quinta-feira, 19 de julho de 2018

Brasil vitaminado


Brasil: ame-o ou deixe-o?

Nos anos 1970, em plena ditadura, o adesivo com o slogan "Brasil - ame-o ou deixe-o" era popular. Durante o curto período em que a economia brasileira crescia em índices chineses, com falta de liberdade, censura prévia, corrupção discretamente à solta e pau batendo nos inimigos do rei fardado, a boçalidade triunfante encontrava o seu mantra: os incomodados que se retirem.

O país é um espaço privado, e é tão nosso quanto o petróleo. Ao mesmo tempo em que a ditadura estatizava empresas e cabeças, a pujante classe média, em boa parte amparada nos inesgotáveis proventos da máquina pública, privatizava-se, aproveitando-se da sobra de caixa.


Com a crise do petróleo, o estouro da bolha, a quebra do Brasil e a interminável agonia da hiperinflação, o país disfuncional voltou ao seu estado de espírito costumeiro, que é o culto da indignação. De tempos em tempos, em ondas incontroláveis, a indignação nos move furiosamente.

A indignação é o nosso paracetamol emocional-ideológico. O Brasil inteiro é um país indignado. Fora, Temer! Lamentamos o horror dos nossos políticos, insidiosamente eleitos por marcianos e venusianos desembarcados, que provavelmente se aproveitaram da nossa distração cívica para colocar esses corruptos e incompetentes no poder.

Enquanto isso, tudo anda celeremente para trás. Com saudades da caça ao boi no pasto da era Sarney, o governo que jamais terminou, queremos tabela na bomba do diesel e tantas quantas tabelas houver que paguem separadamente as nossas contas exclusivas e prioritárias.

Em outra regressão espetacular, faz sucesso o mais grotesco ideário político jamais verbalizado abertamente no país. Todos os dias, assistimos à estupidez sem programa, o estado puro da indignação irracional, também ela sob o manto escarmento da boçalidade, com o qual (dizem eles, caninos à mostra) é bom já ir se acostumando, porque o pior ainda está por vir, o que é motivo de júbilo, porrete e milícias na mão (que já estão tomando o Estado pelas beiradas).

Ao mesmo tempo, energúmenos (perdão, leitores —há palavras mais precisas para defini-los, mas hoje é domingo) de todos os matizes pedem, aos gritos: Ditadura Já!

Enquanto isso, sob as pulsões culturais do país irrevogavelmente mais miscigenado do mundo, uma cantora negra não pode representar o papel de outra cantora negra porque, por um defeito de cor, não é suficientemente negra. O que faremos com o singular, o único, o irreplicável, o sem-lugar? Não sei.

Em outra ponta da Federação Corporativa, o partido da hegemonia absoluta que haveria de nos redimir a todos está quase inteiro na cadeia (ou já passou por ela ou está a caminho), com o seu séquito gritalhão de apoiadores de alto e baixo coturnos.

Outros partidos, em ritmo bem mais lento, parecem também seguir firmes a caminho do cadafalso, sob inesperadas e assustadoras canetadas jurídicas, carnavalescas aqui, a sério ali —o que é isso, companheiro? Mas, milagre dos milagres no país dos milagres, a esperança é a última que morre: Jesus Cristo romperá as grades de cárcere e, mão abençoada estendida, fará o país inteiro sorrir de novo. Oremos!

Na irresistível teologia política brasileira, a eleição da Dilma, da escolha do nome à consagração das urnas, foi apenas a necessária provação dos justos, antes da indiscutível redenção final: um gigantesco conto do vigário, mas não podemos reclamar em altos brados.

Como se sabe, no conto do vigário clássico, a vítima sempre imagina que é ela que levará vantagem. Infelizmente, deu chabu. Mas, como a história é uma ciência, camaradas, todo desvio do caminho redentor é uma conspiração!

Brasil: ame-o ou deixe-o?

Quando, nos anos 1970, a ditadura me fez esta pergunta tácita, passei 14 meses na Europa, lúmpen ideológico, vendo o país de longe. Projeto de escritor, senti uma falta angustiante da língua brasileira e voltei; depois de um tempo, até o sotaque lusitano me irritava.

Como diz o poeta, minha pátria é minha língua e, para o bem ou para o mal, línguas jamais existem sozinhas: são o aquário onde nos movemos.

