terça-feira, 22 de novembro de 2016

Paisagem brasileira

Edgar Walter, Petrópolis (1976)

Um menino favelado implodiu o Cabral que Lula inventou

Caprichando no sorriso de aeromoça e na voz de seminarista que furta o vinho do padre, Lula lê no vídeo acima, gravado na campanha eleitoral de 2010, o texto produzido por um marqueteiro a serviço de Sérgio Cabral. (Prudente, o redator não incluiu um único plural na lengalenga costurada para explicar por que o governador do Rio merecia ficar no emprego mais quatro anos). “É tão bom cuidar dos pobres… Eu acho que o Sérgio está fazendo isso com muito carinho”, recita Lula na largada.

Na primeira escala, estaciona no olhar do candidato: “É o olhar fraterno, é o olhar generoso, sabe?”. Desce dois palmos e para no peito: “É a pessoa trabalhar um pouco com o coração”. Faz a meia volta e regressa à região ocular: “O Sérgio é pura emoção, o Sérgio parece durão, mas eu já vi ele lacrimejar os olhos muitas vezes falando do povo do Rio de Janeiro”, garante Lula antes do fecho em dilmês castiço: “Eu acho que o povo precisa de gente assim e ninguém, ninguém trata com a alma que o Sérgio trata as pessoas”.

Um homem público desse quilate é raridade que não se pode desperdiçar, reincide o palanque ambulante no vídeo abaixo. “Votá no Sérgio Cabral é quase que um compromisso moral, ética, pulítico”, adverte o torturador da verdade e do idioma. “É um compromisso de honra pra quem quer garanti um futuro melhor para o nosso filho, para os nossos netos , para aqueles que a gente ama”. Não é pouca coisa.


Mas não é tudo, informa o resto do falatório. “Esse homem já provô qui é um homem de bem, qui é um homem que gosta do Rio, que é um homem qui tem competência pra fazê as coisa que os outros não fizeram”, afirma Lula, que em seguida se volta para Sérgio Cabral e, olho no olho, arremata a patuscada: “Por isso, meu cumpanhero Sérgio, si eu não tivesse qui votá em São Paulo, eu iria transferi o meu título pra votá em você pra governadô do Rio de Janeiro”.

Conversa fiada, berra o vídeo divulgado pelo blog do Ricardo Gama e aqui republicado em 8 de agosto de 2010, no início da campanha que terminaria com a reeleição do candidato que o chefão tentou promover a santo protetor dos desvalidos. Em apenas 73 segundos, a farsa é implodida pela altivez de Leandro dos Santos, um menino negro e miserável que não se assustou com o show de prepotência, vulgaridade, demagogia, intolerância e safadeza eleitoreira protagonizado por Lula e Sérgio Cabral.

Em vez da favela-maravilha que a dupla fingia ver em Manguinhos, o garoto sem medo continuou vendo o que vê quem, como ele, morava numa região batizada de “Faixa de Gaza”. Em vez de um presidente da República e um governador de Estado, enxergou dois reizinhos pateticamente nus. Repreendido por Lula, que pontuava cada frase com um “porra!”, não recuou. Insultado por Cabral, que o chamou de “malandragem”, “otário”e “sacana”, avisou que tinha nome. E gravou tudo.

O brasileiro Leandro dos Santos é o grande ausente do noticiário sobre as bandalheiras em que se meteram os dois estadistas de botequim. É preciso saber o que ele achou da prisão de Sérgio Cabral, ou também se pergunta o que espera a Justiça para instalar Lula em alguma cadeia. É preciso sobretudo lembrar-lhe que até no faroeste à brasileira os bandidos perderam no fim.

Augusto Nunes

Temer precisa deixar de temer

O primeiro-ministro britâncio Neville Chamberlain quis colocar panos quentes na voracidade nazista de Adolf Hitler. Anunciou uma paz, furada, com os alemães e depois cairia para assumir Winston Churchill, que não tinha papas na língua e foi o estadista certo no momento certo.

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Michel Temer, no melhor estilo Chamberlain, revelou querer entrar para a história como quem colocou o Brasil novamente nos trilhos. Acredita de mãos postas na conversa para endireitar o país, mas vai sendo levado pela conversa da sua corte.

Decididamente Temer não é Churchill para quem não havia conversa quando se tratava de grave perigo para a Inglaterra e seus concidadãos. A lição do grande primeiro-ministro era enfrentar o inimigo com toda a raça no sangue, suor e lágrimas.

O presidente brasileiro aposta mais na luva de pelica, na conversa ao pé do ouvido, nos regabofes políticos mesmo quando o povo nem sabe o que é brioche. Quer levar a bandidagem política no papo furado. Não será por inocência, mas certamente por algo muito mais danoso.

Se presidente de todos os brasileiros, devia tomar as dores da população e incorporar Churchill, mesmo que não leve jeito. Continuar no modelo Chamberlain vai dar com os burros n'água e não fará a figura que quer passar para a história. Será um mero Temer, neste faroeste caboclo, para maior sofrimento de quem não tem a que recorrer.
Luiz Gadelha

A agonia do Velho Chico

O Rio São Francisco, cuja bacia hidrográfica abrange os estados de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe e engloba uma área de mais de 600 mil quilômetros quadrados, foi tema de novela de sucesso da Rede Globo. Lamentavelmente, nas suas águas tragicamente faleceu por afogamento o talentoso ator Domingos Montagner.

