quinta-feira, 12 de janeiro de 2017
O Brasil só tem conserto por inteiro
Não nos deu nem 24 horas de ilusão este 2017!
Passados 25 anos do Carandiru, eis-nos “evoluídos” para o massacre anárquico e randômico entre iguais. Não há mais autoridade estabelecida, nem dentro da hierarquia desse Estado que engole a chantagem corporativa sem piar, nem nos territórios livres dos presídios “de segurança máxima”, de que ele acaba trancado para fora, onde tudo eventualmente se afoga em sangue.
São as duas faces de uma mesma moeda. O crime organizado é a objetividade ultrarradicalizada. Os caminhos entre decisão e execução são diretos e retos como a trajetória das balas e o fio dos facões. O Estado brasileiro, refém das corporações do funcionalismo, é a última expressão de um jogo de sombras multicentenário. Nada ali é o que parece, cada passo de cada processo é um Everest a ser vencido.
Um não é páreo para o outro.
O terreno sempre foi fértil. Menos de 2% dos assassinos têm sido julgados e condenados no País, dos 60 mil homicídios por ano. O crime máximo, o crime irreversível, a desgraça irremediável repete-se 164 vezes por dia, 365 vezes por ano, mas para os seus autores há sempre remédio. Eles estarão de volta às ruas em cinco ou seis anos, em média; 70% voltarão para o cárcere depois de matar e desgraçar irremediavelmente outra vez, mas o Estado que não consegue habilitar as crianças que se lhe entregam virgens seguirá impávido, tomando como exclusiva a “vocação reabilitadora” dos tugúrios aos quais recolhe suas bestas-feras.
“Prendemos muito e mal” ou soltamos muito e mal? Enquanto debatemos essa momentosa questão, os 98% de assassinos impunes tratam de se impor ao nosso favelão continental pelo marketing da brutalidade. No Brasil Real, que não sai no jornal, não se tem ou se deixa de ter razão. Está-se vivo ou se está morto.
Nesse meio tempo, o mundo foi e nós ficamos. O PT coseu o Estado à faca e deu a mão às Farc. “La revolución” saltou do Caribe para as selvas da Colômbia, rolou Solimões abaixo, subiu os morros de fuzil na mão e agora jaz, aos pedaços, nas caçambas do IML. O poder da droga é filho da droga do poder. Do pacotinho do morro para as festas dos “famosos”, o nosso Estado imunodeficiente à corrupção, blindado contra a deseleição e aparelhado por um funcionalismo eternamente “estável”, único fiscal de si mesmo, ensejou o salto para a condição de “hub” global de distribuição de “commodities” alcaloides e fornecimento de armas para o Oriente Médio. E se a família está na droga, se não há certo nem errado, se não é clara a linha que separa o direito à diferença da dissolução, não há limite. O tamanho da brutalidade é o tamanho do poder que se disputa. Narcos mexicanos, Estado Islâmico... são estes os tempos...
Aqui fora é difícil definir quem está preso, quem está solto, mas salvação mesmo só pelo silêncio, sob as asas da facção ou... pelo concurso público. Todo mundo sabe, ninguém diz. Nós normalizamos a anormalidade. Esse nosso modo tão renitentemente decidido de esquartejar a “narrativa” do nossa drama é mais sinistro que os fatos. Tudo parece sempre estar desligado de tudo. No Congresso segue imperturbável o comércio com que se disputa a prerrogativa de presidir a venda de indulgência plenária às agruras da competição mundial e da insegurança econômica, que mantém todos os que não alcançam uma no inferno. Os doutos juristas das nossas cinco Justiças de recursos sem fim cobram o “devido processo legal” especificamente desenhado para não ter fim, todo ele “transitado em julgado”, para tirar o crime das ruas. Os advogados “progressistas” clamam contra a desumanidade da superlotação das prisões, mas criminalizam (sim, cri-mi-na-li-zam!!!) a advocacia “pro bono” e só se movem por dinheiro. As unidades “da Federação”, criadas nem pela História, nem pela economia, mas pela cissiparidade do agente patológico que nos parasita a política, afastam de si os cálices sucessivamente esvaziados e balem por mais. Não há R$ 10 bilhões para deter o horror. Mas entre a “impopularidade” da guerrinha televisionada da porta da Assembleia Legislativa do Rio em defesa dos 70% de aumento real arrancados à miséria do Brasil e os banhos de sangue nas prisões dos Estados falidos não há um minuto de hesitação. O poder sabe quem tem a força. Com 100 presos despedaçados e 12 milhões de empregos ainda insepultos, lá vão 53% de aumento “por produtividade” para os estranguladores de empresas da Receita Federal e da “Justiça do Trabalho”, a guarda pretoriana do “custo Brasil”. E com escárnio, batendo o pau na mesa: “Mesmo para os aposentados, mesmo para os pensionistas”!
Já é muito tarde e pode ser tarde demais. O Brasil só tem conserto por inteiro. Nada entrará nos eixos a menos que tudo entre nos eixos. O Estado não conseguirá entrar nas penitenciárias dominadas pelo crime se não conseguir entrar nos enclaves corporativos que mantém indevassáveis. Não há como instilar-lhe funcionalidade sem impor-lhe a lei do merecimento. Não há como impor-lhe a lei do merecimento sem o fim da estabilidade perpétua.
Não se restabelecerá a segurança pública, dentro e fora dos presídios, antes que se restabeleça a segurança econômica. E não se restabelecerá a segurança econômica antes que se estabeleça a igualdade perante a lei.
O Brasil não se redimirá substituindo pessoas dentro do “sistema”. É preciso colocar o “sistema” inteiro sob nova direção. Inverter os vetores de todas as forças que atuam sobre ele. Reconstruir a partir do zero a cadeia de cumplicidades que o põem em movimento.
A lei não imperará sobre os que hoje isenta a menos que deixe de ser escrita e executada exclusivamente por eles. A chave comutadora está na conquista dos direitos de referendo das leis dos Legislativos e “recall” (“cassação”, “retomada”) dos mandatos eletivos por iniciativa popular a partir da instância municipal e dela para cima.
Só a dependência inverte a cadeia das lealdades e põe todos os interesses apontados para a mesma direção. O resto é poesia.
Passados 25 anos do Carandiru, eis-nos “evoluídos” para o massacre anárquico e randômico entre iguais. Não há mais autoridade estabelecida, nem dentro da hierarquia desse Estado que engole a chantagem corporativa sem piar, nem nos territórios livres dos presídios “de segurança máxima”, de que ele acaba trancado para fora, onde tudo eventualmente se afoga em sangue.
São as duas faces de uma mesma moeda. O crime organizado é a objetividade ultrarradicalizada. Os caminhos entre decisão e execução são diretos e retos como a trajetória das balas e o fio dos facões. O Estado brasileiro, refém das corporações do funcionalismo, é a última expressão de um jogo de sombras multicentenário. Nada ali é o que parece, cada passo de cada processo é um Everest a ser vencido.
Um não é páreo para o outro.
O terreno sempre foi fértil. Menos de 2% dos assassinos têm sido julgados e condenados no País, dos 60 mil homicídios por ano. O crime máximo, o crime irreversível, a desgraça irremediável repete-se 164 vezes por dia, 365 vezes por ano, mas para os seus autores há sempre remédio. Eles estarão de volta às ruas em cinco ou seis anos, em média; 70% voltarão para o cárcere depois de matar e desgraçar irremediavelmente outra vez, mas o Estado que não consegue habilitar as crianças que se lhe entregam virgens seguirá impávido, tomando como exclusiva a “vocação reabilitadora” dos tugúrios aos quais recolhe suas bestas-feras.
“Prendemos muito e mal” ou soltamos muito e mal? Enquanto debatemos essa momentosa questão, os 98% de assassinos impunes tratam de se impor ao nosso favelão continental pelo marketing da brutalidade. No Brasil Real, que não sai no jornal, não se tem ou se deixa de ter razão. Está-se vivo ou se está morto.
