sexta-feira, 15 de junho de 2018

Recuperação milagrosa de Maluf realimenta as esperanças de cura do câncer

Foi uma surpresa para toda a classe média, menos para meia dúzia de jornalistas que conhecem os bastidores das tenebrosas relações entre os políticos e os tribunais superiores. Há meses de dois meses, no dia 17 de abril, os advogados do deputado Paulo Maluf (PP-SP), liderados por Antonio Carlos de Almeida Castro, mas conhecido como Kakay, divulgaram um desesperado “relatório médico complementar do Hospital Sirio-Libanês”, anunciando que o conhecido parlamentar se encontrava praticamente em estado terminal.

O boletim revelava que Maluf tinha sido foi internado devido a um “quadro generalizado que inclui pneumonia, atrofia e câncer de próstata”, além de 20 outras doenças ou sintomas da maior gravidade, como “múltiplas metástases ósseas, encefalopatia tóxico-metabólica, osteoporose, degenerações da coluna vertebral, depressão, confusão mental, alteração de humor e comportamento”, entre outros males.

O relatório tido como “complementar” do Hospital Sírio Libanês assinalava que os exames de tomografia computadorizada por emissão de pósitrons, realizados dia 11 de abril, constataram “progressão de doença neoplásica com múltiplas metástases ósseas secundárias à neoplasia prostática no sacro, na coluna (vértebra L4) e no ramo público superior esquerdo”, além de “doença neoplásica em anastomose vesicouretral”.

De posse deste sinistro relatório, o advogado Kakay fez um carnaval em Brasília, dando sucessivas entrevistas para denunciar a perversidade de se manter na penitenciária um condenado nessas condições, e pediu uma liminar ao Supremo para conceder prisão domiciliar a Maluf.

No sorteio eletrônico, o advogado deu muita sorte, pois a liminar foi distribuída ao ministro Dias Toffoli, que é amigo particular de Kakay e frequentador assíduo do bar do Piantella, quando o estabelecimento pertencia ao festivo advogado.

Toffoli ficou tão arrasado com a petição do amigo Kakay e nem se preocupou em cumprir as regras e requisitar parecer de uma junta médica oficial. Alegando se tratar de uma questão humanitária, o ministro concedeu de imediato a prisão domiciliar a Maluf, a ser cumprida na mansão do deputado, em São Paulo.

Reunindo as últimas forças, Maluf conseguiu pegar um jatinho de volta a São Paulo no dia 30 de abril. Devido a seu gravíssimo estado de saúde, esperava-se que o deputado fosse direto para ser internado no Sírio Libanês, mas ele preferiu ir para casa, e até se pensou que fosse último desejo de moribundo.

Mas agora vem uma sensacional notícia. Maluf está cada vez melhor, teve uma recuperação milagrosa e o juiz da 4ª Vara de Execuções Penais de São Paulo, Rogerio Alcazar, autorizou o deputado a frequentar três sessões semanais de fisioterapia fora da prisão domiciliar, no CareClub Clínica de Medicina do Esporte.
Não é preciso dizer mais nada. Na literatura médica universal, jamais se viu um caso como este. Cerca de um mês após voltar para casa em estado terminal, sem fazer químio, rádio ou iodoterapía, Maluf estava recuperado da metástase cancerígena e até conseguia licença para fazer fisioterapia externa.

Como nenhum paciente terminal pode ser autorizado a fazer fisioterapia em Clínica de Medicina do Esporte, fica claro que Maluf está praticamente curado. E se assim é, o condenado deve ser devolvido à Penitenciária da Papuda para pagar sua dívida com a sociedade, como se dizia antigamente.

Famílias pobres brasileiras levariam 9 gerações para alcançar renda média

A chance de uma criança de baixa renda de ter um futuro melhor que a realidade em que nasceu está, em maior ou menor grau, relacionada à escolaridade e ao nível de renda de seus pais. Nos países ricos, o "elevador social" anda mais rápido. Nos emergentes, mais devagar - no Brasil, ainda mais lentamente.

