quinta-feira, 23 de março de 2017

Os fantasmas do Planalto

A crise política e econômica, que se arrasta desde 2014, agravada pela incompetência e insensibilidade do presidente não eleito, Michel Temer, vem solapando com inacreditável rapidez o pequeno, mas essencial avanço conquistado pelas populações mais carentes ao longo da primeira década do século XXI. Segundo o estudo do Banco Mundial, “Prosperidade compartilhada e erradicação da pobreza na América Latina e Caribe”, entre 2001 e 2013 o percentual da população brasileira vivendo na miséria caiu de 10% para 4%. E isso, devido ao crescimento econômico, às políticas de transferência de renda e ao aumento do emprego formal.

Charge do dia 23/03/2017

Ao ufanismo irrealista da era Lula da Silva seguiu-se a tragédia anunciada do segundo governo Dilma Rousseff, marcado pela inapetência administrativa e inabilidade nas negociações com o Congresso. O resultado foi o golpe perpetrado por políticos corruptos, secundados por um Judiciário comprometido e assentados em movimentos de rua que, patrocinados por partidos de oposição, defendiam (e defendem) somente a manutenção dos privilégios da nossa elite. Em meio à turbulência, entre 2014 e 2016, a renda dos brasileiros caiu 9,1%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE). O cálculo leva em consideração a evolução do Produto Interno Bruto (PIB) – crescimento positivo de 0,5% em 2014 e negativo de 3,8% e 3,6% em 2015 e 2016, respectivamente – e o aumento da população, de 0,9% ao ano, em média.

O recente escândalo da “carne podre” – que revela que a ganância e a corrupção por aqui não têm limites – pode ser um fator a mais para prolongar a agonia da recessão. A venda de carnes para o exterior representa sozinha 7,5% do total das exportações – atrás apenas do minério de ferro e da soja – e, dependendo da reação internacional às notícias sobre a qualidade do produto nacional, poderá haver grande impacto no índice de desemprego (que já se encontra em 12,6% da população economicamente ativa) e no crescimento do PIB (estimado em pífios 0,49% para este ano). Um desastre, como afirmou o ministro da Agricultura, Blairo Maggi, caso os importadores suspendam a compra de carne brasileira.

A recessão tem sempre, entre suas vítimas preferenciais, os pobres. E, no meio deles, as crianças são as que mais sofrem. Segundo o estudo da Fundação Abrinq, “Cenário da Infância e Adolescência no Brasil”, cerca de 17 milhões de crianças de até 14 anos – o que equivale a 40,2% da população nessa faixa etária – pertencem a famílias de baixa renda, aquelas que sobrevivem com o equivalente a meio salário mínimo por mês (R$ 468,50 ou 152 dólares). O levantamento também mostra que em 2014 e 2015 foram registrados aumento de 11% no número de meninos e meninas de cinco a nove anos trabalhando. De 2005 a 2013, o trabalho infantil nesta faixa etária havia sido reduzido em 81%. A maioria das crianças, 85,5%, trabalha na área rural, ajudando a família.

Estudo publicado na revista norte-americana JAMA Pediatrics, divulgado aqui em EL PAÍS, indica que as estruturas cerebrais destinadas a processos críticos da aprendizagem são vulneráveis a circunstâncias ambientais da pobreza, como estresse, baixa estimulação e alimentação. Os autores do trabalho afirmam que os problemas decorrentes do desenvolvimento cerebral atípico explicariam até 20% da fraca performance escolar das crianças de famílias de baixa renda.

O Brasil vem piorando o desempenho no Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA), que avalia os conhecimentos de estudantes de 15 anos de 70 países ligados à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Em Ciências, caímos de 59º lugar no ranking em 2012 para 63º em 2016; em Leitura, descemos do 55º para 59º e, em Matemática, despencamos do 58º para 65º lugar. Um país se constrói com investimento massivo em educação – e também com a diminuição da diferença entre ricos e pobres.

O que talvez tenha assustado a família Temer no Palácio do Planalto, a ponto de eles voltarem a residir no Palácio do Jaburu, destinado à Vice-Presidência, sejam os fantasmas dos nossos sonhos mortos que vão se acumulando, geração após geração, na história deste país.

'O modo natural de se fazerem negócios e política no Brasil'

A sensação que se tem hoje, leitor, quando surge mais uma operação da Polícia Federal, como esta última, inadequadamente chamada de Carne Fraca, é a de que tudo está podre em nosso país. Refiro-me à atividade que tenha no enriquecimento pessoal seu único objetivo, qualquer que seja o ramo. Ninguém escaparia de um pente-fino.

