaro não podem permitir que o populismo da esquerda, que quase acabou com o país, seja trocado pelo populismo da direita, que é irmão gêmeo do primeiro. Contra isso, farei o que posso: rezar, rezar e rezar…

A democracia tem a chance de melhorar. Políticos, jornalistas e publicitários terão que se reciclar. A revolução tecnológica trouxe o cidadão comum para dentro do ringue eleitoral. Enfim: os meios para ganhar eleição têm que ser revistos. Tudo será difícil daqui para a frente. A reforma política, que sempre foi a mais importante, agora é inadiável. Há “políticos” que foram justiçados. Há, porém, os injustiçados. Estes foram pegos pelo imprevisível tsunami que desabou sobre o país.

Volto ao risco do populismo da direita, outro caminho seguro para o autoritarismo. O recente espetáculo eleitoral, belo por sua própria natureza, poderá terminar feio. Basta que Jair Bolsonaro não consiga vestir a casaca de presidente e continue a dizer o que sempre disse como oficial de artilharia e/ou como parlamentar por 28 anos.

É tudo muito curioso. Se não houvesse a fatídica facada em Juiz de Fora, o resultado das eleições talvez fosse outro. Quando poderia exibir suas qualidades, mas igualmente seus defeitos, o cruel atentado transformou o capitão da reserva em mito, enquanto, de fato, grande parte de seus eleitores apenas buscava alguém que fosse contra o PT. Ou contra o sistema, que teve no PT seu incentivador. O PT traiu a si próprio. Insistiu na tese de que é o único detentor da verdade histórica.

Jair Bolsonaro, ironicamente, talvez conscientemente, adotou na campanha o repto do ex-presidente Lula, representado pela frase “eles contra nós”, dita vezes sem conta em reuniões petistas espalhadas pelo país. Valeu-se dessa sugestão e conseguiu “unir os diferentes para derrotar os contrários”. O feitiço virou contra o feiticeiro. Todavia, imprudentemente, fez dos adversários verdadeiros inimigos, em desrespeito ao velho e bom regime democrático. E dificultou a espinhosa missão que terá pela frente – a de unir e pacificar o país de norte a sul.

Esse estado de espírito, que logo após a vitória pareceu que poderia tornar-se permanente, não pode prevalecer. O sucesso do presidente eleito depende dessa árdua e complexa missão. Felizmente, são bons os sinais em seu primeiro discurso: “Este governo será defensor da democracia, da Constituição e da liberdade”. E ainda explicou: “Não é a palavra vã de um homem. É um juramento a Deus”.

Tenho hoje, como tive ontem, o direito de sonhar com um país menos injusto. Desejo, ardentemente, que meus filhos, mas, sobretudo, meus netos, possam viver em permanente paz, distantes das ideologias que transformam seres humanos em autênticos autômatos.

Acreditemos no país, leitor!

A saída, onde a saída?

Acreditamos saber que existe uma saída, mas não sabemos onde está. Não havendo ninguém do lado de fora que nos possa indicá-la, devemos procurá-la por nós mesmos. O que o labirinto ensina não é onde está a saída, mas quais são os caminhos que não levam a lugar algum
Norberto Bobbio

Ovos quebrados

Isaiah Berlin (1909-1997), um dos mais lúcidos e originais pensadores do nosso tempo, usa essa figura dos ovos que quebramos quando queremos fazer um omelete. Essa comida que seria maior, melhor ou mais magnificente do que seus humildes componentes – um pobre ovo frito!

Um omelete é como uma poesia de um Manuel Bandeira ou de um Fernando Pessoa, essas poderosas máquinas de combinar palavras para conduzir o coração à indagação e ao arrebatamento. Na linguagem comum, as palavras nos servem mas, estruturadas pelo poeta, elas nos enternecem e englobam, tal como ocorre quando comemos um delicioso omelete.