O país ocupa a segunda pior posição em um estudo sobre mobilidade social feito pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) com dados de 30 países e divulgado nesta sexta-feira.

De acordo com o estudo O elevador social está quebrado? Como promover mobilidade social, seriam necessárias nove gerações para que os descendentes de um brasileiro entre os 10% mais pobres atingissem o nível médio de rendimento do país. A estimativa é a mesma para a África do Sul e só perde para a Colômbia, onde o período de ascensão levaria 11 gerações.


O indicador da OCDE foi construído levando em consideração a "elasticidade intergeracional de renda". Ou seja, quanto o nível de rendimento dos filhos é determinado pelo dos pais. A instituição ressalta no estudo que a simulação tem finalidade ilustrativa - para dar dimensão da dificuldade de ascensão social - e que não deve ser interpretada como o tempo preciso para que um domicílio de baixa renda atinja a renda média.

Na média entre os países membros da OCDE, a chamada "persistência" da renda intergeracional é de 40%. Isso significa que, se uma família tem rendimento duas vezes maior o que de outra, o filho terá, em média, renda 40% mais alta que a da criança que veio da família de menor renda.

Nos países nórdicos, a persistência é de 20%. No Brasil, de 70%, conforme a pesquisa.

Mais de um terço daqueles que nascem entre os 20% mais pobres no Brasil permanece na base da pirâmide, enquanto apenas 7% consegue chegar aos 20% mais ricos. Na média da OCDE, 31% dos filhos que crescem entre 20% mais pobres permanecem nesse grupo e 17% ascendem ao topo da pirâmide.

Isso é o que o estudo chama de "chão pegajoso" (sticky floor): a dificuldade das famílias de baixa renda de sair da pobreza.

Filhos de pais na base da pirâmide têm dificuldade de acesso à saúde e maior probabilidade de frequentar uma escola com ensino de baixa qualidade.

A educação precária, em geral, limita as opções para esses jovens no mercado de trabalho. Sobram-lhes empregos de baixa remuneração, em que a possibilidade de crescimento salarial para quem tem pouca qualificação é pequena - e a chance de perpetuação do ciclo de pobreza, grande.

Nesse sentido, a desigualdade social e de renda, destaca o levantamento, é definidora do acesso às oportunidades que podem fazer com que alguém consiga ascender socialmente.

"Além do chão pegajoso, países como o Brasil têm também tetos pegajosos (sticky ceilings)", acrescenta Stefano Scarpetta, diretor de emprego, trabalho e assuntos sociais da OCDE, referindo-se às famílias de alta renda.

O nível elevado de desigualdade também se manifesta sobre a mobilidade no topo da pirâmide. Aqui, é pequena a probabilidade de que as crianças mais abastadas eventualmente se tornem adultos de classes sociais mais baixas que a dos pais.

Scarpetta pondera que, ao contrário da tendência global de aumento da desigualdade, o Brasil conseguiu reduzir suas disparidades na última década, até o início da recessão. O país fez pouco, entretanto, para corrigir os problemas estruturais que mantêm em movimento o ciclo da pobreza - a qualidade precária da educação e da saúde e a falta de treinamento para os milhões de trabalhadores de baixa qualificação.

"O Brasil fez um bom trabalho tirando milhões de famílias da extrema pobreza, com o Bolsa Família, por exemplo. Falta agora fazer a 'segunda geração' de políticas", disse o economista à BBC News Brasil.

Pensamento do Dia


Rever a história para retomar o caminho

É a ignorância semeada pela censura das soluções que o mundo moderno dá aos problemas que nos afligem, mais que tudo, que garante a nossa permanência no estágio pré-republicano em que nos arrastamos