Tanto a novela global quanto o trágico falecimento de Domingos colocaram em evidência o outrora caudaloso rio da integração nacional, ora em rápido processo de degradação em face das prolongadas estiagens e dos crescentes e intensivos usos de suas águas, praticamente superiores à sua vazão nesses sucessivos anos de secas, que estão se perpetuando.

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O fato é que, quando cotejada com sua vazão mínima de 1.077m³/s, a retirada de água para irrigação somada à evaporação natural e à transposição, quando concluída, provocará um déficit hídrico de 126m³/s: a soma dessas três retiradas, em 2025, será de 1.203m³/s, respectivamente 786m³/s, para irrigação; 280m³/s, transposição; e 137m³/s, referente à evaporação natural. Estas informações publicadas pela Agência Nacional de Águas (ANA), Revista Brasileira de Engenharia Agrícola e Nemus Consultoria atestam o drama do Velho Chico e sugerem a adoção de uma rigorosa e competente gestão hídrica a fim de atender, de forma sustentável, os múltiplos usos demandados por suas escassas e preciosas águas.

Para que se tenha uma ideia dessa enorme escassez, o volume útil dos reservatórios de Três Marias, Itaparica e Sobradinho, em 30 de outubro, estava a menos de 11% do volume útil total. Já a vazão afluente média do reservatório de Sobradinho, em outubro deste ano, segundo a ANA, era de apenas 497 m³/s. Em consequência, a pedido da Companhia Hidrelétrica do São Francisco, o Ibama recentemente autorizou a redução da vazão de Sobradinho de 800m³/s para 700m³/s, de 10 de novembro até 31 de janeiro de 2017. Observa-se que, mesmo com essa baixa vazão, o déficit hídrico nesse importante reservatório será de aproximadamente 200m³/s.

As continuadas reduções da vazão de Sobradinho trazem sérias consequências para o Baixo São Francisco, notadamente para Sergipe, já que a vazão de Xingó também será reduzida para 700m³/s, o que provocará graves problemas no abastecimento de pequenas comunidades, além da degradação que acarretará ao meio ambiente. Convém ressaltar que o Rio São Francisco é o principal manancial hídrico desse estado. Portanto, seu acelerado raquitismo ensejará o aparecimento de volumes mortos. Isso será catastrófico para o suprimento de 70% da região metropolitana de Aracaju e 52% da população sergipana.

Em suma, essas informações, especialmente o crescimento geométrico da demanda de água para irrigação, com vazão atual de 518m³/s e projetada para atingir 786m³/s em 2025, indicam a ingente necessidade de se estabelecer uma competente governança hídrica sobre as escassas águas do Rio São Francisco. É dizer: ou as gerenciamos com eficiência, eficácia e efetividade ou elas nos faltarão em futuro próximo. Seu uso indiscriminado e sem parcimônia pode levar a desastres ecológicos como os que foram causados ao Rio Colorado, nos Estados Unidos e México, e ao Mar de Aral, na Ásia Central, certamente por falta de competente e rigorosa governança hídrica.

Albano Franco 

Pergunta antiga bem atual

Roda, roda, roda

Mesmo antes de assumir definitivamente a Presidência da República, o presidente Michel Temer já sinalizava que seu governo teria como marca um basta à gastança, ao empreguismo e à desordem fiscal. Ofereceu como premissa a unificação de ministérios, a extinção de cargos comissionados, o endurecimento das transferências orçamentárias, a revogação de subsídios fiscais e a extinção ou a redução de outras verbas, algumas até inalteráveis, como os orçamentos da educação e da saúde.

Para amparar suas propostas, encaminhou ao Congresso a PEC 241, votada com celeridade e êxito na Câmara dos Deputados; a mesma medida já se encaminhou ao Senado e o que prende sua aprovação são ajustes especiais com o presidente da Casa, Renan Calheiros, que quer fazer passarem pela mesma greta assuntos de seu interesse pessoal e de outros amigos, muitos coincidentemente à espera de indiciamento, quiçá de prisão.

A semana passada fez virar a biruta para o PMDB mais graúdo, recolhendo em Bangu dois ex-governadores do Rio, Sérgio Cabral e Anthony Garotinho. Excessos à parte, de nenhum de seus advogados se ouviu um protesto que colocasse em dúvida a legalidade das prisões. Apenas de Garotinho e de familiares ouviram-se gritos e lamentações, mas nada que frustrasse a ordem judicial. Colaborou o Samu, e tudo ficou resolvido, dentro do possível.

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Na mesma sexta-feira, atendendo expectativas, o ministro Geddel Vieira Lima fora acusado de querer plantar no centro histórico de Salvador uma torre de apartamentos, que o Iphan entendeu um pouco conflitante com a arquitetura dos monumentos vizinhos. Geddel, talvez por seu jeito mais objetivo de ser, fora mal-entendido como quem forçara demais a barra em prol do modernoso empreendimento; ele havia pedido, segundo disse, sem qualquer interesse pessoal, que o Iphan fechasse os olhos e autorizasse o seguimento da obra. Pontos de vista apenas, mas o conservador instituto não atendeu. “Assim está difícil de gerar empregos na construção civil”, deve ter dito Geddel.

