terça-feira, 8 de julho de 2025

Pensamento do Dia


 

Data

Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação

Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo de escravidão

Tempo dos coniventes sem cadastro
Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rasto
Tempo da ameaça

Sophia de Mello Breyner Andresen

IA e Congresso reacendem a luta de classes

E quem diria que a luta de classes voltaria ao centro do debate político. Os privilégios históricos da concentração de renda através das cobranças de impostos foram impulsionados por vídeos de IA e pela segunda vez a esquerda consegue viralizar nas redes sociais – a primeira foi o debate do fim da escala 6×1. Lula, nosso conciliador-mor, com baixa popularidade e acuado pelas sabotagens do centrão no Congresso, vai flertando com os discursos mais à esquerda pensando em 2026.

A militância de esquerda deve, em parte, agradecer a Alcolumbre e Motta, presidentes do Senado e da Câmara, por reavivar o debate da justiça social. Tentaram humilhar e paralisar o governo com a derrubada do decreto que aumentava o IOF (Imposto sobre Operações Financeiras). Viralizaram a hashtag “inimigos do povo”.

É apenas uma pequena batalha vencida nas redes sociais. A direita ainda predomina e com larga vantagem. Segundo O Globo, os vídeos sobre a injustiça dos impostos alcançaram cerca de 20 milhões de pessoas. A última peça de desinformação de Nikolas Ferreira atingiu um número 10 vezes maior de usuários.

Muitos analistas tentam comparar os ataques ao Congresso com os ataques do bolsonarismo ao STF. Fiam-se na estratégia de eleger um inimigo e dizem que é uma ameaça às instituições. Balela. Primeiro: enquanto o ex-presidente Bolsonaro fez uma sistemática campanha contra o Supremo, Lula já avisou que o “presidente não governa de costas para o Congresso” e alguns ministros defenderam Hugo Motta.


Segundo, o cálculo do bolsonarismo era impedir a Corte de julgar seus crimes e atrapalhar seus planos políticos – controlar o Judiciário faz parte da cartilha básica da extrema-direita mundial. Já a esquerda usa o IOF para debater justiça social e o assalto do Legislativo ao orçamento e o desequilíbrio entre os Três Poderes. Enfim, ninguém pediu cassação de Motta e Alcolumbre até o momento, certo? O conflito é parte do jogo político e só isso.

Isenção para quem ganha menos de R$ 5 mil, taxação dos super-ricos, fim da escala 6×1. Aos poucos os direitos dos trabalhadores e a luta contra as desigualdades vai fortalecendo o discurso de esquerda. É a aproximação dos problemas do dia-a-dia da maioria da população ao invés de cair na armadilha das pautas de costumes ou outras questões ideológicas. Foi o que fez o vencedor das primárias democratas em Nova Iorque Zohran Mamdani.

Com uma campanha com afiada nas redes sociais, ele debateu o sofrimento dos trabalhadores: o preço do aluguel, transporte gratuito, aumento do salário-mínimo, transparência dos gastos, sem fugir de temas espinhosos como o genocídio na Palestina – é uma esquerda que não arreda pé de suas ideias restituir com medo de perder votos.

Outro caso foi o de Gustavo Petro. O presidente da Colômbia sancionou sua reforma trabalhista após aprovação do Senado. Após meses de discussões com parlamentares, a proposta estava travada, já que Petro não tem maioria em nenhuma das Casas. Partiu para o ataque e defendeu uma consulta popular. Os congressistas cederam: aprovaram a reforma trabalhista e de aposentadorias, mas rejeitaram a consulta.

Durante muitos anos as pautas identitárias superaram as questões de classe. Elas devem ser defendidas, mas dentro do guarda-chuva da justiça social. Falta muito, entretanto, para as críticas ao neoliberalismo e a soberania popular serem o mote principal da esquerda, e que desatem em mobilização coletiva – e digital.