Foi no mínimo oportuna, em recente artigo no “Diário do Comércio”, a lembrança, pelo empresário Stefan Salej, ex-presidente da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg), da frase de Hamlet, que dá título à peça teatral de William Shakespeare: “Há algo de podre no Reino da Dinamarca”. Ela se ajusta, como uma luva, ao momento de vergonha, ou de nojo mesmo, por que passamos todos nós.

Segundo Salej, esse dramático episódio “vai custar milhares de empregos”, além de acabar depressa “com o mito de que o agronegócio era uma maravilha”. “Vai afetar todo o setor agrícola e sua posição no mundo. Há algo de podre além da carne”, disse o empresário.

Quem não gostou nem um pouco da operação Carne Fraca, e, portanto, também não concorda com o que afirmou o ex-presidente da Fiemg, foi o presidente da Associação Brasileira de Proteína Animal, Francisco Sérgio Turra, que, como o próprio sobrenome o demonstra, não perde uma disputa acirrada. Ele considera a operação da PF exagerada, “dando a impressão de que a carne brasileira é toda fraudada, nada é confiável”. “Foi muito forte esse discurso”, arrematou.

As duas opiniões contêm verdades. A primeira se deixa levar pelo (quase) desespero, tais e tantas têm sido as causas da enorme decepção com o empresariado brasileiro, que, como disse Salej, aceita métodos escusos “como facilitadores de negócios”. A segunda tem lá suas razões quando diz que os casos ocorridos são apenas pontuais.

Na realidade, leitor, ninguém deveria espantar-se com o que acontece hoje em nosso país. Vivemos a culminância de tudo que aconteceu no passado, tanto distante quanto recente. Ouço a frase “precisamos passar a limpo este país” há mais de meio século. Surge em toda crise, mas ninguém – nenhum de nós – se dispõe a levá-la a sério. A penúltima – a do mensalão – veio com força, mas tudo “ficou como dantes no quartel de Abrantes”. As aflições passaram, e a vida continuou.

Agora, com a operação Lava Jato, devolve-se ao país nova oportunidade para que seja passado a limpo. A tarefa é hercúlea. Ninguém a conduzirá sozinho. Os Três Poderes têm que se entender. Não foi à toa que o ministro do STF Luís Roberto Barroso, em aula inaugural para alunos de direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio, numa tentativa de explicar a corrupção disseminada no Brasil, deu mais uma largada ao precisar o que levou o país à situação atual: “Não foram falhas pontuais, individuais, pequenas fraquezas humanas. Foi um fenômeno sistêmico, estrutural, generalizado. Tornou-se o modo natural de se fazerem negócios e política no Brasil. Esta é a dura e triste realidade”.

Ainda segundo o ministro, nosso direito penal foi o responsável pela construção de “um país de ricos delinquentes, um país em que as pessoas vivem de fraudes em licitações, de corrupção ativa e passiva, de peculato, de lavagem de dinheiro. Isso não foi um acidente”.

O que afirmou o ministro me lembrou frase dura do ex-presidente da Usiminas Amaro Lanari, dita há muitas décadas: “Minas e, de resto, o Brasil não têm empresários. Têm ganhadores de dinheiro”.

Lanari e Barroso foram perfeitos no diagnóstico.

A reforma do povão

A Previdência brasileira, incluindo o pessoal do INSS e servidores de todos os níveis, fechou o ano passado com um déficit de R$ 316 bilhões. Esse é o resultado do total de contribuições pagas pelos trabalhadores e pelos patrões, incluídos os governos, menos o total de aposentadorias e pensões pagas. Isso significa que o governo federal e os estaduais tiraram dinheiro de outros impostos e contribuições para pagar aos aposentados. Como o déficit é crescente, está na cara que, se não for contido, os governos acabarão tendo de usar toda a receita arrecadada para financiar o sistema de aposentadoria. Claro que essa é a situação impossível — a hipótese apenas indica que vai faltar dinheiro.

Como há déficit tanto no INSS quanto nos sistemas de aposentadoria de servidores, todos devem entrar na reforma, certo?

Não é bem assim.

A imagem pode conter: texto

O presidente Temer resolveu tirar do projeto de reforma todos os servidores estaduais — sistema esse que fez um déficit de R$ 89,6 bilhões no ano passado. Já estavam de fora os militares, cujo sistema teve um rombo de R$ 34,1 bilhões.

Portanto, daquele déficit total de R$ 316 bilhões, nada menos que R$ 123,7 bi, ou 40%, estão excluídos do projeto de emenda constitucional, a PEC da Previdência.

Como os servidores são os que têm maior poder de pressão sobre deputados e senadores que vão votar a reforma, não se exclui a hipótese de que os funcionários civis federais também sejam tirados da atual PEC. No ano passado, o déficit aí foi de R$ 43,1 bilhões.