Aqui fora é difícil definir quem está preso, quem está solto, mas salvação mesmo só pelo silêncio, sob as asas da facção ou... pelo concurso público. Todo mundo sabe, ninguém diz. Nós normalizamos a anormalidade. Esse nosso modo tão renitentemente decidido de esquartejar a “narrativa” do nossa drama é mais sinistro que os fatos. Tudo parece sempre estar desligado de tudo. No Congresso segue imperturbável o comércio com que se disputa a prerrogativa de presidir a venda de indulgência plenária às agruras da competição mundial e da insegurança econômica, que mantém todos os que não alcançam uma no inferno. Os doutos juristas das nossas cinco Justiças de recursos sem fim cobram o “devido processo legal” especificamente desenhado para não ter fim, todo ele “transitado em julgado”, para tirar o crime das ruas. Os advogados “progressistas” clamam contra a desumanidade da superlotação das prisões, mas criminalizam (sim, cri-mi-na-li-zam!!!) a advocacia “pro bono” e só se movem por dinheiro. As unidades “da Federação”, criadas nem pela História, nem pela economia, mas pela cissiparidade do agente patológico que nos parasita a política, afastam de si os cálices sucessivamente esvaziados e balem por mais. Não há R$ 10 bilhões para deter o horror. Mas entre a “impopularidade” da guerrinha televisionada da porta da Assembleia Legislativa do Rio em defesa dos 70% de aumento real arrancados à miséria do Brasil e os banhos de sangue nas prisões dos Estados falidos não há um minuto de hesitação. O poder sabe quem tem a força. Com 100 presos despedaçados e 12 milhões de empregos ainda insepultos, lá vão 53% de aumento “por produtividade” para os estranguladores de empresas da Receita Federal e da “Justiça do Trabalho”, a guarda pretoriana do “custo Brasil”. E com escárnio, batendo o pau na mesa: “Mesmo para os aposentados, mesmo para os pensionistas”!
Já é muito tarde e pode ser tarde demais. O Brasil só tem conserto por inteiro. Nada entrará nos eixos a menos que tudo entre nos eixos. O Estado não conseguirá entrar nas penitenciárias dominadas pelo crime se não conseguir entrar nos enclaves corporativos que mantém indevassáveis. Não há como instilar-lhe funcionalidade sem impor-lhe a lei do merecimento. Não há como impor-lhe a lei do merecimento sem o fim da estabilidade perpétua.
Não se restabelecerá a segurança pública, dentro e fora dos presídios, antes que se restabeleça a segurança econômica. E não se restabelecerá a segurança econômica antes que se estabeleça a igualdade perante a lei.
O Brasil não se redimirá substituindo pessoas dentro do “sistema”. É preciso colocar o “sistema” inteiro sob nova direção. Inverter os vetores de todas as forças que atuam sobre ele. Reconstruir a partir do zero a cadeia de cumplicidades que o põem em movimento.
A lei não imperará sobre os que hoje isenta a menos que deixe de ser escrita e executada exclusivamente por eles. A chave comutadora está na conquista dos direitos de referendo das leis dos Legislativos e “recall” (“cassação”, “retomada”) dos mandatos eletivos por iniciativa popular a partir da instância municipal e dela para cima.
Só a dependência inverte a cadeia das lealdades e põe todos os interesses apontados para a mesma direção. O resto é poesia.
Esse protofascismo que defende a morte dos presos no Brasil
“É vergonhoso viver num país que não honra sequer os seus condenados”. A afirmação é dura, pois equivaleria a viver num país ou numa sociedade de mentalidade fascista com relação ao grave e dramático problema dos presídios e sua violência. A afirmação foi feita pelo maior antropólogo vivo brasileiro, Roberto DaMatta, na sua última coluna em O Globo.
As matanças de presos no início deste ano, perpetradas nas penitenciárias de Manaus e Roraima, com um saldo de 91 detentos mortos, decapitados e esquartejados pelas diferentes facções rivais que nelas convivem, revelou, de fato, o subconsciente fascista de boa parte da população, em todos os níveis sociais, simbolizado nesta frase: “Bandido bom é bandido morto”.
Chegaram a expressá-la publicamente tanto políticos como simples cidadãos, que não só não parecem ter se comovido com a tragédia humana dos mortos e das famílias, mas também chegaram a justificá-la e a defendê-la. Às vezes, até a aplaudi-la.
Escutei até pessoas de grande sensibilidade cultural e humana, justificarem que em certos locais a policial, quando prende um assaltante ou estuprador, o execute sem mais escrúpulos
O governador do Amazonas, José Melo, chegou a dizer que entre os presos sacrificados brutalmente “não havia santos”. E o então secretário nacional da Juventude do Governo Temer, Bruno Júlio, já afastado do cargo, afirmou que “tinham que fazer uma chacina por semana”.
No que diz respeito às pessoas comuns, basta atualmente tomar um ônibus ou entrar num bar para escutar as queixas sobre a presidenta do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia, que pediu indenização às famílias dos presos mortos por não terem sido protegidos pelo Estado. As redes sociais estão repletas de indignas aprovações das chacinas.
“E quem é que indeniza as famílias das vítimas perpetradas por esses presos quando estavam em liberdade?”, gritava um senhor, de classe média, tentando contagiar com sua indignação os outros passageiros do ônibus, conseguindo apenas o beneplácito dos presentes.
Talvez a chave desse substrato fascista que DaMatta condena, dessa atitude de deixar de se preocupar com o outro e de chegar até o ódio contra os presos, com os quais ninguém se preocupa, nem que sejam tratados pior que animais, esteja nesse excesso de violência com que o brasileiro, sobretudo nas grandes cidades, é obrigado a viver todos os dias.
Um só exemplo: os 36.000 assaltos no Rio durante outubro passado. “As pessoas saem todo dia para trabalhar pensando que podem ser roubadas ou até assassinadas”, dizia-me uma professora do ensino médio de São Paulo que já foi assaltada três vezes.
Tenho escutado pessoas, até mesmo de grande sensibilidade cultural e humana, justificando o fato de que, em certos lugares, a polícia, ao prender um assaltante ou estuprador, execute-o sem maiores escrúpulos e sem se preocupar em entregá-lo à Justiça, “que o acabará soltando”.
Nunca vou me esquecer da declaração de José Eduardo Cardozo quando era ministro da Justiça de Dilma Rousseff. Confessou que ele, pessoalmente, preferiria “perder a vida a passar anos num presídio do Brasil”. E ele era, naquele momento, o responsável pelos mais de meio milhão de presos que vivem em presídios superlotados e perigosos. A pergunta era óbvia: “O que ele fazia para mudar a situação?” Vemos hoje a resposta na situação infernal que os reclusos vivem, uma situação que, ao que parece, nem as autoridades imaginavam.
Moro há quase 20 anos neste país. Sei que a situação de suas cadeiras é comparável à de muitos outros países do mundo. Mas é certo que, quando o assunto é índice de violência, com 60.000 homicídios por ano, o Brasil ganha de qualquer um. E os brasileiros sofrem isso na própria carne. E o Estado, governo após governo, é mudo ou ineficiente.
Há um traço do Brasil que DaMatta não aborda, mas que talvez explique também muitas coisas. Comprovei isso quando cheguei aqui, vindo da Europa. Não entendia por que me exigiam um monte de documentos de todo tipo para fazer qualquer coisa. Ficava surpreso com a função dos cartórios, com sua imponente burocracia.
Foi minha mulher, brasileira, que me explicou: “Você precisa entender que a ideia que o Estado tem do cidadão comum é que é um bandido em potencial. Você é que tem que demonstrar que não é.”
