quinta-feira, 23 de março de 2017

A reforma do povão

A Previdência brasileira, incluindo o pessoal do INSS e servidores de todos os níveis, fechou o ano passado com um déficit de R$ 316 bilhões. Esse é o resultado do total de contribuições pagas pelos trabalhadores e pelos patrões, incluídos os governos, menos o total de aposentadorias e pensões pagas. Isso significa que o governo federal e os estaduais tiraram dinheiro de outros impostos e contribuições para pagar aos aposentados. Como o déficit é crescente, está na cara que, se não for contido, os governos acabarão tendo de usar toda a receita arrecadada para financiar o sistema de aposentadoria. Claro que essa é a situação impossível — a hipótese apenas indica que vai faltar dinheiro.

Como há déficit tanto no INSS quanto nos sistemas de aposentadoria de servidores, todos devem entrar na reforma, certo?

Não é bem assim.

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O presidente Temer resolveu tirar do projeto de reforma todos os servidores estaduais — sistema esse que fez um déficit de R$ 89,6 bilhões no ano passado. Já estavam de fora os militares, cujo sistema teve um rombo de R$ 34,1 bilhões.

Portanto, daquele déficit total de R$ 316 bilhões, nada menos que R$ 123,7 bi, ou 40%, estão excluídos do projeto de emenda constitucional, a PEC da Previdência.

Como os servidores são os que têm maior poder de pressão sobre deputados e senadores que vão votar a reforma, não se exclui a hipótese de que os funcionários civis federais também sejam tirados da atual PEC. No ano passado, o déficit aí foi de R$ 43,1 bilhões.

No total, ficaria de fora um rombo de R$ 166,8 bilhões, referente a três milhões de aposentados, com os melhores rendimentos.

E assim ficaria na reforma só pessoal do INSS que, de fato, apresenta o maior déficit: R$ 149,7 bilhões. Só que para pagar 30 milhões de brasileiros, sendo que quase 60% recebem um salário mínimo.

Seria a reforma do povão.

Pessoal diz que se o fiscal estava achacando o frigorífico, então é lógico que a indústria estava produzindo carne podre.

Certo?

Pode não ser.

É perfeitamente possível, provável até, que o fiscal estivesse exigindo propina para não criar dificuldades. Isso acontece direto e não apenas na indústria da carne. A legislação brasileira é complexa, minuciosa e confusa, nos três níveis de governo, e para todos os setores da economia. Um fiscal mal intencionado e bem experiente acha pelo em ovo com facilidade.

Podem perguntar ao contador ou ao advogado trabalhista de qualquer empresa séria: você tem certeza de que está tudo certinho? A resposta honesta será algo mais ou menos assim: até onde a gente consegue ver, parece correto, mas nunca se sabe.

Esse ambiente, claro, favorece a propina.

Acrescente ao quadro o aparelhamento do Estado brasileiro, sistema em que os partidos ou grupos políticos trocam apoios por nomeações dos companheiros para as mais diversas funções de governo. E assim chegamos à corrupção política.

Muitos políticos, inclusive aqueles que se encontram no grupo dos honestos, sustentam que não há problema nas nomeações quando o indicado é tecnicamente aparelhado para o cargo.

É falso porque o nomeado sabe que está lá não por suas qualidades técnicas, mas pela força da indicação política. Os diretores da Petrobras apanhados na Lava-Jato eram qualificados para os cargos.

No governo FHC foi feita uma reforma administrativa com o objetivo de profissionalizar a gestão pública. Parte importante foi a criação das agências reguladoras, que deveriam ser independentes do aparelho político de governo.

Teve um funcionamento inicial razoável. Mas logo avacalharam. Especialmente a partir do governo Lula, os cargos nas agências foram loteados da mesma maneira que, digamos, uma diretoria sanitária do Ministério da Agricultura.

Em resumo: a “Operação Carne Fraca” parece ser um fiasco. Mas mostrou de novo aquilo que a Lava-Jato escancarou, que a corrupção política é sistêmica e geral.

E poderosa. Não é que muita gente está tentando aproveitar a falha da Polícia Federal nesse caso para melar todas as investigações? Algo assim: a carne não era podre, logo vamos cancelar as delações.

Não é fácil acabar com um sistema entranhado na cultura e na prática políticas.

Pode parecer exagerada a reação dos governos que embargaram a importação de carne brasileira. Afinal, o Brasil é o maior exportador mundial, a superpotência do setor, estabelecido no negócio há muito tempo, vendendo boi, frango e porco há décadas a mais de uma centena de países. Como não consta que os fregueses estrangeiros tenham adoecido com a carne brasileira, então qual o problema com uma operação policial limitada e equivocada?

O problema é que o Brasil está no noticiário internacional por causa da grossa corrupção na Petrobras, inicialmente, apanhada por uma famosa operação policial.

Ou seja, limpar a imagem da carne brasileira exige também apanhar a corrupção.

Carlos Alberto Sardenberg 

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