No total, ficaria de fora um rombo de R$ 166,8 bilhões, referente a três milhões de aposentados, com os melhores rendimentos.

E assim ficaria na reforma só pessoal do INSS que, de fato, apresenta o maior déficit: R$ 149,7 bilhões. Só que para pagar 30 milhões de brasileiros, sendo que quase 60% recebem um salário mínimo.

Seria a reforma do povão.

Pessoal diz que se o fiscal estava achacando o frigorífico, então é lógico que a indústria estava produzindo carne podre.

Certo?

Pode não ser.

É perfeitamente possível, provável até, que o fiscal estivesse exigindo propina para não criar dificuldades. Isso acontece direto e não apenas na indústria da carne. A legislação brasileira é complexa, minuciosa e confusa, nos três níveis de governo, e para todos os setores da economia. Um fiscal mal intencionado e bem experiente acha pelo em ovo com facilidade.

Podem perguntar ao contador ou ao advogado trabalhista de qualquer empresa séria: você tem certeza de que está tudo certinho? A resposta honesta será algo mais ou menos assim: até onde a gente consegue ver, parece correto, mas nunca se sabe.

Esse ambiente, claro, favorece a propina.

Acrescente ao quadro o aparelhamento do Estado brasileiro, sistema em que os partidos ou grupos políticos trocam apoios por nomeações dos companheiros para as mais diversas funções de governo. E assim chegamos à corrupção política.

Muitos políticos, inclusive aqueles que se encontram no grupo dos honestos, sustentam que não há problema nas nomeações quando o indicado é tecnicamente aparelhado para o cargo.

É falso porque o nomeado sabe que está lá não por suas qualidades técnicas, mas pela força da indicação política. Os diretores da Petrobras apanhados na Lava-Jato eram qualificados para os cargos.

No governo FHC foi feita uma reforma administrativa com o objetivo de profissionalizar a gestão pública. Parte importante foi a criação das agências reguladoras, que deveriam ser independentes do aparelho político de governo.

Teve um funcionamento inicial razoável. Mas logo avacalharam. Especialmente a partir do governo Lula, os cargos nas agências foram loteados da mesma maneira que, digamos, uma diretoria sanitária do Ministério da Agricultura.

Em resumo: a “Operação Carne Fraca” parece ser um fiasco. Mas mostrou de novo aquilo que a Lava-Jato escancarou, que a corrupção política é sistêmica e geral.

E poderosa. Não é que muita gente está tentando aproveitar a falha da Polícia Federal nesse caso para melar todas as investigações? Algo assim: a carne não era podre, logo vamos cancelar as delações.

Não é fácil acabar com um sistema entranhado na cultura e na prática políticas.

Pode parecer exagerada a reação dos governos que embargaram a importação de carne brasileira. Afinal, o Brasil é o maior exportador mundial, a superpotência do setor, estabelecido no negócio há muito tempo, vendendo boi, frango e porco há décadas a mais de uma centena de países. Como não consta que os fregueses estrangeiros tenham adoecido com a carne brasileira, então qual o problema com uma operação policial limitada e equivocada?

O problema é que o Brasil está no noticiário internacional por causa da grossa corrupção na Petrobras, inicialmente, apanhada por uma famosa operação policial.

Ou seja, limpar a imagem da carne brasileira exige também apanhar a corrupção.

Carlos Alberto Sardenberg 

Gente fora do mapa

carol beckwith and angela fisher -:
Tribo Dinka (Sudão)

Mais é menos

Pior do que os vazamentos seletivos só mesmo os crimes selecionados. Num país onde esquemas ilícitos são regra, a mera escolha de qual deles vai ser investigado e receberá a atenção do público é, por consequência, um ato político. Na semana em que se conheceriam as delações dos empreiteiros, os boiadeiros viraram os vilões da vez. Sai Lava Jato, entra Lava Vaca. Hoje, nada é mais valioso na política do que determinar a agenda – e eleger quem será lavado em público a cada ciclo noticioso.

Nos dias em que deveria desvendar os miúdos e graúdos do poder brasiliense, a Lava Jato foi muito mais notícia pelas críticas que recebeu do que pelos fatos que revelou. Não sem motivo. Os investigadores se esmeraram em atravessar a rua para escorregar em cascas de banana. Fizeram “coletiva em off” para vazar investigação ainda sigilosa, e, ironicamente, pressionaram blogueiro para descobrir a fonte de um outro vazamento.