Ao contrário de outros países mais maduros democraticamente, o Estado aqui exige que você prove que não é um criminoso. Onde está então a presunção de inocência? A de que você é uma pessoa decente, que não engana, não rouba nem mente até que se demonstre o contrário?
O Estado está tão acostumado a ver os cidadãos como possíveis transgressores que ele mesmo se transforma, tantas vezes, em um elemento de violência oficial. E se para ele todos somos possíveis ladrões ou assassinos, o que pensará da população carcerária? Para que tantos escrúpulos com essas pessoas? Que apodreçam aí. E se puderem se matar entre si, será menos trabalho para o Estado, que não precisará abrir longos e dispendiosos processos penais para eles.
E se muitos desses detentos, ainda não julgados, forem inocentes? Para os políticos e governos, essas são apenas considerações de almas piedosas. Eles, que sabem como pensa a maioria da sociedade sobre os direitos humanos dos presos, sabem que sua defesa “não dá votos”, como me confessava candidamente um deputado bem conhecido.
No entanto, do ponto de vista humano, nada justifica essa atitude de cunho fascista que a sociedade respira e que explica esse desprezo e essa vontade de vingança contra os presos.
A filósofa e escritora Márcia Tiburi, autora, entre muitas outras obras, de Como Conversar com Um Fascista (Record), analisou muito bem a sombra que todos temos dentro de nós. Essa sensação de que “sou alguém se transformo o outro em ninguém”. Parodiando o “cogito ergo sum” do filósofo francês René Descartes, poderíamos dizer: “humilho, logo existo”. Isso nos leva a nos considerarmos vítimas, quando, no fundo, somos todos carrascos em potencial.
Se o fascismo pressupõe o desinteresse pelo outro e o poder para solapar os direitos humanos desse outro, é fácil chegar a lhe negar até a existência e se sentir livre para humilhá-lo.
Se o outro é o espelho em que nos olhamos, não é difícil projetarmos nele, conscientes ou não, essa sombra que habita até os melhores.
A diferença está entre considerar isso normal ou lutar para nos desfazermos do fantasma, e aceitar que, talvez, não sejamos potencialmente melhores do que aqueles que desprezamos, tememos e preferiríamos aniquilar.
As matanças de presos no início deste ano, perpetradas nas penitenciárias de Manaus e Roraima, com um saldo de 91 detentos mortos, decapitados e esquartejados pelas diferentes facções rivais que nelas convivem, revelou, de fato, o subconsciente fascista de boa parte da população, em todos os níveis sociais, simbolizado nesta frase: “Bandido bom é bandido morto”.
Chegaram a expressá-la publicamente tanto políticos como simples cidadãos, que não só não parecem ter se comovido com a tragédia humana dos mortos e das famílias, mas também chegaram a justificá-la e a defendê-la. Às vezes, até a aplaudi-la.
Escutei até pessoas de grande sensibilidade cultural e humana, justificarem que em certos locais a policial, quando prende um assaltante ou estuprador, o execute sem mais escrúpulos
O governador do Amazonas, José Melo, chegou a dizer que entre os presos sacrificados brutalmente “não havia santos”. E o então secretário nacional da Juventude do Governo Temer, Bruno Júlio, já afastado do cargo, afirmou que “tinham que fazer uma chacina por semana”.
“E quem é que indeniza as famílias das vítimas perpetradas por esses presos quando estavam em liberdade?”, gritava um senhor, de classe média, tentando contagiar com sua indignação os outros passageiros do ônibus, conseguindo apenas o beneplácito dos presentes.
Talvez a chave desse substrato fascista que DaMatta condena, dessa atitude de deixar de se preocupar com o outro e de chegar até o ódio contra os presos, com os quais ninguém se preocupa, nem que sejam tratados pior que animais, esteja nesse excesso de violência com que o brasileiro, sobretudo nas grandes cidades, é obrigado a viver todos os dias.
Um só exemplo: os 36.000 assaltos no Rio durante outubro passado. “As pessoas saem todo dia para trabalhar pensando que podem ser roubadas ou até assassinadas”, dizia-me uma professora do ensino médio de São Paulo que já foi assaltada três vezes.
Tenho escutado pessoas, até mesmo de grande sensibilidade cultural e humana, justificando o fato de que, em certos lugares, a polícia, ao prender um assaltante ou estuprador, execute-o sem maiores escrúpulos e sem se preocupar em entregá-lo à Justiça, “que o acabará soltando”.
Nunca vou me esquecer da declaração de José Eduardo Cardozo quando era ministro da Justiça de Dilma Rousseff. Confessou que ele, pessoalmente, preferiria “perder a vida a passar anos num presídio do Brasil”. E ele era, naquele momento, o responsável pelos mais de meio milhão de presos que vivem em presídios superlotados e perigosos. A pergunta era óbvia: “O que ele fazia para mudar a situação?” Vemos hoje a resposta na situação infernal que os reclusos vivem, uma situação que, ao que parece, nem as autoridades imaginavam.
Moro há quase 20 anos neste país. Sei que a situação de suas cadeiras é comparável à de muitos outros países do mundo. Mas é certo que, quando o assunto é índice de violência, com 60.000 homicídios por ano, o Brasil ganha de qualquer um. E os brasileiros sofrem isso na própria carne. E o Estado, governo após governo, é mudo ou ineficiente.
Há um traço do Brasil que DaMatta não aborda, mas que talvez explique também muitas coisas. Comprovei isso quando cheguei aqui, vindo da Europa. Não entendia por que me exigiam um monte de documentos de todo tipo para fazer qualquer coisa. Ficava surpreso com a função dos cartórios, com sua imponente burocracia.
Foi minha mulher, brasileira, que me explicou: “Você precisa entender que a ideia que o Estado tem do cidadão comum é que é um bandido em potencial. Você é que tem que demonstrar que não é.”
Ao contrário de outros países mais maduros democraticamente, o Estado aqui exige que você prove que não é um criminoso. Onde está então a presunção de inocência? A de que você é uma pessoa decente, que não engana, não rouba nem mente até que se demonstre o contrário?
O Estado está tão acostumado a ver os cidadãos como possíveis transgressores que ele mesmo se transforma, tantas vezes, em um elemento de violência oficial. E se para ele todos somos possíveis ladrões ou assassinos, o que pensará da população carcerária? Para que tantos escrúpulos com essas pessoas? Que apodreçam aí. E se puderem se matar entre si, será menos trabalho para o Estado, que não precisará abrir longos e dispendiosos processos penais para eles.
E se muitos desses detentos, ainda não julgados, forem inocentes? Para os políticos e governos, essas são apenas considerações de almas piedosas. Eles, que sabem como pensa a maioria da sociedade sobre os direitos humanos dos presos, sabem que sua defesa “não dá votos”, como me confessava candidamente um deputado bem conhecido.
No entanto, do ponto de vista humano, nada justifica essa atitude de cunho fascista que a sociedade respira e que explica esse desprezo e essa vontade de vingança contra os presos.
A filósofa e escritora Márcia Tiburi, autora, entre muitas outras obras, de Como Conversar com Um Fascista (Record), analisou muito bem a sombra que todos temos dentro de nós. Essa sensação de que “sou alguém se transformo o outro em ninguém”. Parodiando o “cogito ergo sum” do filósofo francês René Descartes, poderíamos dizer: “humilho, logo existo”. Isso nos leva a nos considerarmos vítimas, quando, no fundo, somos todos carrascos em potencial.
Se o fascismo pressupõe o desinteresse pelo outro e o poder para solapar os direitos humanos desse outro, é fácil chegar a lhe negar até a existência e se sentir livre para humilhá-lo.
Se o outro é o espelho em que nos olhamos, não é difícil projetarmos nele, conscientes ou não, essa sombra que habita até os melhores.