Trump legisla para os ricos

O presidente dos EUA, Donald Trump, comemorou o Dia da Independência em 4 de julho exatamente como esperava: assinando a “grande e bela” lei que consagra um enorme corte de impostos que beneficia particularmente os mais ricos e é financiado por cortes em programas de proteção social e aumento da dívida. Ao mesmo tempo, reverte grande parte dos esforços do ex-presidente Biden para levar o país a uma economia de energia limpa. Embora os efeitos da lei possam acabar custando-lhe as eleições de meio de mandato de 2026, apenas dois membros conservadores do Congresso negaram seu apoio, demonstrando o domínio de Trump sobre o Partido Republicano.


No plano político, trata-se de uma vitória inegável para Trump, que cumpriu algumas de suas promessas de campanha: eliminar impostos sobre gorjetas, financiar uma campanha massiva de deportação de imigrantes e aumentar os gastos com defesa. E, ao contrário do que aconteceu com sua política tarifária, ele também conseguiu isso sem causar um terremoto no mercado. Tudo isso em pouco mais de cinco meses desde seu retorno à Casa Branca, e apesar das dúvidas que surgiram em suas próprias fileiras sobre aspectos de uma lei que deixará sua marca na economia americana na próxima década.

O principal objetivo da lei era garantir a extensão dos cortes de impostos introduzidos por Trump em 2017, durante seu primeiro mandato, que expiram no final deste ano. Nessa perspectiva, a lei reforça a política tradicional de Reagan de cortes de impostos para empresas e ricos, mas desta vez sem fornecer um novo estímulo ao crescimento, visto que a maior parte desses cortes já está em vigor. Apesar de suas palavras grandiloquentes, o impacto da Trumponomics estará muito distante do New Deal de Roosevelt ou da Grande Sociedade de Johnson.

Outra questão é o aspecto orçamentário da nova legislação, que coloca as finanças da maior economia do mundo em um caminho dificilmente sustentável. Os cortes de impostos somam US$ 4,5 trilhões, enquanto os cortes em programas sociais — especialmente o Medicaid (seguro de saúde público para os mais pobres) e a assistência alimentar para os mais desfavorecidos — somam US$ 1,1 trilhão. Isso significa que o déficit aumentará em US$ 3,4 trilhões nos próximos 10 anos e que, apesar da arrecadação de tarifas, o déficit ficará em torno de 6% do PIB e a dívida pública subirá para 120%. O FMI já alertou sobre os riscos desse megaprojeto fiscal, que está pressionando ainda mais os títulos do Tesouro e o dólar.

O Escritório de Orçamento do Congresso decidiu que, em sua versão inicial, a lei proposta por Trump era indubitavelmente regressiva, visto que os 30% mais pobres da população veriam sua situação piorar, enquanto a renda dos 10% mais ricos aumentaria em mais de 2%. Esse viés só foi acentuado pelas concessões adicionadas durante o processo de sua aprovação. Entre cortes e novas exigências burocráticas, cerca de 12 milhões de americanos podem perder seu seguro saúde. A mudança é tão significativa que exigirá vigilância constante das autoridades econômicas para evitar um aumento generalizado nos custos de financiamento da economia americana e de suas empresas . A “bela” lei de Trump representa uma mudança que terá efeitos muito negativos a longo prazo sobre a coesão social e a estabilidade fiscal nos Estados Unidos.
El Pais

É perigoso consultar-se com a doutora IA

Desde o tempo do Google, costumo consultar a plataforma a qualquer pequena doença, incômodo físico ou ziquizira. Com o advento da inteligência artificial, as consultas se tornaram mais frequentes. As respostas, copiosas, oferecem mais dados, indicam novos exames, novos caminhos de pesquisa. Na aparência, um superconsultório médico.

Em contato com a médica Adrienne Moreno, que me atende já há alguns anos, comentei o desempenho da inteligência artificial e ouvi o que, de certa forma, desconfiava: as coisas não são tão positivas quanto parecem. Na opinião dela, o uso dessas consultas sem treinamento especial traz vários perigos, mesmo para os médicos.


Os modelos de linguagem dos robôs de IA — conhecidos como large language models, ou LLMs — , quando usados de forma descuidada, implicam alguns problemas. É um hábito que expõe o usuário a diferentes vieses: da automação (o paciente substitui sua opinião pela da máquina); da confirmação (ele se satisfaz quando a máquina concorda com ele); da bajulação (a máquina elogia o usuário de forma exagerada). Esses vieses têm sido estudados na prática médica, e já se provou que têm o potencial de diminuir a precisão.