Entenda-se. Esses fatos engessaram a semana, e as atenções saíram da agenda de reformas para as citadas ocorrências. Mas, na verdade, o que mais importa, objetivamente, é que as mudanças estruturais, todas entendidas como necessárias e inadiáveis, vão se desfazendo no correr dos meses. O desemprego segue aumentando, a inflação não foi contida, os juros dos bancos se mantiveram altos e, em alguns casos, até subiram, as escolas seguem ocupadas, a saúde, sucateada, a insegurança impera, e pior: o governo Temer já gastou em 2016 R$ 150 bilhões a mais do que o anterior em igual período de 2015; criou quase 15 mil novos cargos desde que assumira a Presidência, não movimentou positivamente a economia, e começamos a ver desmanchar a esperança de mudança com a qual se apresentou e se comprometeu Michel Temer. Para onde vamos?

Do Pedro Alvares, claro!

Pessimistas, com se espera, sempre acham que nada melhora. Dizem que daqui a pouco a gente esquece e passa a se preocupar com outra coisa. Provavelmente sem importância alguma. Acham que esta é nação com déficit de atenção.

Faltariam vontade e determinação necessárias para evitar que o futuro seja simplemente uma versão piorada do passado. Culpa de Cabral (Pedro Alvares, é bom que se diga). Desde la não haveria novidade. Apenas o cumprimento de destino escrito simultaneamente a carta de Caminha.

Os cínicos costumam dizer que é assim mesmo. Sempre foi, dizem. Desde que Cabral aqui chegou. Estaria em nosso DNA. Imutável, intocável. Nossas mazelas seriam esperadas e até necessárias. Corrupção, para eles, é o óleo que faria a engrenagem girar. E sem corrupção, nada andaria. “Está tudo parado!”, continuam gritando indignados.

E com este embate entre cínicos e pessimistas que la nave va. A deriva e sem controle. Desperdiçando oportunidades, comprometendo o futuro, e prejudicando gerações futuras.

O tão comemorado bônus demográfico escapa por entre os dedos sem que os benefícios sejam colhidos. O país envelhece sem enriquecer. E se endivida sem ter como pagar.

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Tudo o que parece importar é a preservação de privilégios que já não cabem no orçamento. Diante da quebradeira certa, cada um quer um privilegio para chamar de seu. No jogo das cadeiras musicais, ninguém quer ficar de pé quando a musica parara de tocar. Não se dão conta que a musica já não toca faz tempo. Muito.

Numa terra de tantos problemas e sem duvida onde se faz tanta critica, é curioso que não frequentemente não se faca a conexão entre o alto grau de corrupção em um estado gigantesco e ineficiente, com o tamanho da conta a ser paga pelos cidadãos nascidos e por nascer.

Uma nação não pode se basear em fraude. Por definição, fraudes são efêmeras, destinadas a desabar sob o peso da realidade. Dai a pressa de mudar. De buscar outras e melhores bases para o funcionamento da sociedade. Mudar é urgente.

Não existe saída possível sem a melhoria dos padrões éticos e políticos. Mesmo que tenha (ou não) sempre sido assim. E que a culpa seja mesmo de Cabral. Do Pedro Alvares, claro!

Segredos de Nelma

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Atendia no 21-9972-33315. Raríssimos sabiam quem era. Atravessou a última década no circuito Leblon-Laranjeiras, Zona Sul do Rio. Criou uma rotina de clandestinidade no Palácio Guanabara e uma rota de fuga para o Galeão, que usava para escapadas privadas a Paris, na companhia de amigos-patrocinadores.

Nelma, Nelma de Sá Saraca — era a identidade por trás daquele número telefônico. Foi a pessoa mais influente no Rio nos últimos anos, com poder real sobre as decisões do governo estadual. Usou e abusou da capacidade de influir na política e nos negócios, desde janeiro de 2007, quando o governador Sérgio Cabral assinou seus primeiros decretos.

No fim de tarde de uma quarta-feira excepcionalmente seca da primavera de 2007, por exemplo, recebeu no Guanabara os executivos Rogério Nora e Alberto Quintaes, da construtura Andrade Gutierrez.

Era quarta-feira, 4 de outubro. Estava em jogo um bilionário pacote de obras. Acertaram “compromissos” — expressão usada na reunião para definir dinheiro, propina, gratificação pelo favorecimento à empresa nas contratações.

O executivo Nora designou o adjunto Quintaes para “operacionalizar” os pagamentos. Nelma, com o poder da intimidade com o governador, indicou Wilson Carlos Carvalho, secretário de governo, como representante de Cabral. Mais tarde, ele introduziu o subsecretário de Obras, Hudson Braga, que exigiu adicional de 1% a mais, sua “taxa de oxigênio”.

Os negócios fluíram. O secretário Carvalho transferiu a cobrança a Carlos Emanuel Miranda, dono de sólidos laços com o governador: era seu mais antigo sócio, contador dele e da família, e casado com uma prima de Cabral. Em sete anos de governo, amealhou pequena fortuna, R$ 13 milhões, na coleta de propina em apenas duas empreiteiras, Andrade e Carioca.

No começo deste ano, quando aprofundaram a análise da súbita e suspeita riqueza do ex-governador, procuradores acionaram o Sistema de Investigação de Registros Telefônicos e Telemáticos, instalado na procuradoria-geral, em Brasília. Conhecido como Sittel, esse mecanismo permite aos investigadores receber, processar e cruzar registros telefônicos e telemáticos extraídos, via WebService, diretamente dos computadores das empresas de telecomunicações de todo o país.