A diferença está entre considerar isso normal ou lutar para nos desfazermos do fantasma, e aceitar que, talvez, não sejamos potencialmente melhores do que aqueles que desprezamos, tememos e preferiríamos aniquilar.
O ódio na política está tornando mais difícil a convivência social
Houve tempo, aqui, em nosso país, que os adversários políticos não passavam de simples adversários. Não raras vezes, eram amigos, vizinhos ou colegas de universidade. Alguns, famosos, eram até compadres. Disputavam o mesmo colégio eleitoral, derramavam-se em discursos sectários, faziam oposição ferrenha, mas deixavam a porta aberta ao bom diálogo. É claro que havia exceções. Em alguns municípios, sobretudo nos cafundós de Minas, onde mandava o velho coronel, havia disputa acirrada. Acontecia violência verbal e, às vezes, física, mas isso era exceção. Os casos são conhecidos de nossa literatura política.
A ditadura civil-militar tornou a convivência entre as pessoas mais difícil. Contraditoriamente, porém, foi da democratização para cá que as relações pioraram. Desculpem-me meus amigos petistas, mas parte do PT, sobretudo nos últimos 13 anos e no pico de poder, contribuiu para essa deterioração. A frase “nós contra eles” foi muito usada por seus mais importantes dirigentes. O ex-presidente Lula, em inúmeros momentos, teve a insensatez de pronunciá-la. Isso só poderia provocar a intolerância, além de despertar o ressentimento e o ódio – os dois ingredientes que alimentam os radicais da esquerda e da direita.
Hoje, porém, a coisa anda mais braba ainda. O bate-papo descontraído sobre política, tão comum em passado recente, até mesmo entre os profissionais de imprensa, está com os dias contados. A análise política, então, em qualquer meio de comunicação social, além de suas naturais dificuldades, se tornou um risco. As críticas estão dando lugar às agressões. Ninguém escuta. Cada um sabe mais do que o outro ou se acha mais esperto do que outro. O bate-papo descontraído, ou a simples troca de ideias, se não contar com ajuda de mediador, corre o risco de terminar em ofensas mútuas, quando não aos sopapos. Nem em família se fica livre dessa violência. Briga-se por dá cá aquela palha.
Contribuiu, também, para a degeneração das relações entre políticos a difusão das novas mídias digitais proporcionadas pela internet. São ferramentas que servem ao bem, mas também podem servir ao mal. Mas a falta de educação, origem do respeito, que grassa entre todas as classes, sem distinção (os professores são suas maiores vítimas), talvez seja a principal causadora desse ambiente desagradável. Essa falta de urbanidade se tornou ainda mais evidente, pois qualquer cidadão se acha no direito de expor, por meio de seu celular, e sem se preocupar com o uso inadequado das palavras, o que realmente pensa acerca de qualquer assunto. A privacidade acabou. Foi para as cucuias.
A violência extrapolou, e, com a eleição recente de Donald Trump (uma experiência que o mundo logo conhecerá), surgiram os que, como se não bastassem nossos problemas internos, resolveram adotar posições radicais tanto de um quanto de outro lado (rs, rs, rs).
Na Câmara Federal, na disputa por sua presidência (vide charge do cartunista Chico), a arma é a tesoura. A briga não é em defesa da instituição, nem do povo, mas do próprio ego. Ninguém se lembra da Lava Jato, das últimas chacinas ou de nossas masmorras, mas tão somente do que poderá obter amanhã em proveito próprio.
O Brasil é um país violento. Armados até os dentes, estão em campo “coxinhas” e “petralhas”. A cordialidade do homem brasileiro, na verdade, nunca existiu, nem mesmo para Sérgio Buarque de Holanda. Seu “homem cordial”, que confunde o público com o privado e tira proveito de tudo, nada tem de polido ou bondoso.
A ditadura civil-militar tornou a convivência entre as pessoas mais difícil. Contraditoriamente, porém, foi da democratização para cá que as relações pioraram. Desculpem-me meus amigos petistas, mas parte do PT, sobretudo nos últimos 13 anos e no pico de poder, contribuiu para essa deterioração. A frase “nós contra eles” foi muito usada por seus mais importantes dirigentes. O ex-presidente Lula, em inúmeros momentos, teve a insensatez de pronunciá-la. Isso só poderia provocar a intolerância, além de despertar o ressentimento e o ódio – os dois ingredientes que alimentam os radicais da esquerda e da direita.
Contribuiu, também, para a degeneração das relações entre políticos a difusão das novas mídias digitais proporcionadas pela internet. São ferramentas que servem ao bem, mas também podem servir ao mal. Mas a falta de educação, origem do respeito, que grassa entre todas as classes, sem distinção (os professores são suas maiores vítimas), talvez seja a principal causadora desse ambiente desagradável. Essa falta de urbanidade se tornou ainda mais evidente, pois qualquer cidadão se acha no direito de expor, por meio de seu celular, e sem se preocupar com o uso inadequado das palavras, o que realmente pensa acerca de qualquer assunto. A privacidade acabou. Foi para as cucuias.
A violência extrapolou, e, com a eleição recente de Donald Trump (uma experiência que o mundo logo conhecerá), surgiram os que, como se não bastassem nossos problemas internos, resolveram adotar posições radicais tanto de um quanto de outro lado (rs, rs, rs).
Na Câmara Federal, na disputa por sua presidência (vide charge do cartunista Chico), a arma é a tesoura. A briga não é em defesa da instituição, nem do povo, mas do próprio ego. Ninguém se lembra da Lava Jato, das últimas chacinas ou de nossas masmorras, mas tão somente do que poderá obter amanhã em proveito próprio.
O Brasil é um país violento. Armados até os dentes, estão em campo “coxinhas” e “petralhas”. A cordialidade do homem brasileiro, na verdade, nunca existiu, nem mesmo para Sérgio Buarque de Holanda. Seu “homem cordial”, que confunde o público com o privado e tira proveito de tudo, nada tem de polido ou bondoso.
Colapso da verdade
A verdade naufragou junto com a cultura. Tragédias de nosso tempo. Tempos novos virão e ambas serão recuperadas, mas isso não acontecerá no nosso tempo. Até pelo fato de que, como disse a rainha de Copas para Alice, na continuação de Alice no País das Maravilhas, “neste lugar precisamos correr ao máximo para permanecermos no mesmo lugar”.
Muitos andam ansiosos com a falta de qualidade das informações que circulam por aí, turbinadas pelo uso maciço da internet. É sintoma de uma espécie de “apagão” a partir do excesso de informações desqualificadas. Quanto a isso, a questão mais evidente no momento é que houve, de forma deliberada e comprovada, manipulação de informações destinadas a influir nos resultados eleitorais norte-americanos do ano passado.
Imaginem o vexame? A nação mais poderosa tecnologicamente se deixou ser manipulada “midiaticamente”. A ponto de se considerar que tais manipulações afetaram o resultado das eleições no país. Em consequência, instalou-se um debate sobre como controlar o fluxo de informações falsas, em especial no período eleitoral. Não será suficiente.
As redes sociais propiciaram a circulação de notícias de uma forma nunca antes possível. E, com ela, a possibilidade de se expressar ódio e amor e ser validado ou contestado por seus seguidores. Esse processo, porém, não é isento. É possível comprar seguidores e “likes” e promover matérias para que elas ganhem notoriedade. A fama, no limite, pode ser comprada e turbinada. Perguntem aos russos.
Com o passar do tempo, como disse Marcel Proust, tudo que é mentira vira verdade. Só que, na atualidade, o tempo passa rápido demais. E quando vamos checar se era mentira o que virou verdade, seus efeitos já se tornaram irreversíveis.
O escritor Contardo Calligaris aponta que, no âmbito das redes sociais, devemos lutar pela existência de limites claros entre a liberdade de expressão e a ocorrência de ameaças. Concordo. O problema é que, muitas vezes, não sabemos reconhecer a verdade antes mesmo de ela se tornar ou não uma ameaça.