2013 é um marco ambíguo. Entrou para a história como o do “despertar do gigante adormecido” … mas de um despertar para o seu próprio vazio. Já lá vão mais de cinco anos e seguimos perdidos no espaço, incapazes de um discurso articulado; de distinguir causas de efeitos e aliados de inimigos; sabendo, vagamente, balbuciar os nossos “não” mas sem repertório que nos permita esboçar um único “sim” digno de ser abraçado como projeto para a nação. Somos o país que morre de fome por não saber pedir; que não consegue ler o menu das soluções institucionais modernas, arrastado que foi de volta para o limbo pré-republicano mediante o aparelhamento dos meios de difusão de cultura e informação e o aniquilamento das nossas universidades (as ultimas das Américas) como centros de pesquisa pura e busca do conhecimento. O país em cujas escolas cultua-se só o que fracassou, instila-se o ódio ao merecimento e proíbe-se mostrar, do mundo que deu certo, senão o que ele tem de pior.

Não é de hoje. A primeira faculdade chegou aos EUA com os colonos ingleses. E a América Hispânica já tinha 23 em funcionamento quando o Brasil fundou a sua primeira – de medicina porque a corte transplantada em 1808 precisava de médicos. Até então tudo que havia aqui era um colégio de teologia, instituição voltada, portanto, para a negação em nome do dogma e não para a busca do conhecimento.

No país onde a metrópole proibira desde sempre a produção e a importação de papel (e mais recentemente a entrada da informática) a primeira impressora chegou com 358 anos de atraso em relação à invenção de Gutenberg. Mas junto com a “Impressão Régia” (a única admitida) desembarcaram os censores.

“Posto numa balança o Brasil e na outra o reino, há de pesar com grande excesso para mais aquela primeira que esta última; e assim, a maior e mais rica parte não sofrerá ser dominada pela menor”, argumentava um alto funcionário do rei para justificar tão rígido cerco à informação e ao conhecimento. Não se alterou fundamentalmente a situação com a mudança da metrópole colonialista de Lisboa para Brasília. É a ignorância semeada pela censura das soluções que o mundo moderno dá aos problemas que nos afligem, mais que tudo, que garante a nossa permanência no estágio pré-republicano em que nos arrastamos.

A democracia moderna, essencialmente, é um arranjo de sobrevivência pactuado por comunidades isoladas em territórios hostis. Longe do rei e de qualquer socorro de fora elas tiveram, por si mesmas, de fazer e cobrar suas leis, decidir e executar suas decisões e prover sua própria segurança. Foi isso o “Pacto do Mayflower”. Foi isso, com quase um século de adiantamento em relação à versão saxônica, o arranjo das Câmaras Municipais das vilas portuguesas no Brasil. Isoladas umas das outras e do resto do mundo, havia nos seus governos um grau de soberania popular que nem a metrópole nem ninguém antes jamais vivera. Por mais de três séculos, de três em três anos, nossa gente organizou eleições, deu posse a governos, seguiu-lhes as determinações e os governantes entregaram seus cargos aos novos eleitos sem uma única quebra.

Nenhum outro povo na terra teve tão longa vivência de democracia. E até Tiradentes estivemos ao par da ponta mais moderna do pensamento político da época. O Brasil real organizou-se e construiu-se por si mesmo à margem do Brasil oficial, à margem do governo central instalado na praia e voltado para a metrópole antes e depois de 1808. Na informalidade, regido pelo costume, pela lei não escrita e financiado pelo “fiado”.

Só 15% da economia nacional, ao longo de todos os séculos do Brasil colônia, hoje sabe-se graças à econometria aplicada à historiografia a partir de 1970, era contabilizada e registrada nos anais da metrópole. A economia de exportação – e só ela – vivia no figurino casa grande e senzala, o “único que existiu” segundo os nossos historiadores “marxistas”. O outro Brasil, o do mercado interno, o da pequena propriedade, o dos empreendedores que produziam, movimentavam e comercializavam bens e serviços, pesando 85% de tudo que se fazia aqui, viveu na clandestinidade e à margem da lei até o primeiro governo da “república” tomada de assalto pelos ditadores do credo “positivista” que nos assombra até hoje. Foi por mera distração deles que Rui Barbosa teve a oportunidade de baixar, a 17 de janeiro de 1890, os quatro decretos que constituíram a “lei áurea” da iniciativa privada no Brasil. “As companhias ou sociedades anônimas, seja civil ou comercial o seu objetivo, podem estabelecer-se sem autorização do governo” rezava a peça que transformava num direito do cidadão investir sua poupança pessoal num empreendimento reconhecido pela lei … só que não. Prudente de Morais, o terceiro da “republica”, foi o primeiro e talvez o único presidente brasileiro de todos os tempos que conhecia e praticou a teoria por trás dessa expressão. Desde então têm havido mais esforços para fazer regredir que para fazer avançar o Brasil que Rui e ele vislumbraram.