Na competição pelo interesse do público, a Operação Satélites atingiu astros da política nacional, mas perdeu as manchetes para a reclamação de ministro do Supremo contra vazamentos – que atribuiu à Procuradoria-Geral da República – e sua ameaça de invalidar uma seleção de depoimentos de empreiteiros que entregam os morubixabas de Brasília. Foi meio truco meio xeque, mas deu certo: tirou a picanha do prato dos procuradores.

Na zoeira que mistura a podridão da Carne Fraca com o cimento superfaturado da Lava Jato tudo vira ruído e pouco sobra de significado concreto, além da impressão genérica de corrupção geral. Nessa explosão de fatos e versões, é muito mais fácil ocultar um indivíduo na multidão do que em um porão. Assim, o ministro da Justiça vai escapando de ter chamado de “grande chefe” e defendido quem seus subordinados da Polícia Federal acusam de comandar a corrupção no Ministério da Agricultura.


Se as investigações já competem entre si pelos olhos do público, qual a chance de mais alguém, além dos diretamente interessados, prestar atenção a uma discussão técnica, aborrecida e importante como o debate sobre se o voto para o Legislativo deve ser em lista ou nominal? Quem ainda lembra da acusação de que o ministro-chefe da Casa Civil mandou empreiteiros suspeitos entregarem R$ 1 milhão no escritório do amigo do presidente? Quem ouviu falar da carne fria quando só se fala em Carne Fraca?

Uns já saíram da agenda, outros nem sequer entraram. É natural que seja assim. A atenção humana é limitada, e a capacidade de processamento do cérebro é um milionésimo da quantidade de dados com os quais ele é bombardeado diariamente. Ignorar e selecionar é a única alternativa para não enlouquecer. Mas nem toda seleção é feita pelo indivíduo. Na maior parte, é terceirizada para algoritmos do Facebook, para editores de notícias (cada vez menos) e para suas fontes de informação (cada vez mais).

A briga para determinar a agenda pública acaba sendo, no fim das contas, a única que importa. O atual detentor do título de campeão mundial da modalidade é Donald Trump. Ele desenvolveu uma capacidade imbatível de chamar a atenção e desviá-la sempre que precisa. Faz isso várias vezes ao dia por meio do Twitter, de caras e bocas em “photo ops” ou de bonecos de ventríloquo.

No Brasil, a competição pelo microfone é feroz entre policiais federais, procuradores, juízes de primeira instância e ministros do Supremo. Já os parlamentares, corruptores e governo preferem o silêncio. Estimulam o ruído alheio para embaralhar a comunicação. Ao mesmo tempo, cuidam para que a agenda que lhes é negativa perca evidência, deixe de ser prioridade e caia no esquecimento. Soterrar é muito mais eficiente do que censurar.

Os delírios da carne

O problema não é a carne. O problema não é o tamanho das malfeitorias, nem o prejuízo às exportações. O problema é o Governo; o Governo que politiza a fiscalização de alimentos, que deveria ser estritamente técnica, rígida, intolerante, preocupada com a saúde da população, absolutamente desconhecedora das conveniências de partidos.

Boa parte do Ministério da Agricultura está loteada, aparelhada para servir a interesses partidários. Nos Estados onde houve mais problemas com a Operação Carne Fraca, o PMDB (ala Temer) e o PP, do ministro Ricardo Barros, comandam a Superintendência do Ministério da Agricultura do Paraná. Em Goiás, o poder é exercido pelo PTB, na pessoa do deputado Jovair Arantes. Quem cuida da qualidade da carne?


Quem cuida da qualidade da carne são os próprios produtores e exportadores, que sabem o custo da negligência na redução das vendas internacionais. Já Temer oferece churrasco a representantes dos países exportadores – e mantém a mesma política de loteamento do Governo que levou à questão da carne, sem notar que é esse o seu problema. Narra o bem informado Radar on-line que Temer sinalizou à bancada do PMDB mineiro na Câmara que lhe dará a próxima vaga no Ministério. Diante dos governos que temos, a qualidade dos alimentos que consumimos e exportamos é até boa demais.

As principais críticas à Operação Carne Fraca envolvem números. Foram dois anos de investigações e mais de mil policiais federais para autuar 21 dos 4.837 frigoríficos nacionais, dos quais foi preciso interditar três, responsáveis por menos de 2% da produção brasileira de carnes; dos 11.300 funcionários do Ministério da Agricultura, 33 foram afastados. E os 21 frigoríficos colocados sob fiscalização especial exportaram, em 2016, US$ 120 milhões. No total, 0,89% das exportações brasileiros de carne.