Logo perceberam o mistério do telefone 21-9972-33315. Em amostragem, identificaram 507 chamadas dos secretários, do coletor de propinas e de executivos das duas empreiteiras para aquele número. Notaram, também, intenso fluxo de mensagens eletrônicas criptografadas por programas (Telegram, Wickr, Confide e Wire) que permitem a destruição programada do conteúdo.

O enigma começou a ser desvendado numa consulta à concessionária. O telefone estava cadastrado em nome de Nelma de Sá Saraca. Porém, os diálogos gravados liquidaram as dúvidas: a linha era usada exclusivamente pelo governador. Foi a forma que ele escolheu para ocultar a identidade nas comunicações sobre pagamentos dos “compromissos”. Nelma, na vida real, era Cabral na clandestinidade. Nunca houve no Palácio Guanabara uma mulher clandestina e poderosa como Nelma. Estão morando juntos em Bangu 8.

José Casado

O ritmo da fome não é o da burocracia

Ribeirinhos vão à audiência pública exigir seus
direitos violados pela hidrelétrica de Belo Monte
– Vocês hoje vão pra casa de vocês. Quando vocês chegarem lá, vocês têm empregada, a comidinha de vocês tá lá, os filhos de vocês tão bem.
– Nós não.
Maria Francineide Ferreira dos Santos costumava segurar o remo. Hoje, empunha o microfone. Ela quase grita. É uma mulher no limite. Neste momento, a audiência pública já chega perto do fim no centro de convenções de Altamira, no Pará. Maria Francineide pressente que pode não haver conclusão, e o temor aumenta. Depois dali, ela, como tantos, não têm para onde voltar. É uma audiência pública para garantir que os ribeirinhos atingidos pela hidrelétrica de Belo Monte tenham uma vida. Mas o que está em jogo, neste momento, é que a “vida” não é um conceito abstrato, a vida é.

Este é o grito de Maria Francineide. Enquanto para uns, os que têm casa para voltar, a vida pode ser discutida, e até filosofada, para Maria Francineide e outras centenas a vida urge porque a morte urge. O desespero de Maria Francineide é que aqueles que têm poder para decidir sobre a sua vida não entendem – ou fingem que não entendem – que a vida não é algo apenas sobre o que se fala, mas algo em movimento de morte.

Havia pelo menos dois tipos de pessoas reunidas naquela sexta-feira, 11 de novembro: aqueles para quem a fome é apenas uma palavra; aqueles para quem a fome é. É nesta diferença que a tragédia se instala no auditório da cidade amazônica: aqueles para quem a fome é apenas uma palavra têm o poder de decidir sobre a fome daqueles para quem a fome é.

1) O que Maria Francineide disse para os que sabem ler e escrever

Maria Francineide precisa que entendam. E o tom de sua voz se eleva um pouco mais:

– Tem autoridade aqui. Vocês sabem ler e escrever, eu não sei. Mas eu sei falar. E eu quero os meus direitos. Eu não tenho mais como pedir pra vocês: olhem o meu caso. Porque eu já falei tudo o que tinha pra falar. O que mais querem que eu peça pra vocês? Esmola? Eu não sou mendiga! Eu sou ribeirinha, eu sou pescadora. E eu quero os meus direitos como mulher, como cidadã. Me perdoem, mas é meu grito de socorro!

Maria Francineide faz na sua fala essa outra divisão: aqueles que dominam a palavra escrita e aqueles que contam com a palavra oral. Ela deixa explícito em qual palavra está o poder de decidir sobre os destinos. Aqueles que, como ela, contam a vida pela oralidade, com muita frequência não são contados na escrita. Sem ser contados, não contam. Quando o governo federal decidiu construir Belo Monte, eles não foram sequer ouvidos. Tampouco foram contemplados no mapa das consequências do barramento do rio Xingu. Sem estar na letra, era como se não existissem. Maria Francineide não lê nem escreve, mas sabe do que fala.

Neste momento, Maria Francineide se dirige principalmente a dois “que sabem ler e escrever”: Suely Araújo, a presidente do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente), e Amauri Daros, representante da Norte Energia, a empresa concessionária de Belo Monte. Eles estão ali chamados pela procuradora da República Thais Santi, que há anos denuncia as violações de direitos humanos e ambientais produzida pela construção de uma hidrelétrica conhecida na região como “Belo Monstro”.

Qual é a monstruosidade de Belo Monte? Na arquitetura desenhada nos corredores de Brasília, o público e o privado se misturam. A arquitetura financeira da obra, hoje estimada em 30 bilhões de reais, a maior parte financiada por recursos públicos do BNDES, está sendo investigada pela Operação Lava Jato. Mas a catástrofe humanitária causada por ela segue se desenrolando no Xingu com níveis cada vez maiores de desespero. O barramento do rio barrou a vida de Maria Francineide e de milhares de outros. O que ela grita – e é isso que precisa ser escutado – é que o barramento das vidas não pode ser tratado apenas como metáfora. O barramento barra. E aquele que quer viver é impedido de viver.

Cada ribeirinho que sobe ao palco e empunha o microfone carrega nos olhos aquela dureza que vem do desespero. Essa é uma sombra nova no olhar dos xinguanos. “Vou dizer para vocês o que é direito. Nós não queríamos a Norte Energia na nossa região. Hoje eu não consigo sustentar a minha família com a pesca. Hoje eu tou mendigando o pão. Sabe o que é mendigar o pão? Esperar que o vizinho dê um pouco de leite pra minha filha?”, diz Gilmar da Silva Gomes. Dá as costas para o público. Ele quer falar para os da palavra escrita: “Não tenho estudo. Uso o meu português, o meu modo de falar. Mas tou com vergonha de seus professores, acho que vocês precisam voltar pra escola um pouquinho. Sabem o que é o Xingu pra nós? É o nosso banco, é a nossa vida. Vocês estão ganhando bilhões. Como puderam botar fogo nas nossas casas sem nem pagar indenização? Pelo amor de Deus, o que tá acontecendo? Querem botar esse monte de pai de família na cadeia?”.