Não tivemos uma nobreza hereditária mas a de toga a substituiu com “vantagem” pois até ao “rei” ela submeteu. O direito brasileiro é ainda o do “direito adquirido” à diferença que sustentou o absolutismo monárquico e não o dos Iluministas e da republica sem aspas que consagra a igualdade e criminaliza o privilégio.

E, cada vez mais, é isso que nos mata.

É essa a história que se conta na História da Riqueza no Brasil, livro que consolida uma inspiradora série de trabalhos anteriores de Jorge Caldeira, o libertador da historiografia brasileira. A história é a psicanálise das sociedades, e esta que ele conduz aponta claramente um caminho: o da soberania do povo a partir da base municipal. “A maior e mais rica parte” só se libertará da opressão da outra com a despartidarização das eleições, o voto distrital puro e os direitos de retomada de mandatos (recall) e referendo de leis pervertidas no âmbito dos municípios. Só então poderemos retomar a vocação democrática de que vimos sendo desviados a força.

Sol na sala

Como toda manhã
o homem lê o jornal
sentado no sofá

Como toda manhã
o cão espera
ao lado do sofá

O mundo de sempre está
no jornal esta manhã –
os mesmos fatos
as mesmas disputas
entre as mesmas facções rivais
os mesmos estupros e assassinatos
hediondos todos
alguns mais

O cachorro sabe que logo
o homem fechará o jornal
e como toda manhã
irá providenciar sua ração

É sempre assim mas hoje não –
o tempo corre e o cão
começa a se tornar impaciente
ameaça gemer
mas o homem não se move

O jornal continua aberto em suas mãos
desliza agora um pouco para o colo
e é como se o homem
lendo uma notícia boa afinal
tivesse se concedido
dormir um pouco
reconciliar-se com o mundo
como se já não houvesse
estupros assassinatos
peste fome
suplícios danação
jovens vozes caladas por balas
porque ousaram
colocar a esperança
entre as palavras
de sua canção

Como se o mundo
fosse só um homem
cochilando no sofá
observado pela fome
agora aflita do cão.

Futebol e política, desalentos distintos

A política brasileira chega à Copa do Mundo procurando um Tite para chamar de seu. Tal qual a Seleção Brasileira, nos últimos tempos, o país passou por vergonhas e humilhações que deixaram marcas. Primeiro, a tragédia Dilma/Felipão; depois, o fundo do poço no período Temer/Dunga. A torcida se desagregou. Os dados da pesquisa Datafolha, que apontam que os eleitores preferem “ninguém” ao cardápio proposto para outubro; demonstram também desânimo com o campeonato mundial. São desdobramentos do mesmo drama.

O fato é que o sistema político tanto quanto o esquema da Confederação Brasileira de Futebol entraram quase que simultaneamente em colapso. A autoimagem do país foi afetada dentro e fora de campo. Hoje, não falta quem pretenda se mudar destas paragens; Lisboa, por exemplo, virou coqueluche dos brasileiros mais ou menos endinheirados.

No meio do caminho, acreditou-se que substituir o técnico bastava. Vieram Dunga e Temer — embora Temer prefira ser comparado a Tite, nos resultados apresentados e no sentimento reinante, na antipatia da torcida e do eleitorado, está mais identificado a Dunga.

O país ainda amarga o fundo do poço. Não bastou trocar o treinador, o sistema continuou a apresentar os mesmos defeitos, com pouquíssimas alterações que não justificariam o esforço do apelo ao tapetão do impeachment. A relação custo/benefício foi baixa, talvez negativa. Revelou-se que o buraco era muito mais fundo que a indesmentível responsabilidade do PT. O sistema está inteiramente comprometido.