Mas o fato é que havia politicagem, que houve servidores que facilitaram aos infratores o que não deveriam facilitar, que foram encontradas coisas erradas – talvez não as que, no calor da notícia, levaram fontes e jornalistas a divulgar que vitamina C dava câncer. Pode ter havido exagero, mas tinha coisa errada. O estrago está feito. Como assinalou o jornalista gaúcho Fernando Albrecht, “o povo sempre acredita na acusação, mas nunca na defesa”. E com motivos.

Imaginemos que haja apenas um bife estragado em toda a imensa produção nacional. Uma porcentagem desprezível, sem dúvida. Mas, para quem comeu esse bife e passou mal, de que adianta saber que todo o restante da carne produzida no país estava em excelentes condições? E os importadores, por via das dúvidas, por que comprarão do Brasil e não da Argentina, do Uruguai ou da Austrália?A propósito, uma bela explicação em perguntas e respostas sobre a Operação Carne Fraca e os problemas causados por carne em más condições está neste link.

O príncipe Otto von Bismarck, principal responsável pela unificação da Alemanha, em 1871, criou uma frase definitiva: “Quanto menos soubermos como são feitas as leis e as salsichas, melhor dormiremos à noite”.

Entre a fraude e as alianças

O escândalo da carne mostrou mais uma vez o perigo do controle de amplos e importantes setores da administração pública por interesses político-partidários. Os meios de comunicação deram destaque aos casos de fraude, afinal concentrados em alguns frigoríficos e em poucos Estados. Os crimes apontados pela Polícia Federal são graves, mas de nenhum modo retratam a forma de operação de todo o setor. Danos para a indústria e para o comércio exterior brasileiro são inevitáveis, mas o episódio provavelmente será superado, quando o mercado – principalmente externo – tiver recebido e assimilado os esclarecimentos. Mas será necessário um esforço mais amplo e mais ambicioso para mudar o ambiente político e administrativo onde crimes contra o interesse público têm germinado e poderão continuar germinando, se velhos costumes forem mantidos.

O ministro da Agricultura, Blairo Maggi, exonerou os superintendentes de Agricultura, Pecuária e Abastecimento no Paraná e em Goiás, um indicado pelo PP, outro pelo PTB. O escândalo pode ter ficado restrito a esses 2 Estados, mas em outros 17 as superintendências continuam nas mãos de pessoas apontadas por partidos políticos. Antes das demissões, 10 eram controladas pelo PMDB, 5 pelo PP, 2 pelo PSDB, 1 pelo PR e 1 pelo PTB.

O ministro pretende, segundo se informou em Brasília na terça-feira, mudar todo o esquema a partir de maio, reservando a pessoal de carreira o posto de superintendente.


A mudança já estava prevista em decreto assinado pela ex-ministra Kátia Abreu, no fim do mandato da presidente Dilma Rousseff. Uma lei de maior alcance, aprovada no ano passado, fixou novos critérios para preenchimento de postos de alto nível nas empresas públicas e de economia mista. Formação técnica e tempo de experiência no setor ou em áreas conexas passam a ser condições para a ocupação dos cargos. Para os postos mais altos são necessários 10 anos de experiência. Este critério pode ser dispensado, no caso de funcionários de carreira admitidos por meio de concurso, mas continua sendo necessária a comprovação de capacidade.

Esse conjunto de regras pode favorecer consideravelmente a profissionalização do serviço público. No mínimo, os governantes e seus auxiliares de primeiro escalão terão restrições para preencher postos importantes das estatais e, provavelmente, da administração direta. Essa mudança é especialmente importante no Brasil, por causa do enorme número de postos de confiança. Na maior parte das democracias liberais, o número desses postos é inferior a 10 mil. Na administração federal brasileira há poucos anos havia cerca de 22 mil cargos de livre provimento, alguns preenchidos com pessoal de carreira, muitos com pessoal de fora. O critério político-partidário foi comum à maior parte dos casos. Com frequência, o preenchimento de postos decorreu das alianças partidárias. Foi um dos custos impostos ao País pelo presidencialismo de coalizão.

Alguns dos piores efeitos foram evidenciados em escândalos nas maiores estatais. A Operação Lava Jato chamou a atenção principalmente para a corrupção na Petrobrás, a maior companhia brasileira de capital misto, mas a ocupação predatória tem sido rotineira tanto nas empresas controladas pelo Tesouro Nacional como na administração direta.

Mas convém evitar ilusões. Mesmo com exigências de formação técnica e de experiência, a nova lei deixa espaço para escolhas baseadas em acordos políticos. Tanto as nomeações para as estatais como as seleções de chefes para a administração direta continuam sujeitas ao risco da influência partidária. O filtro poderá ser mais fino, mas o interesse político-partidário ainda poderá prevalecer. O risco só será eliminado, ou muito reduzido, se a livre nomeação ficar limitada a pouquíssimos postos e se a influência partidária for limitada, como deve ser, à linha de governo. Não cabe a chefes de partidos cuidar de contratos da Petrobrás nem de fiscalização de alimentos. Essa regra é essencial para a consolidação da democracia brasileira.