A tensão é crescente, ela sobe junto com o tom de voz. Os atingidos por Belo Monte esperam muito da audiência pública.
Leia mais a reportagem de Eliane Brum

Composição geral

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Há uma certa mentalidade se disseminando de que o problema é a corrupção dos outros, e que agora, que já me livrei da corrupção dos de quem eu não gosto, nós vamos fazer uma composição geral
Luís Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal

O sonho dos ratos

Era uma vez um bando de ratos que vivia no buraco do assoalho de uma casa velha.

Havia ratos de todos os tipos: grandes e pequenos, pretos e brancos, velhos e jovens, fortes e fracos, da roça e da cidade. Mas ninguém ligava para as diferenças, porque todos estavam irmanados em torno de um sonho comum: um queijo enorme, amarelo, cheiroso, bem pertinho dos seus narizes.

Comer o queijo seria a suprema felicidade...

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Bem pertinho é modo de dizer. Na verdade, o queijo estava imensamente longe, porque entre ele e os ratos estava um gato... O gato era malvado, tinha dentes afiados e não dormia nunca. Por vezes fingia dormir. Mas bastava que um ratinho mais corajoso se aventurasse para fora do buraco para que o gato desse um pulo e, era uma vez um ratinho...

Os ratos odiavam o gato. Quanto mais o odiavam mais irmãos se sentiam. O ódio a um inimigo comum os tornava cúmplices de um mesmo desejo: queriam que o gato morresse ou sonhavam com um cachorro...

Como nada pudessem fazer, reuniram-se para conversar. Faziam discursos, denunciavam o comportamento do gato (não se sabe bem para quem), e chegaram mesmo a escrever livros com a crítica filosófica dos gatos. Diziam que um dia chegaria em que os gatos seriam abolidos e todos seriam iguais. “Quando se estabelecer a ditadura dos ratos”, diziam os camundongos, “então todos serão felizes”...

- O queijo é grande o bastante para todos, dizia um.

- Socializaremos o queijo, dizia outro.

Todos batiam palmas e cantavam as mesmas canções. Era comovente ver tanta fraternidade. Como seria bonito quando o gato morresse! Sonhavam. Nos seus sonhos comiam o queijo. E quanto mais o comiam, mais ele crescia. Porque esta é uma das propriedades dos queijos sonhados: não diminuem: crescem sempre. E marchavam juntos, rabos entrelaçados, gritando: “o queijo, já!”...

Sem que ninguém pudesse explicar como, o fato é que, ao acordarem, numa bela manhã, o gato tinha sumido. O queijo continuava lá, mais belo do que nunca. Bastaria dar uns poucos passos para fora do buraco. Olharam cuidadosamente ao redor. Aquilo poderia ser um truque do gato. Mas não era. O gato havia desaparecido mesmo. Chegara o dia glorioso, e dos ratos surgiu um brado retumbante de alegria. Todos se lançaram ao queijo, irmanados numa fome comum. E foi então que a transformação aconteceu. Bastou a primeira mordida. Compreenderam, repentinamente, que os queijos de verdade são diferentes dos queijos sonhados. Quando comidos, em vez de crescer, diminuem. Assim, quanto maior o número dos ratos a comer o queijo, menor o naco para cada um. Os ratos começaram a olhar uns para os outros como se fossem inimigos. Olharam, cada um, para a boca dos outros, para ver quanto do queijo haviam comido. E os olhares se enfureceram. Arreganharam os dentes. Esqueceram-se do gato. Eram seus próprios inimigos. A briga começou. Os mais fortes expulsaram os mais fracos a dentadas. E, ato contínuo, começaram a brigar entre si. Alguns ameaçaram a chamar o gato, alegando que só assim se restabeleceria a ordem.

O projeto de socialização do queijo foi aprovado nos seguintes termos: “Qualquer pedaço de queijo poderá ser tomado dos seus proprietários para ser dado aos ratos magros, desde que este pedaço tenha sido abandonado pelo dono”. Mas como rato algum jamais abandonou um queijo, os ratos magros foram condenados a ficar esperando... Os ratinhos magros, de dentro do buraco escuro, não podiam compreender o que havia acontecido. O mais inexplicável era a transformação que se operara no focinho dos ratos fortes, agora donos do queijo. Tinham todo o jeito do gato, o olhar malvado, os dentes à mostra. Os ratos magros nem mais conseguiam perceber a diferença entre o gato de antes e os ratos de agora. E compreenderam, então, que não havia diferença alguma. Pois todo rato que fica dono do queijo vira gato. Não é por acidente que os nomes são tão parecidos.

Rubens Alves

Com o pé na porta

Desde que o Brasil é Brasil, nas periferias mais pobres e nas comunidades que, no século passado, eram chamadas de favelas, a polícia entra com o pé na porta, sem mandato. Prende primeiro e, na de porrada, prova (?) depois. Ou mata primeiro e pergunta depois.