***

A crise dizimou a liderança política ou ela já se liquidara com o decorrer dos anos e o prolongamento de velhas práticas? Provavelmente, os dois. Transitório ou não — somente a história o dirá —, o vazio se estabeleceu e isto se reflete no cardápio eleitoral insosso. Afeta autoimagem do brasileiro. A lembrança do mar de camisas amarelas da seleção, num cenário de patos infláveis e discursos moralistas, gera hoje certo constrangimento. .

Além disso, é necessário considerar que no mundo sem fronteiras da hiperconectividade e da alta tecnologia, nada parece mais deslocado da modernidade que um político médio nacional. Ao mesmo tempo em que nada no Brasil parece mais integrado a esse ambiente que um jogador brasileiro em atividade na Europa, não importa o país. A política ficou velha.

Não admira que tanta gente afirme não ter candidato. Analistas das estatísticas eleitorais dirão que ainda é cedo para definição. E de fato é, só bem mais adiante a maioria do eleitorado se decidirá. Ainda assim, é evidente o desconforto.

Mais que de outras vezes, a eleição será “contra”. Não a favor de fulano ou de sicrano, mas contra beltrano, entendido como mal maior. O mal maior será o fantasma contando em proso nos próximos meses. Será ele que moverá o eleitor. O problema é que esse mal mora sempre do outro lado, sendo vários lados. A eleição se transforma na luta de todos contra todos.

Levará tempo para mudar. Um país não é um time de futebol. É bem mais difícil formar elencos; quase nunca os melhores estão à disposição. Desconsideram que o desastre coletivo os afeta. Tampouco, cabe treinar um país. O jogo da política se dá de imediato, online, just time,na vida real. Ademais, na política destes dias não há craques. Não há para quem tocar a bola. Não há Garrincha nem Romário que, sozinhos, possam resolver o campeonato.

O desalento com o futebol é muito mais simples que o desalento com a política. Já na primeira vitória, quem sabe no primeiro lance de ataque, ele se dissipará. Brasileiro não resiste a um jogo bem jogado. O país não se contém, gritará “GOL”. Na política, as coisa não são assim: a crise de confiança é mais perene e a história não tem a mesma capacidade de produzir líderes que o futebol tem em produzir craques. São ídolos feitos de barro diferente.

De modo que há que se conformar: a vida não é uma partida de futebol. Neste momento, ninguém no escrete político nacional possui a categoria de Marcelo, o poder de cobertura de Miranda, o senso de colocação de Marquinhos, a segurança de Casemiro, a versatilidade de Paulino, o fôlego de Coutinho. Na política brasileira, Jesus ainda não nasceu. E nem há Jesus que dê jeito. Não há Tite, nem há Neymar. O que se tem é tudo o que se tem. O que há para hoje. Não dá para abandonar o campo, nem se esconder na arquibancada.

Carlos Melo 

Imagem do Dia

Castelo da cascata (Polônia)

Nós e o que fazemos conosco 62,5 mil vezes

Às vezes, fechamos os olhos para não ver, esquecendo que assim tudo pode ficar ainda mais nítido. A política, território civilizacional para a sociedade encaminhar suas demandas, está sendo abolida: ou a coisa acaba na polícia, que destruiu o centro moderado e insinuantemente liberal, ou a coisa acaba nos extremos. Tanto a polícia como os extremos desprezam o diálogo, o encontro de antagonismos, a conciliação do possível; nuances definitivas e reflexão se perdem. Tudo bem se a polícia e os extremos não quisessem governar, mas eles querem, já o fazem e, em outubro, receio eu, passarão a fazê-lo formal e conjuntamente. Com a ameaça de piorar tudo representada no locaute do patronato caminhoneiro, torci para que líderes ─ inexistentes, reafirmou-se, pois todos que poderiam ser chamados assim se acovardaram e, em vez de agirem como líderes formando uma opinião, acompanharam a opinião formada ─ suspendessem clivagens políticas, ideológicas e eleitorais e levassem a nação (que, no apoio àquela paralisação, pareceu com a galinha favorável à canja) a emergir de si mesma saindo da bruma que a separa da realidade para que, então, protegêssemos a fundamental recuperação dos últimos dois anos depois dos 14 que cavaram nossa cova. Não se tratava do governo, mas de nós e o que faríamos conosco: o governo acabaria em 7 meses. Nosso voluntariado para a ruína prevaleceu, os dois anos desaconteceram em 10 dias e retomamos a cavação que parece realizar nosso destino como nação.