Para quem escreve, a língua é a face mais inexorável do destino, desde o nascimento. Ordem e progresso? Pátria educadora? Nós, que nos matamos tanto, inventamos o ridículo dos dísticos para nos negar.

Nem amá-lo (seria preciso mentir muito), nem deixá-lo (eu sou apenas daqui). Há espaço para um mínimo de esperança, na eleição que se aproxima? Não sei.
Cristovão Tezza

Rebeldes conscientes

Enquanto eles não se conscientizarem, não serão rebeldes autênticos e, enquanto não se rebelarem, não têm como se conscientizarGeorge Orwell, "1984" 

Sujos e mal lavados do Centrão montam o palco

Os partidos do centrão assumiram o comando das arrumações nos bastidores da sucessão de 2018. A cortina ainda está fechada. Mas já se ouve da plateia o ruído abafado da montagem do palco. Nesta quinta-feira, sujos e mal lavados da política se reúnem na casa funcional do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, para refinar o processo de escolha de um protagonista para sua trama. Disputam o tempo de TV e o amor do centrão Ciro Gomes e Geraldo Alckmin. Ex-presidiário do mensalão, Valdemar Costa Neto, que no espetáculo faz o papel de dono do Partido da República, assumiu as vezes de cupido.

Deve-se a Valdemar a perspectiva de reunificação do centrão. O personagem desgarrara-se do grupo para negociar uma aliança com Jair Bolsonaro. Fracassada a tentativa, comunicou aos velhos parceiros que está de volta. Como já foi alvejado pela língua de Ciro, Valdemar tem uma leve queda por Alckmin. Mas informou aos congêneres que topa qualquer negócio, desde que o empresário Josué Gomes da Silva, filiado ao PR, seja acomodado na posição de candidato a vice-presidente. Conforme já noticiado aqui, Josué já havia se colocado à disposição do grupo.


Participam dos entendimentos, além de Rodrigo Maia e do notório Valdemar, o senador Ciro Nogueira (PP), réu na Lava Jato, Paulinho da Força (SD), alvo de inquérito criminal no Supremo, Marcos Pereira (PRB), também pendurado na Lava Jato e ACM Neto (DEM). Consolidou-se entre eles o desejo de que seus respectivos partidos negociem os dotes eletrônicos de maneira unificada.

Fala-se muito em coalizão partidária e programa de governo. Mas a ausência de ideias denuncia, por assim dizer, o embuste. Ganha trinta segundos no horário eleitoral quem for capaz de explicar o que une o centrão além do propósito de invadir cofres públicos. Se alguém não estiver ligando o nome à pessoa, basta recordar que o grosso do atual centrão fez as vezes de milícia parlamentar de Eduardo Cunha, esticando-lhe o mandato e acompanhando-o até a porta da cadeia.

Com poucas variações, esse mesmo condomínio parlamentar dá as cartas há muito mais tempo do que o Tesouro Nacional poderia suportar. Sob FHC, a convivência com a intelectualidade tucana proporcionou ao centrão um excelente merchandising. Sob Lula, o Planalto de fachada operária resultou em ótimos negócios. Sob Dilma, o centrão desistiu de terceirizar o poder ao petismo. Substituiu a preposta de Lula, sem talento para a administração do balcão, por Michel Temer, especialista na matéria.

Nem as almas mais ingênuas acreditariam que partidos identificados com o suborno, o acorbertamento, o compadrio, o patrimonialismo e o fisiologismo percorrem os bastidores das negociações presidenciais com a disposição de passar os próximos anos dedicando-se a outra atividade que não seja a perpetuação dos vícios. Pode demorar mais alguns dias para acomodar todos em suas marcas e decidir quem, afinal, vai levar o tempo de TV do bloco.

Quando a cortina finalmente for aberta, a primeira cena deve ser divertida. Alguém deve achegar-se à boca do palco para anunciar: “Nós apoiaremos…” Ao fundo, os dois candidatos ajustarão a peruca e escolherão o nariz que utilizarão na campanha.