Essa violência – sabida, fotografada, filmada e descrita – tem apoio, se não explícito, mas no silêncio, de grande parte população. A turma do “bandido bom é bandido morto” acha que, por lá, a polícia faz o que deve ser feito. Se não era bandido, convivia com a bandidagem. Crime inafiançável, sujeito a pena de morte, no entender desses.

Nos dias de hoje, o pé na porta chegou ao andar de cima da hierarquia social. Não vem fardado de PM, mas com os emblemáticos coletes pretos à prova de balas da PF. Não mete o pé (ainda). Nem chega na tal calada da noite habitual da PM. Vem cedinho, toca a campainha e, se não prontamente atendida, pula portão, entra pela janela. Porta mandatos judiciais, leva sem porrada, mas não dispensa o estardalhaço. Chega chegando e com muitos - policiais, viaturas e imprensa.

Com japonês de tornozeleira (por estripulias anteriores) ou hyspiter, o pé na porta, mais suave, da PF tem aprovação nada silenciosa e, se não majoritária, quase. Afinal, pega, leva e prende gente de uma das nobrezas brasileiras – news e olds lordes da classe política, hoje posta na categoria de demônio nacional.

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Para eles, como para os vizinhos da bandidagem, vale o vale tudo em favor da purificação do Brasil. E tá lascado quem ousa dizer: não é bem assim, não pode ser assim. Lei tem que ser respeitada até para casos dos que concentram o ódio do momento. O tal, da vez, que encarna o criminoso chefe de feitos de alguma outra vez.

Tema esse “peraí”. Veja bem como fala, onde fala, com quem fala porque pode render execração pública. Denota rabo preso, petezice aguda, indignidade de quem ta defendendo o seu, foi - e é - conivente com toda essa lambança. Seguro, deve ser um desses parceiros dos corruptos desgraçados, que mais dia, menos dia terá – bem feito! e se Deus quiser! – a PF na sua porta, o xadrez como paisagem. De preferência, sem nem precisar de mandato e em cadeia nacional. É pé na porta mesmo!

Como tenho menos de 100 anos, é a primeira fez que sinto, vejo, ouço e leio o ódio nacional assim ululante e pululante, em turbas reais e virtuais, de punhos fechados, dentes cerrados, olhos injetados, bocas cuspindo fogo, a pedir e permitir tudo – e sem qualquer limite, particularmente os legais - contra os seus odiados.

Debaixo da minha insignificância e munida da minha assim não tão vasta leitura, temo o destemor desse ódio. “Médo” com os climas de Roma incendiada, de fogueiras para queimar bruxas, da guilhotinagem ampla, geral e irrestrita do período de terror da Revolução Francesa, de Hitler a caçar e assar judeus, ciganos e gays, de Stalin a prender e matar contrários – verdadeiros ou supostos. Sem tribunais. Ou com tribunais servis e obedientes.

Todos com apoio, aplausos - e até delírios – populares e a conivência do que hoje seria denominado meios de comunicação que, panfletários, ajudavam a incendiar as massas.

Com poucos onde ainda é possível, sem suspeição ou ameaça de linchamento, manifestar absoluta perplexidade com, por exemplo, chantagens explícitas de um Poder sobre o outro – até com forças-tarefas especialmente nomeadas para a pressão –, além do tradicional a que ponto chegamos, ousamos ainda indagar:como e onde geramos essa sociedade espetaculosa e odienta no vice e no versa?

Qual das nossas nobrezas, saberá puxar a turba para vencer o embate e exercer o comando? (Desde Cabral, uma das nossas nobrezas costuma comer e outra e por aqui ficar até virar rango de novo). Onde isso – de agora - vai parar?

Um dia a coisa explode

Proibição das coligações partidárias nas eleições para a Câmara dos Deputados, cláusula de barreira para reduzir o número de partidos políticos, teto para gastos nas campanhas eleitorais e voto em listas partidárias em vez de candidatos a deputado federal. Some-se a reforma da Previdência Social e se terá a pauta das reforma políticas até o final do ano.

Desse sucinto elenco apenas um contraria a natureza das coisas: a obrigação do eleitor votar apenas na sigla do partido de sua preferência, sem fulanizar o voto.

Desde o Império que a gente escolhe em quem votará. Tanto faz se João, Benedito ou Antônio, mas tem sido assim há séculos. Agora, querem mudar o objetivo do voto para deputado. O eleitor que escolha o seu partido, cabendo aos dirigentes de cada um preparar as listas dos que serão votados. Claro que se colocarão nos primeiros lugares, nem precisando fazer campanha ou gastar dinheiro.

Será um retrocesso. Deixar de optar por quem pretendemos que nos represente afastará a decisão personalizada. Poderão ser eleitos candidatos despojados da vontade do eleitor, bafejados por amizades ou motivos menos nobres.

As reformas políticas se limitarão ao imprescindível, havendo dúvidas, também, sobre a questão previdenciária. Aumentar o prazo para aposentadorias parece certo, mas pelo jeito não se cuidará da reforma trabalhista. Suprimir direitos levantará protestos, será bom ir com calma. O desemprego ultrapassa todos os limites enquanto inexistem sinais de arrefecer. Um belo dia a coisa explode, sem que se possa conter a indignação geral.