Nesta semana, foram divulgados números da nossa matança cotidiana, o que me fez pensar em outra situação que depende de um pacto nacional, uma trégua para os brasileiros se reconhecerem como uma nação: a vida, predada no país dos 62,5 mil assassinatos anuais. Num estado pobre como Sergipe, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes é de 64,7, informa o Mapa da Violência. A Organização Mundial da Saúde estabelece como limite entre civilização e barbárie a taxa de 10 homicídios por 100 mil habitantes. Em outro estado pobre, o Piauí, ela é de 21,8. Não é só o fato de se matar quase o triplo de um estado pobre para outro, demais dados também demonstram que a pobreza não é determinante para a violência, embora a influencie. No governo Lula, o Brasil cresceu (em 2010, alcançou 7,5% de crescimento), mas a criminalidade não regrediu; no Nordeste, região que cresceu mais na média, ela aumentou.

Tais níveis de crescimento e a alta popularidade deram a Lula as condições perfeitas para ampliar as reformas iniciadas pelo antecessor e continuar a modernização do país com reformas. Preferiu rejeitar o Brasil concreto, não quis saber do batente real de um presidente. Não depois de sonhar 30 anos consigo mesmo refestelado nos salões do poder, languidamente sedado pelo single malt, recostado com o cinto afrouxado, recitando palavrões na liturgia do que entende ser presidente. Viagens, Rose Noronha, bajulação, jatinhos exclusivos, agrados milionários de empreiteiros ─ isso é que é vidão de presidente. Ora, sempre fora vadio sem nada disso, então ia, agora com a chave do cofrão público, se aporrinhar com reforma política ou tributária? Modernização da infraestrutura? Melhora da educação, da saúde ou da segurança? Preferiu abrir os olhos para um brasil imaginário, fazer jorrar o petrolão e erigir uma fraude para sucedê-lo no sucateamento do botequim cafajeste que instalou onde havia um país. Nossa grana foi roubada, claro, mas foram a negligência e o complexo faraônico de Lula e a incompetência convicta de Dilma que impediram a implementação de políticas públicas eficazes em setores-chaves como educação, segurança, saúde e infraestrutura. O assalto ao futuro dos nossos filhos ou netos supera a rapina no cofrão.

Um exemplo dramático da falta de relação direta entre crescimento econômico e diminuição da criminalidade se ausentes ações específicas contra a bandidagem é o Rio Grande do Norte, cuja taxa de 14,9 assassinatos por 100 mil habitantes, em 2006, pulou para 53,4 em 2016. No período, nenhum estado do Nordeste conseguiu diminuir seus números macabros. Então, penso no estado de São Paulo que, comandado por Serra e Alckmin, reduziu, entre 2006 e 2016, à metade a taxa de homicídios por 100 mil habitantes: era 20,4 e chegou a 10,9. O país em luto diário deveria compreender o caso paulista; em vez disso, o que se vê é a repetição de uma mentira asquerosa ─ a explicação para redução estaria num pacto entre Alckmin e o PCC ─ e a tradução de um aspecto positivo em negativo ─ a PM paulista prende demais (juro que me escapa o que propõe quem diz uma coisa dessas). Nasci em Pernambuco (taxa de 47,3) e adoro São Paulo para onde vim ainda bebê, costumo dizer que a capital ─ “áspero colosso”, na imagem definitiva de Augusto Nunes ─ é minha cidade natal onde não nasci, mas não estou afirmando que aqui é o paraíso ou que seu exemplo deve ser replicado sem o exame de erros e acertos, apenas constato: São Paulo é o estado brasileiro onde se mata menos; se a taxa nacional fosse igual à paulista, os homicídios no país seriam pouco mais de 20 mil, não 62,5 mil. Há de haver algo bom aí.