O Facebook anunciou sete iniciativas para tratar do tema. Entre elas, o desenvolvimento de sistemas mais eficientes de detecção de notícias falsas, estabelecendo-se mecanismos de checagem, a fim de tornar mais fácil a denúncia de sua existência. É um começo.
Apela-se, inclusive, para a criação do que alguns chamam de programas de alfabetização midiática. Outros demandam a criação de selos de garantia de autenticidade de notícia. Ambas as iniciativas são bem-vindas e devem ser implementadas. Mas são apenas paliativas.
Infelizmente, as iniciativas, de modo geral, são fadadas ao fracasso. Em especial em países como o Brasil. Se o caso é grave nos Estados Unidos, imaginem aqui. A raiz do problema está no ambiente cultural em que vivemos. Nos Estados Unidos, apesar de graves problemas, a educação ainda é muito melhor do que no Brasil.
Aqui, muitas vezes, não há a mínima preocupação com a produção de conteúdos de qualidade nem com a criação de uma atitude mais reflexiva sobre como navegar no mundo do noticiário intenso. Na verdade, não sabemos como lidar com o problema. E podemos cair em soluções antigas e autoritárias, por exemplo, ao optar pelo bloqueio de sites ou ao promover conteúdos ideologicamente contaminados.
Ao passar pelo aeroporto internacional de Porto Seguro, na Bahia, reparei que não existia mais uma antiga banca de jornal e uma livraria que estavam à disposição dos passageiros. Pensei comigo: será essa a medida do valor da cultura em nosso país? Uma banca de revistas e jornais não pode ser viável em um aeroporto que recebe voos diários de São Paulo, Belo Horizonte, Brasília e Salvador, além de voos internacionais na alta temporada?
Ainda nessa linha, uns amigos nostálgicos levantaram dois fatos incontestáveis. Primeiro: a maior parte do repertório do programa The Voice Brasil é de músicas antigas. Somente aqui e ali aparece uma música nova e quase sempre de qualidade sofrível. Segundo: é risível a comparação entre a lista das músicas mais ouvidas em 2016 e em 1983. A lista de 1983 continha extravios naturais do gosto popular, mas incluía doses relevantes de Lulu Santos, Fagner, Tim Maia, Police, Maria Bethânia, Billy Preston, entre outros. Já a de 2016…
O nosso déficit educacional e cultural é o obstáculo mais grave, entre todos os outros, para lidarmos com o admirável mundo novo. Isso porque pulamos do analfabetismo para a internet direto, sem construir uma base cultural sólida. Como criar uma população alfabetizada midiaticamente, que saiba discernir a verdade da mentira a tempo de impedir que ocorram manipulações? Não será fácil.
Muitos andam ansiosos com a falta de qualidade das informações que circulam por aí, turbinadas pelo uso maciço da internet. É sintoma de uma espécie de “apagão” a partir do excesso de informações desqualificadas. Quanto a isso, a questão mais evidente no momento é que houve, de forma deliberada e comprovada, manipulação de informações destinadas a influir nos resultados eleitorais norte-americanos do ano passado.
Imaginem o vexame? A nação mais poderosa tecnologicamente se deixou ser manipulada “midiaticamente”. A ponto de se considerar que tais manipulações afetaram o resultado das eleições no país. Em consequência, instalou-se um debate sobre como controlar o fluxo de informações falsas, em especial no período eleitoral. Não será suficiente.
As redes sociais propiciaram a circulação de notícias de uma forma nunca antes possível. E, com ela, a possibilidade de se expressar ódio e amor e ser validado ou contestado por seus seguidores. Esse processo, porém, não é isento. É possível comprar seguidores e “likes” e promover matérias para que elas ganhem notoriedade. A fama, no limite, pode ser comprada e turbinada. Perguntem aos russos.
Com o passar do tempo, como disse Marcel Proust, tudo que é mentira vira verdade. Só que, na atualidade, o tempo passa rápido demais. E quando vamos checar se era mentira o que virou verdade, seus efeitos já se tornaram irreversíveis.
O Facebook anunciou sete iniciativas para tratar do tema. Entre elas, o desenvolvimento de sistemas mais eficientes de detecção de notícias falsas, estabelecendo-se mecanismos de checagem, a fim de tornar mais fácil a denúncia de sua existência. É um começo.
Apela-se, inclusive, para a criação do que alguns chamam de programas de alfabetização midiática. Outros demandam a criação de selos de garantia de autenticidade de notícia. Ambas as iniciativas são bem-vindas e devem ser implementadas. Mas são apenas paliativas.
Infelizmente, as iniciativas, de modo geral, são fadadas ao fracasso. Em especial em países como o Brasil. Se o caso é grave nos Estados Unidos, imaginem aqui. A raiz do problema está no ambiente cultural em que vivemos. Nos Estados Unidos, apesar de graves problemas, a educação ainda é muito melhor do que no Brasil.
Aqui, muitas vezes, não há a mínima preocupação com a produção de conteúdos de qualidade nem com a criação de uma atitude mais reflexiva sobre como navegar no mundo do noticiário intenso. Na verdade, não sabemos como lidar com o problema. E podemos cair em soluções antigas e autoritárias, por exemplo, ao optar pelo bloqueio de sites ou ao promover conteúdos ideologicamente contaminados.
Ao passar pelo aeroporto internacional de Porto Seguro, na Bahia, reparei que não existia mais uma antiga banca de jornal e uma livraria que estavam à disposição dos passageiros. Pensei comigo: será essa a medida do valor da cultura em nosso país? Uma banca de revistas e jornais não pode ser viável em um aeroporto que recebe voos diários de São Paulo, Belo Horizonte, Brasília e Salvador, além de voos internacionais na alta temporada?
Ainda nessa linha, uns amigos nostálgicos levantaram dois fatos incontestáveis. Primeiro: a maior parte do repertório do programa The Voice Brasil é de músicas antigas. Somente aqui e ali aparece uma música nova e quase sempre de qualidade sofrível. Segundo: é risível a comparação entre a lista das músicas mais ouvidas em 2016 e em 1983. A lista de 1983 continha extravios naturais do gosto popular, mas incluía doses relevantes de Lulu Santos, Fagner, Tim Maia, Police, Maria Bethânia, Billy Preston, entre outros. Já a de 2016…
O nosso déficit educacional e cultural é o obstáculo mais grave, entre todos os outros, para lidarmos com o admirável mundo novo. Isso porque pulamos do analfabetismo para a internet direto, sem construir uma base cultural sólida. Como criar uma população alfabetizada midiaticamente, que saiba discernir a verdade da mentira a tempo de impedir que ocorram manipulações? Não será fácil.
E sobra lama
Três poderes harmônicos demais e pouco independentes
Não causa surpresa a carona oferecida ao ministro Gilmar Mendes pelo presidente Michel Temer. A escolha dos integrantes do Supremo Tribunal Federal obedece a pressupostos que atendem diretamente os interesses e conveniências do Planalto e do Congresso. O presidente da República decide quem deseja nomear, o Senado finge que sabatina, o escolhido é aprovado e desta forma está criado o vínculo entre os Três Poderes, absolutamente sólido, eu fica ainda mais robustecido porque o Congresso aprova os reajustes dos três Poderes e o Supremo garante a “legalidade” dos penduricalhos que elevam ainda mais a remuneração da cúpula do serviço público, criando acréscimos ao teto constitucional.
Podemos aceitar que os salários nababescos que já recebem, ainda sejam acrescidos de penduricalhos os mais variáveis e debochados contra o povo? Evidente que o Brasil submergiu nesta crise sem precedentes porque faltou dinheiro para cobrir as despesas públicas, que incluem a remuneração abusiva desses privilegiados, beneficiando também aposentados e pensionistas. Afinal, por que deputado e senador podem se aposentar com oito anos de mandato?