Imagem do Dia

Yakushima enchanted forest Japan
Floresta encantada de Yakushima (Japão)

Moro constrange STF a cada prisão da Lava Jato

Sérgio Moro está fazendo escola. Antes um cavaleiro solitário visto com desconfiança pelos mais céticos que não acreditavam na evolução da Lava Jato, Moro virou celebridade, um exemplo para a magistratura brasileira, mas um transtorno para os ministros do Supremo Tribunal Federal. Enquanto em menos de dois anos, o juiz paranaense condenou políticos e empresários as mais severas penas, os ministros do STF continuam batendo boca em público. Brigam entre eles para impor suas ideias e levam para às ruas a roupa suja que deveriam lavar em casa.

Dormem em berço esplêndido na principal Corte do país dezenas de processos envolvendo políticos que sequer foram analisados. Um caso exemplar de leniência é o do Paulo Maluf. Procurado em mais de 100 países do mundo, com fotos estampadas nas telas dos computadores dos aeroportos internacionais, o deputado federal, que representa São Paulo, continua impune. Insisti em dizer que é inocente, mas o dinheiro resgatado nas contas lá fora é dele e da família. Se tivesse caído nas mãos do Moro, jamais teria saído da cadeia quando foi preso pela primeira vez.

Ninguém se entende no principal tribunal do país. Quando dois ministros deixam de discordar nos autos para colocarem suas divergências em público é porque existe uma desordem jurídica lá dentro. Gilmar Mendes não se conforma com a decisão casuística de Lewandowski em não cassar os direitos políticos da Dilma depois da votação do impeachment que a afastou da presidência. Discutem na Praça dos Três Poderes como vizinhos malcriados de ponta de rua. Na verdade, a Corte, que deveria ser a guardiã da nossa Constituição, está contaminada. Seus ministros parecem influenciados pelos políticos que os apadrinharam, restringindo suas ações lá dentro.

É por causa disso que eles não agem com autonomia e isenção quando têm que decidir sobre um processo que envolve um dos seus padrinhos. Não é o caso de Moro, um juiz concursado, qualificado, com cursos no exterior. Os ministros do STF não se reciclam. Burocratizam-se quando vestem a toga e dali só saem para um pijama. É assim e assim será enquanto não se mudar esse modelo de decisão monocrática de escolha dos membros do STF que aceita nos seus quadros até advogado reprovado em concurso de juiz.

Sérgio Moro quebrou o retrovisor da justiça brasileira. Está indicando outro caminho para o país. E aqueles que não querem enxergar essa nova realidade tendem a se constranger com as decisões corajosas de um juiz que até pouco tempo fazia assistência a ministros dentro do próprio STF. Cada sentença proferida por ele é um soco no estômago do tribunal que continua mantendo na gaveta os processos da Lava Jato.

Os últimos acontecimentos no Rio de Janeiro não deixam dúvidas da procriação de Moros pelo Brasil. Por decisão de outros juízes, está no presídio de Bangu o ex-governador Sérgio Cabral e Anthony Garotinho, outro ex, algemado numa cama de hospital. Quem, até a prisão dos dois, acreditava que tal fato fosse acontecer? Aconteceu e mais uma vez o STF assiste o noticiário constrangido, pois Cabral – pelo menos ele – é um dos mais citados na lama da corrupção da Petrobrás, acusado também do desvio de mais de 220 milhões de reais em obras federais.

Sempre que é questionado sobre a lentidão dos processos, o STF responde com a mesma ladainha: poucos juízes para muitos processos. Balela, desculpa esfarrapada. Se continuar a olhar pelo retrovisor, o tribunal corre o sério risco, ele próprio, de virar arquivo.

O rombo e a propina

Custo da corrupção é muito maior do que o valor desviado. Nos cofres públicos do Rio estão faltando R$ 17 bilhões para que haja equilíbrio. O esquema de corrupção revelado pela Operação Calicute fala em R$ 224 milhões desviados.

A ordem de grandeza é diferente e pode-se pensar que é exagerada a afirmação de que há relação entre o rombo e a propina. O elo existe porque o ambiente de corrupção leva à má gestão e exaure os recursos públicos.

Os milhões da corrupção produzem os bilhões dos desequilíbrios fiscais porque toda a administração passa a girar em torno da lógica do crime. Para que o esquema funcione, é preciso retirar transparência, não prestar contas, tornar todos os números opacos. As decisões passam a ser determinadas pela corrupção.

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Qual empreendimento deve ser beneficiado com redução de impostos? Deveria ser o que mais empregos cria, mais aderência tem às vantagens competitivas do estado, mais retorno trará no futuro. Mas acaba sendo aquele que aceita pagar propina. O resto não é levado em consideração porque o importante é se enquadrar na lógica do suborno que passa a dominar a gestão. As empresas que farão as obras não são escolhidas pela eficiência ou pelo melhor custo/ benefício do projeto, mas porque são as que já combinaram tudo previamente e fazem parte do cartel. Em cada obra começa a haver sobrepreço e isso se espalha pelos fornecedores dos fornecedores. O custo vai inchando no ritmo da ganância de todos.

Os cofres públicos vão sendo minados por obras com custo muito mais alto do que seria o normal. E a própria noção de preço se perde porque o cartel domina as obras do estado e as empresas vencedoras das licitações vão se alternando em uma escala que elas mesmas fazem e trabalham com valores que elas escolhem. Depois que o esquema está montado no estado, a conversa passa a ser entre as empresas sobre que preços e que comissões são convenientes para aquele grupo de cúmplices.