O que importa é a vida. O debate, me parece, afastou-se disso de tal forma que o exemplo de São Paulo é renegado por clivagens eleitorais, políticas e ideológicas. Ela, a vida, está submetida a isso no Brasil ensanguentado. Menos primitivos fôssemos, fecharíamos os olhos para essas diferenças e veríamos o que estamos fazendo conosco. O sucesso de São Paulo merece um estudo e deveria inspirar figuras públicas decentes e a sociedade a deixarem de lado diferenças de qualquer tipo, numa trégua para recolhermos os abatidos no campo de batalha chamado cotidiano. As pessoas morrem quando são assassinadas e, quando morrem, elas ficam mortas: a obviedade está acontecendo 62,5 mil vezes e não parecem suficientes nem o fato de ser óbvia nem a repetição para que, neste país enlutado, vejamos o que estamos fazendo dele. Podemos ─ e devemos ─ discutir o que leva Sergipe a encabeçar a barbárie e o que faz São Paulo apresentar uma taxa civilizada. Reconhecer essa necessidade e esse direito irrenunciáveis é conciliar-se com a realidade que se impõe: estamos deixando de ser uma nação para sermos um amontoado de bandos embrutecidos com suas opiniõezinhas e raivinhas que, separados nessas diferenças detestáveis quando sobrepostas à vida, encontram-se 62,5 mil vezes no mesmo luto.

Liberdade para o privilégio

O STF vem construindo verdadeira jurisprudência das liberdades
Ministro Celso de Mello contra a condução coercitiva considerada "inconstitucional" e constitucional nos Estados Unidos, França, Alemanha, Bélgica, Portugal, Espanha, Holanda e Inglaterra

Se a moda pega...

Os onze ministros do STF contrataram um espaço especial no aeroporto de Brasília. Pela bagatela de R$ 374 mil anuais livraram-se dos “desconfortos” da sala VIP que já utilizavam e transformaram seus voos num prolongamento das mordomias habituais em que tudo é privativo, do elevador ao “capinha” (aquele funcionário que puxa e empurra a cadeira quando sentam).

A nova sala vem acompanhada de outras regalias, como o procedimento de embarque exclusivo, uma van que transporta o ministro até a aeronave e uma escada lateral pela qual ascendem à cabine de passageiros. Todo o pacote minimiza o contato de suas excelências com o povo a quem dizem servir na “distribuição” da Justiça.

Com isso, e à nossa custa, evitam que algum passageiro malcriado lhes dirija palavras desagradáveis, como eventualmente acontece. Palavras desagradáveis também são privativas no topo do Poder Judiciário. Só ministros podem proferir desaforos a ministros. E normalmente com razão.

A assessoria do Tribunal, segundo matéria do Estadão, informa que se trata de conduta de segurança. O dito soa estranho porque a regalia se refere apenas ao aeroporto de Brasília. Se for, mesmo, procedimento de segurança, presume-se que algo assim deva se reproduzir nas capitais do país, especialmente nos destinos frequentes dos senhores ministros.

Sublinhe-se, em favor da população e de sua opinião sobre o colegiado do STF, que todo o descontentamento que, por vezes, se expressa em indignação, é motivado pelos bons favores e pela tolerância da Corte para com a prazerosa impunidade dos corruptos. A situação se tornou, mesmo, intolerável.

Se esses procedimentos típicos de recepção de motel pegarem, logo haverá salas especiais para deputados, para senadores, para ministros do TCU, para ministros de Estado. Ou - quem sabe? – surgirá uma nova capital federal, em área mais remota do sertão, onde não haja povo para encher o saco.

Percival Puggina