Paisagem brasileira

Arcos da Lapa (1946 ), Leopoldo Gotuzzo

Vice-presidente dos Correios exalta a gastança em viagem

Num momento em que o governo ameaça o país com aumento de impostos para cobrir um rombo de R$ 58,2 bilhões nas contas federais e que os Correios suspendem férias de funcionários por acumular prejuízos superiores a R$ 4 bilhões em dois anos, seria de bom tom que funcionários do setor público dessem bons exemplos.

Mas, entre vice-presidentes dos Correios e técnicos da empresa, parece que a falta de dinheiro não é problema. Desde 17 de março, um grupo de executivos está viajando pela Europa, num tour bancado integralmente pela estatal. A viagem vai durar até o dia 26 e contemplará quatro países.

O mais entusiasmado da viagem é Eugenio Walter Pinchemel Montenegro Cerqueira, vice-presidente Corporativo dos Correios. Ele adicionou, no Facebook, nove fotos e um vídeo. Na mensagem, ressalta as belezas de Berlim, na Alemanha. Para comprovar o entusiasmo dele, veja a reprodução abaixo.

Não custa reproduzir o texto de Eugênio: “Berlim linda cidade, domingo não funciona shopping, restaurantes e atividades culturais e históricas. Hanôver o interior do hotel aconchegante boa acomodação e restaurante nota 10”.

Pela autorização de viagem publicada no Diário Oficial da União, apenas uma cidade na Alemanha está prevista no roteiro: Leipzig. Não há previsão de os executivos dos Correios irem para Berlim ou Hanôver. Certamente, como dinheiro ali não é problema, mesmo os Correios estando como rombo superior a R$ 4 bilhões, não havia porque deixar de dar uma esticadinha. Basta apresentar as notas, que a empresa pagará. Mesmo que isso signifique impor mais restrições à grande maioria dos empregados da estatal.

Alertado por amigos, Eugênio retirou todas as fotos de sua viagem do Facebook. Afinal, não haveria porque esfregar a gastança na cara de todos os funcionários dos Correios, que só poderão tirar férias um mês antes de completarem dois anos de trabalho ininterruptos.

Não se estranha tudo o que está ocorrendo nos Correios, a empresa, assim como todas as estatais, vem sendo loteada por indicações políticas em troca de apoio no Congresso. Os prejuízos acumulados decorrem da má-gestão, de negócios fechados sem embasamento técnico e do despreparo dos gestores. Mas por que se importar com isso se o controlador dos Correios é o Tesouro Nacional, que, no frigir dos ovos, acabará cobrindo os buracos nas estatais?

Paraíso do desvio

O que me impressiona é que, mesmo diante da Lava Jato, as quadrilhas brotam em todos os escaninhos da vida brasileira – quadrilhas que acham que nunca serão pegos. Outro dia, conversei com um administrador de uma universidade privada. No momento em que as universidades caem aos pedaços, estão arruinadas, as universidades privadas vão bem com a grana que recebem dos alunos, via Fies e Prouni.
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Ou seja, ao invés de bancarmos as universidades públicas, facilitamos a vida das universidades privadas – usando um truque ideológico: com o Fies e o Prouni os jovens pobres puderam fazer o ensino superior, afirmam os ideólogos. O que fazer?
Ronaldo Conde Aguiar

Exageros inadmissiveis

Não se sabe bem se como presidente do Tribunal Superior Eleitoral ou como ministro do Supremo Tribunal Federal, a verdade é que Gilmar Mendes anda extrapolando. Não se passa um dia sem que ele se manifeste sobre temas jurídicos, políticos e econômicos, sempre polemizando e levantando opiniões favoráveis e contrárias, numa evidência de não ser essa a função dos integrantes da maior corte nacional de Justiça. Pelo menos, de acordo com a máxima de dever a Justiça ser cega, sem inclinar-se por qualquer das questões que dividem as instituições, mas enxergando a ponto de dirimi-las.

Gilmar Mendes, aliás, enxerga muito, apesar de suas visões parciais, muitas corretas, outra nem tanto.


A mais recente produção do ínclito jurista foi acusar a Procuradoria Geral de Justiça de divulgar detalhes protegidos pelo segredo constitucional de justiça, a ponto de pretender a anulação de delações praticadas que deveriam permanecer em sigilo mas vêm sendo transmitidas à mídia, sabe-se lá por quem. Acusar a Procuradoria de ser a fonte dessas revelações, só com provas, que o ministro não tem, talvez porque não pode apresentar.