No Rio, houve uma farra de benefícios fiscais a empresas por critérios que até agora os governantes não conseguiram explicar, mas se sabe que elas também participavam desse propinoduto, ou dando dinheiro diretamente para o esquema ou indiretamente através do contrato de serviços em empresas de participantes. A existência dos incentivos fiscais é uma porta aberta para a corrupção porque só algumas são beneficiadas enquanto o resto das empresas instaladas no estado continua pagando os mesmos impostos. Ainda que não haja cobrança de propina, o sistema gera distorções na economia. Em um momento como este, em que faltam recursos públicos, como é possível justificar que o governo abra mão de recolher impostos?

Quem acompanhou os relatos feitos pelos policiais e investigadores da Operação Calicute viu a repetição dos mesmos esquemas revelados em outros casos. As autoridades usam pessoas próximas, e de confiança, como operadores para cobrar as comissões, que podem se chamar pixuleco, contribuição, doações para campanha, ou oxigênio. As empresas pagam um percentual para o grupo e têm lucros exorbitantes com a cobrança de um preço muito maior pelas obras. O roteiro é tão conhecido que é até espantoso que ele seja sempre repetido. Há alguns que são mais explícitos. Se ficar comprovado o que foi dito, esse é o caso do ex-governador Sérgio Cabral, que cobraria propina com parcelas mensais altas e crescentes.

Cabral cultivou a imagem de bom administrador e durante algum tempo houve muita esperança. A Secretaria da Fazenda esteve sob o comando de Joaquim Levy. O Rio tinha um projeto de combate ao crime com a Secretaria da Segurança controlada por José Mariano Beltrame e conseguiu um salto no desempenho das escolas com a Secretaria da Educação nas mãos de Wilson Risolia. Não foi sem razão que seu nome passou a ser cotado até para projetos mais altos.

A conta tem que somar perdas tangíveis e intangíveis. O sobrepreço de cada obra, o custo das propinas pagas aos governantes e seus operadores, o descuido com as contas públicas, a perda de bons projetos na área da educação e segurança. O Rio está agora em situação de calamidade. Quanto disso resulta da corrupção? Difícil o cálculo exato, mas a corrupção deixa por onde passa um rastro de destruição. Seu custo nunca é apenas o valor do que foi desviado.

Da pobreza ao Romanée Conti

Em 5 de outubro de 2002, véspera do primeiro turno da eleição presidencial, Lula, Duda Mendonça, Antônio Palocci e mais dúzia e meia de companheiros cujos nomes não ficaram registrados para a história jantaram na Antica Osteria Dell'Agnolo, em Ipanema. Nas libações do encontro, com mesuras que superavam, de longe, as prestadas ao candidato, Duda ofereceu a Lula uma garrafa do vinho Romanée Conti. A primorosa dádiva, à época, teve seu preço estimado em R$ 6 mil.

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A notícia correu o Brasil. Remover uma rolha de Romanée Conti era e continua sendo gesto de suntuosidade. Coisa para milionários de hábitos espalhafatosos, dados a excentricidades. Políticos, em parte alguma do mundo, bebem de certas marcas, ainda que possam pagar por elas pois expressam um nível de consumo desalinhado dos padrões da sociedade com a qual procuram se identificar. O fato se tornou tão notório que o dono do restaurante criou uma espécie de oratório onde, em estojo de madeira, ficou entronizada, a famosa garrafa, com a inscrição "Lula lá 05/10", até ser roubada durante incursão noturna de um larápio em 2009.

Nunca me pareceu convincente o discurso que procura escriturar, como bem das esquerdas, a sensibilidade face às carências alheias, a austeridade e o senso de justiça. Um mínimo conhecimento de História mostra o elevado padrão de vida que a nomenklatura dos países do Leste Europeu se atribuía, em total discordância com a escassez imposta ao restante da população. Quem vai a Cuba logo ouve falar dos que “tienem la heladera rellena” (geladeira cheia), ou seja, dos que gozam os privilégios de consumo concedidos à alta burocracia partidária, longe das restrições determinadas pela libreta (de racionamento).

Com isso não quero dizer que não existam, na esquerda, pessoas sinceramente preocupadas com questões sociais e que vivam segundo os valores que proclamam em seu discurso. Mas recuso totalmente a tese de que esses mesmos valores não sejam igualmente assumidos e praticados por pessoas de outras correntes ideológicas, ou mesmo sem ideologia alguma. Por outro lado, o caminho da maior prosperidade jamais passou pelos conceitos socialistas fundamentais - estatismo, luta de classes, negação da propriedade privada, planificação econômica. Por saberem disso, esses radicais que andam por aí fazendo discurso contra a liberdade de mercado e contra as empresas privadas, não lutam para implantar suas ideias com o intuito de trabalhar no chão de alguma fábrica. Nem pensar! O que eles querem é ganhar de presente a poltrona, o tapete e a adega do patrão. Ou, mais régio e mais adequado a tempos bicudos, a diretoria de uma estatal ou fundo de pensão.

Os anos seguintes vieram mostrar o espantoso surto de enriquecimento pessoal que acometeu grande parte da elite governante do país, hoje às voltas com a Justiça e à beira de um ataque de nervos. Os primeiros sintomas de que voraz organização criminosa se aproximava do poder, contudo, foram emitidos já naqueles primeiros momentos em que começou a faltar, aos vitoriosos, a virtude da moderação. Eles enriqueceram e o Brasil quebrou.

O poder é um vinho perigoso. Retirada a rolha pode trazer à tona verdades inconfessáveis.
Percival Puggina