Em 2007, há exatos dez anos, eu e o João Áureo Lins, então estudantes da PUC-Rio, fizemos um documentário no sistema penitenciário de Manaus, no Amazonas. Foram quatro meses visitando a Cadeia Pública Raimundo Vidal e o Complexo Penitenciário Anísio Jobim, ouvindo histórias como a de cima.
Inicialmente, tínhamos a pretensão de gerar uma reflexão a respeito de uma vida sem liberdades, mas nosso trabalho ganhou novos significados a partir de uma rebelião, que seria considerada à época a mais sangrenta da história do Amazonas, com duas mortes.
Ao mesmo tempo, num edifício construído em meio a uma densa mata nativa, o Compaj permitia quase uma experiência na selva amazônica, pelos mil pássaros que se ouvem na floresta ao redor. Ali dentro, testemunhei detentos produzindo artesanato para sustentar suas famílias, aulas de Inglês, de música, prática de esportes e, pasmem, a organização de um mutirão semanal para doar toda a dispensa do almoço de sexta-feira para instituições de caridade.
E por falar em almoço, foi fazendo uma refeição com os detentos que conseguimos estabelecer uma relação de confiança mútua para que eles entendessem os objetivos do documentário e colaborassem.
Arroz, feijão, paio, linguiça e para cimentar toda a xepa não poderia faltar a farofa, iguaria que sintetiza na mesa uma cena bem brasileira. Nesse almoço, eu ouvi pela primeira vez os detentos usarem a expressão “lá no Brasil...”, para se referir aos acontecimentos do Sul e Sudeste.
Nessas conversas, era proibido o uso de palavrões, de acordo com uma placa afixada na parede do refeitório, ao lado de belas pinturas da selva amazônica. Naquele país chamado Compaj, não falar palavrão me parecia um símbolo da tentativa de manutenção da paz no cárcere.
Não houve sequer um dia em que ingressamos na cadeia sem ouvir o coro geral: “Clareou!” Esta era a senha para que tudo o que não pudesse aparecer no documentário fosse escondido nas celas, incluindo armas e drogas. Mas quando se deu a rebelião do dia 24 de Setembro de 2007, o sistema penitenciário de Manaus finalmente se revelou. O representante dos presos no Compaj, que sempre nos recebeu de forma cortês, monossilábica e quase gentil, seria acusado de chefiar o tráfico de drogas no Amazonas dali de dentro e, por consequência, foi enviado para o presídio federal de segurança máxima, no Mato Grosso do Sul, onde estava Fernandinho Beira-Mar.
Além disto, o diretor-geral do Compaj, vejam só, também ficou foragido e acabou sendo preso dias depois. Contra ele pesavam as acusações de associação com os criminosos, exploração sexual dentro do presídio e facilitação de saídas noturnas para que presos cometessem crimes fora do presídio.
Lembro do padre Guillermo Cadorna, gestor intelectual e conselheiro espiritual de nossas incursões nos presídios manauaras. Foi um sopro de esperança que trouxe este missionário colombiano até a Amazônia para se engajar nesta guerra civil que, mesmo nós, brasileiros, não temos clareza se é contra o bandido, a polícia ou as drogas.
Ainda prevalece no Brasil a crença do "bandido bom é bandido morto", e o governo parece acreditar que a solução do sistema prisional são mais presídios. O que vi no Compaj e na cadeia pública foi a falta total de políticas públicas para os presos.
Talvez Nelson Mandela estivesse certo quando disse que "ninguém conhece verdadeiramente uma nação até que tenha estado dentro de suas prisões". Moro na França há alguns anos e, talvez pela distância, percebo que o Compaj diz muito sobre o Brasil. Já dizia há dez anos, mas ninguém queria ouvir.
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