Posso confirmar alguns deles, sobretudo a bajulação. Faço um curso de pronúncia inglesa usando IA. Ao cabo de cada aula, os elogios são abundantes:

— Muito bem, você é ótimo, sua insistência mostra seriedade.

E daí por diante, até o ponto de dizer:

— Seu trabalho mostra bem quem você é.

A pessoa fica se achando, quando, na verdade, é apenas uma aula diária de 15 minutos.

Adrienne ressalta outro aspecto importante na qualidade da máquina no cenário médico: a ética. Máquinas, segundo ela, não carregam valores humanos ou códigos de ética. Podem dar respostas objetivas. Se o algoritmo mostra que um paciente com mais de 80 anos tem poucas chances de sobreviver a uma internação em CTI, um gestor pode decidir não investir recursos nos mais velhos. Outro aspecto destacado por ela é a questão da responsabilidade. Se substituímos a força de trabalho humana pela máquina, quem responde pelos eventuais erros que ela possa cometer? Há uma proporção de laudos da máquina que pode ser revisada por um especialista. Quando esses laudos são muito numerosos, isso excede a capacidade do revisor e pode ser uma fonte de erros.

O mais interessante nisso tudo é a falta de regulamentação. Adrienne foi surpreendida com o anúncio de um aplicativo que se dispõe a fazer um diagnóstico de leucemia apenas com um hemograma. Ela acha que esse é um diagnóstico complexo, e, se alguém descobre uma maneira de abordá-lo apenas com o hemograma, primeiro tem de validá-lo por meio de publicações, e não usar um aplicativo sem qualquer regulamentação.

Tudo isso, segundo ela, indica um caminho mais sério no uso da IA: treinar médicos para que sejam capazes de entender as limitações da máquina. E as empresas de IA precisam introduzir filtros éticos em seus modelos, para que sejam alinhados aos valores de cada país, evitando que as máquinas sejam preconceituosas ao mostrar os dados.

Para Adrienne, é preciso endereçar o problema da responsabilidade da IA antes que a máquina seja incorporada ao cotidiano médico. Médicos — diz ela — conhecem seres humanos em níveis que a máquina ainda não consegue alcançar. Mesmo se a máquina conseguir ser melhor do que nós, será que precisamos que ela substitua as pessoas? O que não estaríamos perdendo com essa substituição?

O interessante em toda a argumentação é que ela não tem um enfoque nostálgico. A ideia é aproveitar ao máximo o uso da IA, exigindo das empresas transparência no raciocínio da máquina em relação a questões médicas — e reconhecendo a superioridade humana quando a questão é cuidar da vida do outro.

Leite para gatinhos, nada de pão para nós em Gaza – Um lugar de generosidade

Enquanto eu acendia o fogo e lutava contra a fumaça preta e espessa, ouvi minha irmãzinha gritar: "Tem uma gata que deu à luz gatinhos aqui!" Fui dar uma olhada e descobri que a gata da vizinhança tinha dado à luz uma ninhada dentro de uma caixa de sapatos colocada na nossa porta.

Meu primeiro instinto foi removê-los antes que a mãe retornasse, temendo que ela pudesse nos atacar, pensando que estávamos tentando machucar seus filhotes.

Mas minha irmãzinha gritou em protesto, horrorizada com minha crueldade: "Eles podem morrer ou se machucar!" Senti a frieza do meu próprio coração por um momento, então disse a ela para fazer o que achava certo e voltei para o fogo.


Minha prioridade era garantir que a sopa de lentilhas não queimasse, principalmente porque mal tínhamos o suficiente para nos manter vivos, não o suficiente para saciar nossa fome.

Não havia pão, um dos ingredientes essenciais deste prato. A farinha custava mais de US$ 700 o saco numa cidade onde a maioria das pessoas vive abaixo da linha da pobreza – desempregadas há meses, sem condições de comprar nem um punhado de farinha!