O avião presidencial é uma tentação a que a ética e a moralidade sucumbem de imediato, e tanto faz quem aproveita esta carona, neste caso o ministro do STF Gilmar Mendes, que deveria levar em conta o célebre ditado que, à mulher de César não basta ser honesta, mas tem de parecer honesta!
Nessas alturas, mais um chamuscado aqui, outro lá, a Alta Corte mais se preocupa em gozar as delícias dos extremos do que ser um tribunal jurídico, pois afinal das contas todos são seres humanos, e uma parcela desta gente sucumbe facilmente às tentações que o poder ardilosamente apresenta pelo caminho. Quem tem caráter e personalidade se desvia dessas armadilhas, como voar na aeronave do primeiro mandatário nacional!
Enquanto continuar como apêndice do Executivo e assessor do Congresso em questões jurídicas, portanto, a serviço de poderes apodrecidos, corruptos e desonestos, o Supremo envereda perigosamente para ser classificado da mesma forma!
Ou a presidente, ministra Carmen Lúcia, se dá conta desta questão, que subjuga a essência deste tribunal superior ou, então, a Constituição Federal foi indiscutivelmente rasgada, com os ministros simplesmente julgando as ações que lhes chegam às mãos conforme pedidos do Planalto e do Legislativo, interesses e conveniências pessoais.
Podemos aceitar que os salários nababescos que já recebem, ainda sejam acrescidos de penduricalhos os mais variáveis e debochados contra o povo? Evidente que o Brasil submergiu nesta crise sem precedentes porque faltou dinheiro para cobrir as despesas públicas, que incluem a remuneração abusiva desses privilegiados, beneficiando também aposentados e pensionistas. Afinal, por que deputado e senador podem se aposentar com oito anos de mandato?
Nessas alturas, mais um chamuscado aqui, outro lá, a Alta Corte mais se preocupa em gozar as delícias dos extremos do que ser um tribunal jurídico, pois afinal das contas todos são seres humanos, e uma parcela desta gente sucumbe facilmente às tentações que o poder ardilosamente apresenta pelo caminho. Quem tem caráter e personalidade se desvia dessas armadilhas, como voar na aeronave do primeiro mandatário nacional!
Enquanto continuar como apêndice do Executivo e assessor do Congresso em questões jurídicas, portanto, a serviço de poderes apodrecidos, corruptos e desonestos, o Supremo envereda perigosamente para ser classificado da mesma forma!
Ou a presidente, ministra Carmen Lúcia, se dá conta desta questão, que subjuga a essência deste tribunal superior ou, então, a Constituição Federal foi indiscutivelmente rasgada, com os ministros simplesmente julgando as ações que lhes chegam às mãos conforme pedidos do Planalto e do Legislativo, interesses e conveniências pessoais.
Trump 7 x 1 Imprensa
O que Trump fez é bem distinto de ignorar as questões espinhosas ou responder coisa diferente do que lhe foi indagado – como políticos fazem desde sempre. O negociante eleito para ser o governante mais poderoso do mundo agora escolhe quem pode e quem não pode fazer perguntas. Ataca publicamente e busca emascular quem publica histórias que não lhe interessam. Não demora, a prática acabará imitada por aprendizes tupiniquins.
A CNN publicara que a inteligência norte-americana havia enviado tanto a Trump quanto a Barack Obama relatório confidencial informando que espiões russos estavam espalhando terem coletado material comprometedor sobre o presidente eleito dos EUA, tanto de cunho pessoal quanto financeiro. Sem conseguir confirmá-las, a CNN não detalhou essas alegações. Mas o BuzzFeed detalhou.
O que a CNN e outros veículos que tiveram acesso ao material, como o New York Times, não publicaram por não terem conseguido verificar com fontes independentes foi que a FSB, herdeira da KGB soviética, engendrou um “kompromat” para chantagear Trump: de ofertas de negócios bons demais para serem legais até a organização de orgias durante as visitas do gringo a Moscou.
Depois que o BuzzFeed colocou a história no ar sem checar, o zelo jornalístico da CNN e do NYTimes foi esquecido. Habilmente, Trump e equipe fizeram parecer que todos haviam tratado a notícia com a mesma pressa e falta de cuidado. A narrativa principal deixou de ser o envolvimento de Trump com os russos e passou a ser a leviandade da imprensa e a reação agressiva do presidente eleito. Ele virou o jogo. De títere, passou a machão.
Foi mais um gol nos 7 a 1 que o futuro presidente tem aplicado na imprensa norte-americana (e, por tabela, na do resto do mundo) desde a campanha eleitoral. Produzindo um factoide por dia e tuitando um disparate por hora, Trump tem conseguido manter o controle da pauta: sempre determina qual a história de maior destaque sobre ele próprio naquele dia, naquela hora.
A imprensa tem culpa. Depois que o repórter da CNN foi censurado duplamente pelo presidente eleito, outros jornalistas não fizeram a pergunta que o colega não conseguira fazer. Se fizeram, perguntaram coisas diferentes ao mesmo tempo, permitindo a Trump escolher a que mais lhe interessava.
Assim, a primeira entrevista coletiva de Trump como virtual presidente terminou sem que ele respondesse à questão mais importante: se é fato que, como dizem os relatórios dos arapongas, integrantes de sua campanha eleitoral mantiveram contato com espiões russos que possuíam informações hackeadas de computadores tanto dos democratas quanto dos republicanos.
Tampouco Trump explicou como seu mero afastamento dos próprios negócios evitará conflitos de interesse enquanto é presidente, ou como pretende anular e substituir o “obamacare” em apenas um dia. A primeira exposição de Trump presidente à chuva não foi dourada, mas ele terminou a entrevista mais seco do que começou.
Por outro lado, se metade do relatório sobre as arapongagens russas for verdade, o Kremlin deve estar brindando – junto com um coro de “spin doctors” mundo afora. Alguns gritando: “Saúde!”.
A CNN publicara que a inteligência norte-americana havia enviado tanto a Trump quanto a Barack Obama relatório confidencial informando que espiões russos estavam espalhando terem coletado material comprometedor sobre o presidente eleito dos EUA, tanto de cunho pessoal quanto financeiro. Sem conseguir confirmá-las, a CNN não detalhou essas alegações. Mas o BuzzFeed detalhou.
Depois que o BuzzFeed colocou a história no ar sem checar, o zelo jornalístico da CNN e do NYTimes foi esquecido. Habilmente, Trump e equipe fizeram parecer que todos haviam tratado a notícia com a mesma pressa e falta de cuidado. A narrativa principal deixou de ser o envolvimento de Trump com os russos e passou a ser a leviandade da imprensa e a reação agressiva do presidente eleito. Ele virou o jogo. De títere, passou a machão.
Foi mais um gol nos 7 a 1 que o futuro presidente tem aplicado na imprensa norte-americana (e, por tabela, na do resto do mundo) desde a campanha eleitoral. Produzindo um factoide por dia e tuitando um disparate por hora, Trump tem conseguido manter o controle da pauta: sempre determina qual a história de maior destaque sobre ele próprio naquele dia, naquela hora.
A imprensa tem culpa. Depois que o repórter da CNN foi censurado duplamente pelo presidente eleito, outros jornalistas não fizeram a pergunta que o colega não conseguira fazer. Se fizeram, perguntaram coisas diferentes ao mesmo tempo, permitindo a Trump escolher a que mais lhe interessava.
Assim, a primeira entrevista coletiva de Trump como virtual presidente terminou sem que ele respondesse à questão mais importante: se é fato que, como dizem os relatórios dos arapongas, integrantes de sua campanha eleitoral mantiveram contato com espiões russos que possuíam informações hackeadas de computadores tanto dos democratas quanto dos republicanos.