Para afastar esse perigoso entrevero de poderes, uma solução bastaria: acabar com o segredo de justiça em todas as questões. Estabelecer transparência em todas elas, mesmo que se em certos casos haja prejuízo para uma parte, ainda que corrigido nas etapas finais de todo julgamento. São os ônus da cegueira da Justiça.

A Procuradoria Geral de Justiça e a Polícia Federal foram acusadas por Gilmar Mendes de fazer chantagem, usando a imprensa e desmoralizando a autoridade pública. Pela extinção do segredo de Justiça, seriam evitados confrontos que apenas prejudicam as instituições, apesar de exageros e injustiças eventuais.

Omitir será sempre pior do que esclarecer. Quem for acusado que se defenda, apesar de acusações falsas e prejudiciais ao acusado.

Imagem do Dia

Water Fall East Java Indonesia:
Java (Indonésia)

Temer e Dilma provam: política é feita de farsa

Na política, todos são, em grau menor ou maior, falsos. Essa falsidade vai do ‘bom dia’ que um político dá a outro que gostaria de ver submetido a uma chuva de canivetes até a hipocrisia de um elogio dirigido a alguém detestável que a conveniência política se encarregou de dotar de qualidades extraordinárias. O relacionamento entre Dilma Rousseff e Michel Temer comprova essa teoria.

Chamado de “fraco” por Dilma, Temer reagiu numa conversa com o repórter Roberto D’Ávila, exibida na noite desta quarta-feira, na Globonews: “Prefiro ser fraco do que ser forte, porque os que se dizem fortes destruíram o país. Então, nesse sentido, eu prefiro a fraqueza à fortaleza. Mas fraco não sou. […] É que as pessoas confundem educação cívica, educação pessoal, com eventual fraqueza. Não vou mudar meu jeito. Sempre deu certo assim, vou continuar assim.” Até bem pouco, com os pés fincados no palanque, o mesmo Temer enaltecia a força de Dilma no combate à ditadura. Repare no vídeo abaixo.

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Dilma havia espicaçado Temer numa entrevista à repórter Maria Cristina Fernandes, publicada há seis dias no jornal Valor. “Não adianta toda a mídia falar que ele é habilidoso. Temer é um cara frágil. Extremamente frágil. Fraco. Medroso. Completamente medroso. […] É um cara que não enfrenta nada!''. A mesma oradora apresentava o companheiro de chapa nos comícios como “uma pessoa experiente, séria, competente e capaz.” Veja na cena abaixo.

Certos encontros e desencontros da política não têm grande serventia. Até porque a história e o pragmatismo mostram que os insultos não costumam impedir futuras alianças. Arrroubos como os de Dilma e Temer servem apenas para reforçar no imaginário da plateia a convicção de que o teatro da política é mesmo o território da farsa. Convém não levar a sério os seus protagonistas. Sob pena de fazer o papel de idiota.

Supermercados

Os supermercados são os palácios dos pobres. Não são só os azarentos e os mal alojados, os que ao longo das gerações foram reduzindo os gastos da imaginação, que frequentam e, de certo modo, vivem o supermercado, as chamadas grandes superfícies. As grandes superfícies com a sua área iluminada e sempre em festa; a concentração dos prazeres correntes, como a alimentação e a imagem oferecida pelo cinema, satisfazem as pequenas ambições do quotidiano.
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Gunduz Agayev.

Não há euforia mas há um sentimento de parentesco face às limitações de cada um. A chuva e o calor são poupados aos passeantes; a comida ligeira confina com a dieta dos adolescentes; há uma emoção própria que paira nas naves das grandes superfícies. São as catedrais da conveniência, dão a ilusão de que o sol quando nasce é para todos e que a cultura e a segurança estão ao alcance das pequenas bolsas. Não há polícia, há uma paz de transeunte que a cidade já não oferece.
Agustina Bessa-Luís

Carne fraca, miolo mole

A Operação Carne Fraca, que revelou irregularidades na atuação de frigoríficos brasileiros, traz aspectos característicos dos dias de hoje: muita luz, pouco calor, uma imensa egotrip por parte dos investigadores e uma grave irresponsabilidade por parte da mídia. Nesse caso, temos um grande bufê a quilo de denúncias. Algumas sérias, outras vagas.

Se houve malfeitos, não se pode omiti-los. Devem ser combatidos com os rigores da lei. Mas dada a relevância da indústria de carnes para o Brasil, a regra número um deveria ter sido a precisão ao se anunciar publicamente os resultados dessa operação. Não houve tal cuidado.