Quem já quebrou um ovo, sabe que tal gesto – como, aliás, tudo o que é humano – requer um mínimo de determinação e firmeza. Eu não sou um bom quebrador de ovos. Não porque me falte coragem, mas porque – a alma comparativa do antropólogo social que tenho dentro de mim – me obriga a duvidar dos omeletes perfeitos. Todo projeto social com finalidades bem marcadas e certezas plenas – da Proclamação da República ao carnaval (sem esquecer o Holocausto, a Revolução Francesa e a Russa) são omeletes e, como tal, exigem o “sacrifício” de muitos ovos.

Conforme aprendi com Isaiah Berlin, quanto mais existe certeza no projeto, mesmo quando eles são insanos como propostas de solução final para todos os males que nos afligem – da fome, das doenças, do desemprego caudado pelada corrupção como meio de controle político –, mais se precisa de ovos e, como diz Berlin, mais ilusório se torna o omelete.

Os fins e os meios nem sempre combinam e, como diz Berlin, são contraditórios. Muita liberdade promove abuso e opressão; muita igualdade faz com os lobos comam as ovelhas; muita escravidão e desigualdade agenciam tolerância com injustiças e, pior que isso, com uma justiça seletiva e calculista à qual tem sempre um olho aberto para salvar certos ovos e quebrar apenas os mais fracos ou dos que seriam dos nossos inimigos, embora se saiba que não há omeletes sem ovos!

*

Ele deixou a zona eleitoral onde quebrou o ovo a que tinha direito. Encontrou um amigo que lhe diz um tanto aliviado: finalmente terminou... Agora, é ver o resultado. A sorte está lançada, como diria Júlio Cesar (o amigo é professor de História Antiga). Ele replicou: nada disso! Agora, vamos ao bom ou mau omelete. Mas – disse o meu amigo com ênfase – que deve ser produzido pensando em todos...

*

Os ovos são quebrados e o omelete jamais sai como aquele feito por mamães. Nada é perfeito e pensar que pensar que se pode chegar à perfeição é como botar um chifre na cabeça de um cavalo. Cada solução, como cada governo, resolve certos problemas e satisfaz certos grupos, mas seus instrumentos (eu quase dizia, seus ovos) resolvem e promovem outros problemas. O mundo social não é estático e tentar amarrá-lo foi o objetivo dos despotismos que comecemos tão bem no Brasil.

Não há resposta única para a busca de um razoável bem-estar coletivo, conforme a antropologia tem mostrado. Em todo lugar, a ideia da harmonia é respondida de modo diverso. O problema é imaginar que, para além do bom senso que promove a equanimidade, existem respostas únicas e exclusivas para tais questões e que o nosso partido as conhecem com a mesma certeza com a qual se quebra um ovo. Os bolos soam e os omeletes desandam. Eis a ironia que transforma o projeto de liquidar a pobreza em corrupção.

Isaiah Berlin diz: “Se você estiver convencido de que existe uma solução para todos os problemas humanos e de que alguém possui uma visão de uma sociedade que pode se concretizar apenas seguindo certos passos por vez, você e seus seguidores necessariamente garantirão que nada no caminho atrapalhe o trajeto em direção ao suposto paraíso na ter”.

*

O final da eleição – esse ritual que legitima um novo governo a ser rigorosamente governado por seus eleitores tem a receita do encontro dos iniciandos com os iniciadores –, o povo comum que vota e aqueles a quem atribuímos o direito, o dever e honra de administrar por tempo determinado o bem comum.

Escolher é ser livre. Escolher usando os mesmo instrumentos é ser igual. Preservemos esse omelete como uma prova viva do poder de escolher sem coações. E que o nosso primeiro gesto seja o de substituir a negação pela equanimidade.
Roberto DaMatta

Oposição leal

Se a preocupação de todos os protagonistas da eleição concluída no domingo era preservar a democracia, como dizem ter, então a primeira atitude a tomar desde já é não apenas comprometer-se a respeitar o resultado das urnas, mas principalmente a exercer bem e com serenidade o papel que lhes caberá ao longo do próximo mandato presidencial – seja como governo, seja como oposição –, de modo a privilegiar exclusivamente o interesse maior do País.