Tampouco Trump explicou como seu mero afastamento dos próprios negócios evitará conflitos de interesse enquanto é presidente, ou como pretende anular e substituir o “obamacare” em apenas um dia. A primeira exposição de Trump presidente à chuva não foi dourada, mas ele terminou a entrevista mais seco do que começou.
Por outro lado, se metade do relatório sobre as arapongagens russas for verdade, o Kremlin deve estar brindando – junto com um coro de “spin doctors” mundo afora. Alguns gritando: “Saúde!”.
Se arrependimento matasse...
Com extraordinária timidez, quase como se pedisse desculpas por fazê-lo, ele, ontem, ao chamar de “pavorosa matança” o que antes classificara de “acidente pavoroso” ao referir-se ao assassinato bárbaro de presos em Manaus, forneceu uma pálida ideia do descaso dos governos passados com a trágica situação do sistema carcerário brasileiro.
No país com o quarto maior número de presos do mundo, só atrás dos Estados Unidos, China e Rússia, gastou-se pouco, quase nada, na construção de novas penitenciárias ou na reforma das existentes. Em 2014, por exemplo, o Orçamento da União reservou para o Fundo Penitenciário Nacional R$ 493,9 milhões. Gastou-se R$ 51,2 milhões.
No ano seguinte, a dotação para o fundo foi de R$ 542,3 milhões, mas apenas foram pagas despesas da ordem de R$ 45,8 milhões. No ano passado, a partir de maio com Temer na presidência interina da República, a dotação atualizada do fundo foi de R$ 2,6 bilhões, e a despesa liquidada alcançou R$ 1,1 bilhão.
- São condições desumanas em que os presos se acham. Há presídios em que cabem 600 pessoas com 1.600 pessoas, não é? — declarou Temer na abertura de reunião ministerial no Palácio do Planalto sobre retomada de obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Ele promete construir mais cinco presídios até o final do próximo ano.
Por si só, a construção de mais presídios de pouco adiantará para conter o crescimento da criminalidade. Mas é bom saber que temos hoje um presidente que se diz preocupado com o problema e disposto a enfrentá-lo. Os anteriores também se disseram preocupados, mas não foram muito além disso. Erguer presídios não atrai votos.
O excessivamente cauteloso Temer apostou que poderia aplacar a fúria do PT com a deposição de Dilma não fazendo alarde em torno da herança que ela lhe legou. Herança que por erro ou omissão ele ajudou a construir na condição de vice-presidente. O passado de oposição intransigente do PT não recomendava tal aposta.
A elite bem informada do país conhece os números do desastre cavado por Dilma nos últimos anos com o apoio de Lula e do PT, mas o povão, não. O silêncio de Temer a respeito disso autoriza muita gente a pensar que boa parte da culpa pela crise que o país atravessa deve-se na verdade à ausência de um governo melhor.
Não é fato que o governo Temer seja tão ruim ou pior do que foram os dois governos de Dilma. Longe disso. Mas corre o risco de parecer.
Felicidade fugaz
"Cria cuervos'
Quando as imagens do massacre de Manaus me caíram diante dos olhos, lembrei-me do ditado espanhol - "Cria cuervos y te sacarán los ojos". Naquelas cenas reiteravam o quanto é pueril supor que há perversidades inacessíveis ao homem. Não há. Feras não podem se humanizar, mas o contrário não é verdadeiro. E quando acontece, a ferocidade se potencializa pela aplicação da inteligência ao mal.
Muitas vezes, algo que parece nascido da boa intenção, tornando quase impossível ser percebido de modo diverso, acaba prestando extraordinário serviço ao mal e a seus objetivos. Pondere o que aconteceu com a sociedade brasileira, em avassaladora proporção, nas últimas décadas. Para tal fim, seja seu próprio instituto de pesquisa. Examine suas experiências de vida e as informações que lhe chegam de variadas fontes e modos. Tenho certeza de que acabará concluindo que a nação passou da quota na quantidade de maus cidadãos, de patifes, mentirosos, velhacos, corruptos, traiçoeiros e dirigentes de igual perfil, cujas decisões põem a ética e o bem de cabeça para baixo.
O que se constata nessa observação ligeira, mas suficiente, não é causa de si mesma em circuito fechado, mas consequência de uma atitude pedagógica aparentemente generosa, que concede liberdade sem responsabilidade, direitos sem deveres, prêmios sem méritos, amor sem exigências, educação sem restrição. E tolera a falta sem punição e o crime sem pena.
Temos recebido doses maciças disso nas famílias, nas salas de aula, nas relações sociais, no trabalho e na política. Então, prezado leitor destas poucas linhas, se lhe ocorre, ao lê-las, a ideia de que os cuervos a que me refiro estão enjaulados nas penitenciárias do Brasil, crocitando e executando sentenças de morte, ali mesmo ou nas nossas ruas e estradas, você se enganou. É ao seu criatório que me refiro. Ele está por toda parte, está aí na volta, combatendo a polícia, rindo da lei, declarando a morte da instituição familiar, chamando bandido de herói e herói de bandido, fazendo novelas de TV, ridicularizando a virtude, aplaudindo o vício, enxotando a religião, desautorizando quem educa ou usando a Educação para fazer política e relativizando a vida (aconteceu o que, em Manaus e Roraima, que não ocorra diariamente, com tesouras e pinças, em salas de aborto?).
Há cuervos que não se apresentam como tal.
Não estou afirmando que as pautas da violência se esgotem nestas que menciono. Estou dizendo, isto sim, que o crime e a violência avançam, inclusive, por motivação política e ideológica. E estou reafirmando, mais uma vez, que consciências ou se formam ou se deformam. Há no Brasil um evidente empenho em criar seres humanos com consciência de corvos.
Percival Puggina
Muitas vezes, algo que parece nascido da boa intenção, tornando quase impossível ser percebido de modo diverso, acaba prestando extraordinário serviço ao mal e a seus objetivos. Pondere o que aconteceu com a sociedade brasileira, em avassaladora proporção, nas últimas décadas. Para tal fim, seja seu próprio instituto de pesquisa. Examine suas experiências de vida e as informações que lhe chegam de variadas fontes e modos. Tenho certeza de que acabará concluindo que a nação passou da quota na quantidade de maus cidadãos, de patifes, mentirosos, velhacos, corruptos, traiçoeiros e dirigentes de igual perfil, cujas decisões põem a ética e o bem de cabeça para baixo.
Temos recebido doses maciças disso nas famílias, nas salas de aula, nas relações sociais, no trabalho e na política. Então, prezado leitor destas poucas linhas, se lhe ocorre, ao lê-las, a ideia de que os cuervos a que me refiro estão enjaulados nas penitenciárias do Brasil, crocitando e executando sentenças de morte, ali mesmo ou nas nossas ruas e estradas, você se enganou. É ao seu criatório que me refiro. Ele está por toda parte, está aí na volta, combatendo a polícia, rindo da lei, declarando a morte da instituição familiar, chamando bandido de herói e herói de bandido, fazendo novelas de TV, ridicularizando a virtude, aplaudindo o vício, enxotando a religião, desautorizando quem educa ou usando a Educação para fazer política e relativizando a vida (aconteceu o que, em Manaus e Roraima, que não ocorra diariamente, com tesouras e pinças, em salas de aborto?).
Há cuervos que não se apresentam como tal.
Não estou afirmando que as pautas da violência se esgotem nestas que menciono. Estou dizendo, isto sim, que o crime e a violência avançam, inclusive, por motivação política e ideológica. E estou reafirmando, mais uma vez, que consciências ou se formam ou se deformam. Há no Brasil um evidente empenho em criar seres humanos com consciência de corvos.
Percival Puggina
Não foi acidente, presidente
"Manaus não tá assim porque o crime ainda não se organizou como no Rio. Mas a tendência é ficar desse jeito. Porque se os caras não se ligarem no que tá acontecendo aqui em Manaus hoje, em dez anos vai ficar pior ou igual do que no Rio."