Em tempos de busca pelo espetáculo e de ativismo, muitas vezes ilegal e irresponsável, vale tudo. Em meio a tanta inconsistência, o noticiário mistura alhos com bugalhos – fruto também de uma crescente carência de recursos humanos na mídia, que, certamente, já viveu tempos melhores – e chegamos ao show business, tão necessário aos hits que fazem a alegria dos anunciantes. Até a hora que eles passarem a ser vítimas/protagonistas do espetáculo.

Relatório recente da Freedom House alerta para os riscos, concretos e preocupantes, que a liberdade de expressão está correndo. Por outro lado, porém, consumimos inúmeras notícias podres, contaminadas pela salmonella ideológica e pelo vício de destacar o negativo. Ninguém alerta para tal fenômeno nos tempos modernos. Tampouco a mídia, por empáfia e corporativismo, se dedica a fazer um exercício correto de autocrítica de seus erros e excessos. A ponto de, em alguns momentos, deixar que a imprecisão substitua o rigor jornalístico que alguns temas complexos exigem.

Enfim, é também um grave risco para a saúde pública e para a cidadania a contínua contaminação da população por notícias podres, pós-verdadeiras, factoides.

De onde vem o lixo

.ME FALE DO SEU TRABALHO...:
Uma das coisas mais alemãs no Rio de Janeiro, minha cidade anfitriã, é o programa Lixo Zero. Sou um grande fã. Desde a Copa do Mundo, as duplas do Lixo Zero rodam por Copacabana, Ipanema e outras partes nobres da cidade. São formadas por um empregado da companhia Comlurb – na maioria das vezes de olhar inseguro e ombros encolhidos – e por um policial da guarda municipal, armado de revólver e cassetete.

As duplas do Lixo Zero levam consigo uma mini-impressora para multas, que são emitidas toda vez que alguém joga uma lata de cerveja no chão (170 Reais), uma "tupperware" para farofa (425 Reais) e assim por diante. Lembram-me um pouco de Don Quixote e Sancho Pança, dois heróis improváveis, à procura de aventuras impossíveis sem desistir jamais. Entretanto, na maioria das vezes, vejo que ficam de preferência nos cantinhos com sombra e descansam de suas aventuras. Não sei se o Lixo Zero resolve o problema do lixo, mas com certeza passa a sensação de que as autoridades no Rio de Janeiro não têm outros problemas piores.

Jogar lixo no lixo é uma coisa que não causa o menor desconforto para um alemão. Nisso somos campeões. Famílias alemãs fazem separação de lixo em quatro recipientes diferentes, nossos jardins cheiram a composto orgânico, dirigimos de uma ponta a outra da cidade só para entregar as baterias usadas. Fazemos passeios de fim de semana no depósito de lixo. Não é piada. Quando queremos jogar alguma coisa grande fora, levamos lá. Os empregados nos dão instruções: "O lustre tem que ser jogado no compartimento número 10.2, mas, por favor, tirem a lâmpada primeiro, que a lâmpada tem que ser jogada no compartimento 11.8!" Acredito que alguns alemães nunca apreciem a natureza por estarem ocupados com seu lixo.

O programa Lixo Zero faz um alemão se sentir bem no Rio de Janeiro. Encontrei-me recentemente com um deputado de Berlim em Copacabana. Ele olhou tudo com interesse, muitas coisas daqui lhe pareceram estranhas e incomuns, mas aprovou o Lixo Zero com entusiasmo. Fomos a uma lanchonete com uma dupla do programa, pedimos sucos e discutimos longamente: sobre o lixo, o meio ambiente e as pessoas estúpidas que jogam papel e latas no chão. Por que fazem isso? Será que não pensam no planeta? Reinava a harmonia entre o deputado alemão e os empregados da Comlurb. Mas não obtiveram respostas satisfatórias para suas perguntas.

Alguns dias depois passei por uma festa de aniversário infantil no Rio. Estavam comemorando ao ar livre, na área de brinquedos de um parque público. Babás sacolejavam os pequenos convidados, as crianças comiam gelatina e cachorro quente, era uma festa para crianças de classe média. Uma mulher, que não tinha nada a ver com o aniversário, estava passeando no parque. Tinha a pele escura e não usava roupas chiques. Um menino de cerca de nove anos gritou para ela da festa: "Abre o lixo para mim!" A mulher olhou o menino, sorriu, abriu a tampa da lixeira. O menino mirou e jogou.

O saco de plástico com o cachorro quente meio mordido dentro caiu bem ao lado da lixeira. "Droga", disse o menino e desapareceu na sua festa. A mulher pegou o saco de plástico no chão e o jogou no lixo.

Thomas Fischermann