Isso significa não somente que o vencedor da eleição não pode tratar a oposição como inimiga, como a oposição precisa ter claro que seu papel é o de eventualmente contestar medidas propostas e adotadas pelo governo, e com as quais não concorda, e propor alternativas, e não acabar com o País. Ou seja, a oposição precisa ser leal com o Brasil e com seu eleitor, que não lhe conferiu um mandato político para sabotar o governo e agravar uma crise que já foi longe demais. Afinal, não há democracia se o diálogo entre forças políticas antagônicas está interditado por definição.

É preciso que, de parte a parte, haja consciência do enorme desafio a superar nos próximos tempos, e que um eventual insucesso do governo eleito nessa empreitada pode comprometer o futuro do País por décadas. Não é possível que o interesse particular deste ou daquele partido e deste ou daquele líder político se sobreponha à tarefa essencial de tirar o Brasil dessa profunda barafunda econômica, política e moral.

Não dá mais para apostar na surrada estratégia do “quanto pior, melhor”, porque o resultado quase certamente será um retrocesso inaudito, cujas maiores vítimas serão os mais pobres – dependentes de um Estado cada vez menos capaz de fornecer os serviços mais básicos aos cidadãos. Se é da defesa das classes menos favorecidas que se trata, como sugeriam os discursos inflamados de quase todos os políticos nessa eleição, então é preciso assumir a responsabilidade de trabalhar em conjunto para tirar o País do atoleiro.

Nenhum partido ou movimento que se diz interessado no bem-estar do povo pode se furtar a participar dessa empreitada. O clima de crispação da campanha eleitoral sugere que será muito difícil, se não impossível, alcançar algum consenso entre governo e oposição, mas é justamente em momentos desafiadores como esse que os líderes políticos verdadeiramente comprometidos com o País e com sua gente precisam se apresentar e articular as bases mínimas para um acordo nacional.

Os atores que protagonizarão o jogo político nos próximos tempos precisam recuperar o sentido da negociação democrática, em que se respeita a opinião alheia como legítima, posto que igualmente chancelada nas urnas.

É necessário mitigar urgentemente o clima de fim de mundo que parece ter tomado conta do debate nacional. Numa atmosfera deletéria dessas, a perspectiva de qualquer acordo, inclusive em temas comezinhos, torna-se remota. Esquece-se da natureza essencialmente transitória dos entendimentos políticos; tudo se torna definitivo e irredutível. Perdeu-se, entre uma baixaria e outra, a capacidade de fazer concessões para alcançar um consenso ao menos momentâneo, em vista do bem maior. A lamentável campanha eleitoral – em que os contendores se acusaram mutuamente de preparar uma ditadura – chegou ao fim e o País não pode ficar cindido pelo clima da eleição.

A democracia é uma preciosa conquista dos brasileiros, que decerto não concederão ao próximo presidente e àqueles que lhe farão oposição delegação para prejudicar ainda mais o País. Ao contrário do que pode parecer, é possível encontrar pontos de convergência para encaminhar as reformas e outras medidas tão necessárias para a superação da crise.

Para isso, o primeiro passo é descer do palanque. Há muito tempo, infelizmente, as questões mais importantes para o País têm sido decididas tendo em vista somente a próxima eleição, o que dificulta muito a formulação de políticas de Estado – isto é, que transcendem partidos e interesses paroquiais. Os mandatários que assumirão as rédeas do País a partir do ano que vem, no governo e na oposição, precisam ter ciência de que não se faz uma democracia apenas com palavras de ordem. Lealdade e cooperação – é isso o que a Nação espera de seu corpo político.