terça-feira, 22 de novembro de 2016

O ritmo da fome não é o da burocracia

Ribeirinhos vão à audiência pública exigir seus
direitos violados pela hidrelétrica de Belo Monte
– Vocês hoje vão pra casa de vocês. Quando vocês chegarem lá, vocês têm empregada, a comidinha de vocês tá lá, os filhos de vocês tão bem.
– Nós não.
Maria Francineide Ferreira dos Santos costumava segurar o remo. Hoje, empunha o microfone. Ela quase grita. É uma mulher no limite. Neste momento, a audiência pública já chega perto do fim no centro de convenções de Altamira, no Pará. Maria Francineide pressente que pode não haver conclusão, e o temor aumenta. Depois dali, ela, como tantos, não têm para onde voltar. É uma audiência pública para garantir que os ribeirinhos atingidos pela hidrelétrica de Belo Monte tenham uma vida. Mas o que está em jogo, neste momento, é que a “vida” não é um conceito abstrato, a vida é.

Este é o grito de Maria Francineide. Enquanto para uns, os que têm casa para voltar, a vida pode ser discutida, e até filosofada, para Maria Francineide e outras centenas a vida urge porque a morte urge. O desespero de Maria Francineide é que aqueles que têm poder para decidir sobre a sua vida não entendem – ou fingem que não entendem – que a vida não é algo apenas sobre o que se fala, mas algo em movimento de morte.

Havia pelo menos dois tipos de pessoas reunidas naquela sexta-feira, 11 de novembro: aqueles para quem a fome é apenas uma palavra; aqueles para quem a fome é. É nesta diferença que a tragédia se instala no auditório da cidade amazônica: aqueles para quem a fome é apenas uma palavra têm o poder de decidir sobre a fome daqueles para quem a fome é.

1) O que Maria Francineide disse para os que sabem ler e escrever

Maria Francineide precisa que entendam. E o tom de sua voz se eleva um pouco mais:

– Tem autoridade aqui. Vocês sabem ler e escrever, eu não sei. Mas eu sei falar. E eu quero os meus direitos. Eu não tenho mais como pedir pra vocês: olhem o meu caso. Porque eu já falei tudo o que tinha pra falar. O que mais querem que eu peça pra vocês? Esmola? Eu não sou mendiga! Eu sou ribeirinha, eu sou pescadora. E eu quero os meus direitos como mulher, como cidadã. Me perdoem, mas é meu grito de socorro!

Maria Francineide faz na sua fala essa outra divisão: aqueles que dominam a palavra escrita e aqueles que contam com a palavra oral. Ela deixa explícito em qual palavra está o poder de decidir sobre os destinos. Aqueles que, como ela, contam a vida pela oralidade, com muita frequência não são contados na escrita. Sem ser contados, não contam. Quando o governo federal decidiu construir Belo Monte, eles não foram sequer ouvidos. Tampouco foram contemplados no mapa das consequências do barramento do rio Xingu. Sem estar na letra, era como se não existissem. Maria Francineide não lê nem escreve, mas sabe do que fala.

Neste momento, Maria Francineide se dirige principalmente a dois “que sabem ler e escrever”: Suely Araújo, a presidente do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente), e Amauri Daros, representante da Norte Energia, a empresa concessionária de Belo Monte. Eles estão ali chamados pela procuradora da República Thais Santi, que há anos denuncia as violações de direitos humanos e ambientais produzida pela construção de uma hidrelétrica conhecida na região como “Belo Monstro”.

Qual é a monstruosidade de Belo Monte? Na arquitetura desenhada nos corredores de Brasília, o público e o privado se misturam. A arquitetura financeira da obra, hoje estimada em 30 bilhões de reais, a maior parte financiada por recursos públicos do BNDES, está sendo investigada pela Operação Lava Jato. Mas a catástrofe humanitária causada por ela segue se desenrolando no Xingu com níveis cada vez maiores de desespero. O barramento do rio barrou a vida de Maria Francineide e de milhares de outros. O que ela grita – e é isso que precisa ser escutado – é que o barramento das vidas não pode ser tratado apenas como metáfora. O barramento barra. E aquele que quer viver é impedido de viver.

Cada ribeirinho que sobe ao palco e empunha o microfone carrega nos olhos aquela dureza que vem do desespero. Essa é uma sombra nova no olhar dos xinguanos. “Vou dizer para vocês o que é direito. Nós não queríamos a Norte Energia na nossa região. Hoje eu não consigo sustentar a minha família com a pesca. Hoje eu tou mendigando o pão. Sabe o que é mendigar o pão? Esperar que o vizinho dê um pouco de leite pra minha filha?”, diz Gilmar da Silva Gomes. Dá as costas para o público. Ele quer falar para os da palavra escrita: “Não tenho estudo. Uso o meu português, o meu modo de falar. Mas tou com vergonha de seus professores, acho que vocês precisam voltar pra escola um pouquinho. Sabem o que é o Xingu pra nós? É o nosso banco, é a nossa vida. Vocês estão ganhando bilhões. Como puderam botar fogo nas nossas casas sem nem pagar indenização? Pelo amor de Deus, o que tá acontecendo? Querem botar esse monte de pai de família na cadeia?”.

A tensão é crescente, ela sobe junto com o tom de voz. Os atingidos por Belo Monte esperam muito da audiência pública.
Leia mais a reportagem de Eliane Brum

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