Em 2007, há exatos dez anos, eu e o João Áureo Lins, então estudantes da PUC-Rio, fizemos um documentário no sistema penitenciário de Manaus, no Amazonas. Foram quatro meses visitando a Cadeia Pública Raimundo Vidal e o Complexo Penitenciário Anísio Jobim, ouvindo histórias como a de cima.
Inicialmente, tínhamos a pretensão de gerar uma reflexão a respeito de uma vida sem liberdades, mas nosso trabalho ganhou novos significados a partir de uma rebelião, que seria considerada à época a mais sangrenta da história do Amazonas, com duas mortes.
Estava tudo ali, nas entrevistas: a situação do sistema penitenciário se deteriorava a cada dia. A pedra fundamental da recente barbárie no Compaj fora lançada pelos próprios detentos que nos contavam a organização do crime no Amazonas e sua sofisticação para superar as facções de Rio de Janeiro e São Paulo. Alguns falavam do aumento do crime organizado em Manaus com brilho nos olhos.
Ao mesmo tempo, num edifício construído em meio a uma densa mata nativa, o Compaj permitia quase uma experiência na selva amazônica, pelos mil pássaros que se ouvem na floresta ao redor. Ali dentro, testemunhei detentos produzindo artesanato para sustentar suas famílias, aulas de Inglês, de música, prática de esportes e, pasmem, a organização de um mutirão semanal para doar toda a dispensa do almoço de sexta-feira para instituições de caridade.
E por falar em almoço, foi fazendo uma refeição com os detentos que conseguimos estabelecer uma relação de confiança mútua para que eles entendessem os objetivos do documentário e colaborassem.
Arroz, feijão, paio, linguiça e para cimentar toda a xepa não poderia faltar a farofa, iguaria que sintetiza na mesa uma cena bem brasileira. Nesse almoço, eu ouvi pela primeira vez os detentos usarem a expressão “lá no Brasil...”, para se referir aos acontecimentos do Sul e Sudeste.
Nessas conversas, era proibido o uso de palavrões, de acordo com uma placa afixada na parede do refeitório, ao lado de belas pinturas da selva amazônica. Naquele país chamado Compaj, não falar palavrão me parecia um símbolo da tentativa de manutenção da paz no cárcere.
Não houve sequer um dia em que ingressamos na cadeia sem ouvir o coro geral: “Clareou!” Esta era a senha para que tudo o que não pudesse aparecer no documentário fosse escondido nas celas, incluindo armas e drogas. Mas quando se deu a rebelião do dia 24 de Setembro de 2007, o sistema penitenciário de Manaus finalmente se revelou. O representante dos presos no Compaj, que sempre nos recebeu de forma cortês, monossilábica e quase gentil, seria acusado de chefiar o tráfico de drogas no Amazonas dali de dentro e, por consequência, foi enviado para o presídio federal de segurança máxima, no Mato Grosso do Sul, onde estava Fernandinho Beira-Mar.
Além disto, o diretor-geral do Compaj, vejam só, também ficou foragido e acabou sendo preso dias depois. Contra ele pesavam as acusações de associação com os criminosos, exploração sexual dentro do presídio e facilitação de saídas noturnas para que presos cometessem crimes fora do presídio.
Lembro do padre Guillermo Cadorna, gestor intelectual e conselheiro espiritual de nossas incursões nos presídios manauaras. Foi um sopro de esperança que trouxe este missionário colombiano até a Amazônia para se engajar nesta guerra civil que, mesmo nós, brasileiros, não temos clareza se é contra o bandido, a polícia ou as drogas.
Ainda prevalece no Brasil a crença do "bandido bom é bandido morto", e o governo parece acreditar que a solução do sistema prisional são mais presídios. O que vi no Compaj e na cadeia pública foi a falta total de políticas públicas para os presos.
Talvez Nelson Mandela estivesse certo quando disse que "ninguém conhece verdadeiramente uma nação até que tenha estado dentro de suas prisões". Moro na França há alguns anos e, talvez pela distância, percebo que o Compaj diz muito sobre o Brasil. Já dizia há dez anos, mas ninguém queria ouvir.
Em 2007, há exatos dez anos, eu e o João Áureo Lins, então estudantes da PUC-Rio, fizemos um documentário no sistema penitenciário de Manaus, no Amazonas. Foram quatro meses visitando a Cadeia Pública Raimundo Vidal e o Complexo Penitenciário Anísio Jobim, ouvindo histórias como a de cima.
Inicialmente, tínhamos a pretensão de gerar uma reflexão a respeito de uma vida sem liberdades, mas nosso trabalho ganhou novos significados a partir de uma rebelião, que seria considerada à época a mais sangrenta da história do Amazonas, com duas mortes.
Ao mesmo tempo, num edifício construído em meio a uma densa mata nativa, o Compaj permitia quase uma experiência na selva amazônica, pelos mil pássaros que se ouvem na floresta ao redor. Ali dentro, testemunhei detentos produzindo artesanato para sustentar suas famílias, aulas de Inglês, de música, prática de esportes e, pasmem, a organização de um mutirão semanal para doar toda a dispensa do almoço de sexta-feira para instituições de caridade.
E por falar em almoço, foi fazendo uma refeição com os detentos que conseguimos estabelecer uma relação de confiança mútua para que eles entendessem os objetivos do documentário e colaborassem.
Arroz, feijão, paio, linguiça e para cimentar toda a xepa não poderia faltar a farofa, iguaria que sintetiza na mesa uma cena bem brasileira. Nesse almoço, eu ouvi pela primeira vez os detentos usarem a expressão “lá no Brasil...”, para se referir aos acontecimentos do Sul e Sudeste.
Nessas conversas, era proibido o uso de palavrões, de acordo com uma placa afixada na parede do refeitório, ao lado de belas pinturas da selva amazônica. Naquele país chamado Compaj, não falar palavrão me parecia um símbolo da tentativa de manutenção da paz no cárcere.
Não houve sequer um dia em que ingressamos na cadeia sem ouvir o coro geral: “Clareou!” Esta era a senha para que tudo o que não pudesse aparecer no documentário fosse escondido nas celas, incluindo armas e drogas. Mas quando se deu a rebelião do dia 24 de Setembro de 2007, o sistema penitenciário de Manaus finalmente se revelou. O representante dos presos no Compaj, que sempre nos recebeu de forma cortês, monossilábica e quase gentil, seria acusado de chefiar o tráfico de drogas no Amazonas dali de dentro e, por consequência, foi enviado para o presídio federal de segurança máxima, no Mato Grosso do Sul, onde estava Fernandinho Beira-Mar.
Além disto, o diretor-geral do Compaj, vejam só, também ficou foragido e acabou sendo preso dias depois. Contra ele pesavam as acusações de associação com os criminosos, exploração sexual dentro do presídio e facilitação de saídas noturnas para que presos cometessem crimes fora do presídio.
Lembro do padre Guillermo Cadorna, gestor intelectual e conselheiro espiritual de nossas incursões nos presídios manauaras. Foi um sopro de esperança que trouxe este missionário colombiano até a Amazônia para se engajar nesta guerra civil que, mesmo nós, brasileiros, não temos clareza se é contra o bandido, a polícia ou as drogas.
Ainda prevalece no Brasil a crença do "bandido bom é bandido morto", e o governo parece acreditar que a solução do sistema prisional são mais presídios. O que vi no Compaj e na cadeia pública foi a falta total de políticas públicas para os presos.
Talvez Nelson Mandela estivesse certo quando disse que "ninguém conhece verdadeiramente uma nação até que tenha estado dentro de suas prisões". Moro na França há alguns anos e, talvez pela distância, percebo que o Compaj diz muito sobre o Brasil. Já dizia há dez anos, mas ninguém queria ouvir.
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