Cerca de uma hora depois, terminei de preparar a sopa, sem cebola ou pimentão para acompanhar, pois eles não estão disponíveis nos mercados ou são vendidos a preços astronômicos, muito além do nosso alcance.

Fui verificar o que Aya tinha feito com os gatinhos. Para minha surpresa, ela tinha preparado um "banquete" para os padrões da fome em Gaza: serviu-lhes leite, recolheu as sobras de atum e carne enlatados da cozinha e serviu-os.

Fiquei paralisada. Minha língua não conseguiu repreendê-la nem perguntar se ela sabia que aquilo era comida para o dia todo.

Olhei em seus olhos, uma mistura de raiva e descrença em meu próprio olhar, mas tudo o que vi nos dela foi determinação e convicção completa no que ela tinha feito.

Aya não suportava ver gatinhos famintos, mesmo eu tendo contado a ela, e ela sabia que a mãe deles os alimentaria de uma forma ou de outra. Mas eu não a culpo. Aliás, talvez eu devesse culpar o gato por ter instintos tão ruins! Mesmo assim, as coisas mudaram desde o início da guerra.

Naquela época, os gatos conseguiam encontrar comida nas estradas: sobras e sacos de lixo.

Agora, eles têm concorrência: as crianças de Gaza vasculham o mesmo lixo em busca de roupas esfarrapadas, pedaços de madeira ou plástico para queimar e se aquecer, já que não têm dinheiro para lenha. Ou até mesmo para ver se há algum resto de comida deixado por agências internacionais de ajuda humanitária.

Muitos pensamentos passaram pela minha cabeça.

Não me importava que comêssemos tão pouco, mas fiquei indignado que as crianças da minha cidade estivessem catando lixo em busca de comida enquanto os gatos eram alimentados com refeições adequadas.

Mas, novamente, a comparação não era justa. Por que crianças e gatos não deveriam comer comida boa?

Mesmo quando éramos crianças, costumávamos alimentar gatas prenhes e depois seus filhotes para que as mães pudessem se recuperar. Meus pensamentos oscilavam entre desespero e amargura e perguntas raivosas: Que tipo de ocupação desumana pode testemunhar a fome em um ser vivo e ainda assim negar-lhe comida? Quão vil deve ser alguém que deixa passar fome crianças, doentes, pobres?

Quem lhes deu o direito de isolar uma cidade inteira — quase invisível no mapa — diante dos olhos do mundo? Quem lhes permitiu controlar a vida, a fome, as crianças da minha cidade e até mesmo seus gatos?

Tudo isso passou pela minha cabeça enquanto eu olhava nos olhos de Aya.

Aya não fez nada de errado. Somos de Gaza, uma cidade conhecida pela sua generosidade — é o que sempre disseram sobre nós.

Foi assim que fomos criados. Então, eu mataria esse espírito nela agora? Eu extinguiria o que resta da nossa humanidade?

Só consegui falar quando encontrei as palavras certas. Elogiei Aya pelo que ela havia feito e até lhe dei uma porção maior da sopa, em detrimento da minha. Coragem e generosidade devem ser honradas, e o egoísmo deve ser humilhado.
Sem chance de sobrevivência

Os dias se passaram e, infelizmente, todos os gatinhos morreram. Dois deles desapareceram — provavelmente foram comidos pela mãe. Os três restantes foram abandonados por ela e deixados para morrer, apesar de nossas tentativas desesperadas de alimentá-los. Mas sem o leite da mãe, eles não tiveram chance.

Desde então, sempre que penso naqueles gatinhos, sinto um profundo ressentimento em relação a este mundo pelo que ele permitiu que acontecesse.

Desde quando pessoas, animais, árvores — até mesmo gatinhos — famintos são justificados sob a desculpa de “combater o terrorismo”?

Ou foi culpa do gato? Não vejo terrorismo nos olhos de gatinhos famintos — nem nos olhos de crianças famintas. Vejo terrorismo apenas nas mãos de um ocupante que sitiou uma cidade antes conhecida por aquilo que agora mais lhe falta: generosidade.