Admirável mundo novo

É uma pena, e ao mesmo tempo um péssimo sinal, o fato de temas de política externa terem tão pouca importância no debate político eleitoral no Brasil, país ao mesmo tempo abençoado e amaldiçoado pela enorme distância que mantém de qualquer conflito internacional relevante. Abençoado, pois ninguém aqui vai dormir hoje preocupado em saber se um ente querido vai matar ou morrer num conflito armado (não estou considerando a guerra interna brasileira como conflito armado clássico). Amaldiçoado, pois a imensa maioria da população – e os políticos em geral – não tem a menor percepção da natureza, abrangência e alcance de grandes contenciosos lá fora.

E olhem que Donald Trump, involuntariamente, nos deu uma espetacular demonstração da rapidez da destruição que está alcançando o sistema de relações entre as potências existente desde o fim da 2.ª Guerra Mundial. Ao lado do tirano russo Vladimir Putin, de quem foi livrar a cara num encontro em Helsinque, Trump encerrou uma extraordinária semana de massacre do que tinham sido até aqui alguns princípios norteadores da potência que foi decisiva para dar forma e garantir esse sistema do pós-guerra, os Estados Unidos.

O mundo no qual o Brasil terá de se virar agora é um lugar no qual o presidente americano xinga aliados e elogia adversários tradicionais; abomina instituições multilaterais (da OMC à ONU) e a coordenação de ações entre países; encara o comércio internacional como um jogo de soma zero, no qual se alguém ganha é às custas de outro; reflui para o pensamento de divisão do mundo em esferas de influência nas quais “homens fortes” podem agir a gosto; mantém que a aplicação de princípios ou valores é coisa de trouxa e só distrai de resultados práticos.

Não estou aqui (desculpem o cinismo) fazendo um julgamento moral sobre se esse admirável mundo novo é pior ou melhor do que o velho. Cumpre apenas registrar que boa parte do que foram apostas de política externa e inserção internacional do Brasil (supondo que as havia de maneira mais ou menos doutrinária) simplesmente caiu por terra. O que um novo governo aqui possa ter como norte precisará levar em conta um mundo muito mais perigoso e multipolar no “mau” sentido da palavra, isto é, não pela convivência mais ou menos harmônica de vários polos de poder, mas, sim, pela destruição de regras que até agora tiveram notável importância.

Duas delas estão sob ataque há algum tempo, não importa Trump. Democracias liberais e seus sistemas representativos passam por notável crise, em parte até acelerada pela revolução digital. Sob ataque está a ordem internacional do “livre” comércio – que inclui o livre movimento também de capitais e pessoas. A instabilidade parece ser o componente essencial de uma nova situação na qual não está claro como será a acomodação (pacífica ou nem um pouco pacífica) do surgimento de uma nova superpotência, a China.

É bastante óbvio que esse tipo de desafio se torna ainda mais difícil para um país como o Brasil, amarrado ao chão não por grilhões impostos por potências estrangeiras (como afirmam populistas imbecis, particularmente os de coloração petista, mas não só). Somos pequenos no mundo e diminuímos em termos relativos nas últimas décadas por conta de produtividade estagnada, economia pouco competitiva e paralisia política geral para resolver problemas (como a crise fiscal) que demandam urgentemente o recurso do qual mais precisamos, e não encontramos: lideranças políticas com visão.

No nosso próprio clima de “vamos ver o circo pegar fogo”, tem bastante gente aplaudindo Trump. É bom não esquecer que somos parte do circo.

Paisagem brasileira

Largo do Boticário (Rio de Janeiro), George Wambach

O medo do passado

O mercado está inquieto. Assustado. Com enorme dificuldade de fazer previsões, as empresas gestoras de investimentos privados recomendam aos seus clientes cautela, paciência e atenção, muita atenção. A incerteza com o cenário eleitoral extrapola a questão política e estabelece marcos na economia. Se muitos partidos não sabem ainda como ou com quem irão na eleição presidencial, sabem menos ainda as empresas cuja tarefa é fazer projeções que ultrapassem o calendário eleitoral.

São muitas as incógnitas que impedem qualquer tipo de antecipação de tendência econômica para os meses subsequentes à posse do futuro presidente. A primeira e mais visível delas é Lula. Embora ele esteja legalmente impedido de registrar candidatura e concorrer a qualquer cargo eletivo, em razão da Lei da Ficha Limpa, neste país nunca se sabe o que pode ocorrer. Sobretudo porque quem dará a última palavra é a Justiça. No Judiciário brasileiro, parece que nunca há uma última palavra.

Pois se Lula for candidato, e se for eleito, que governo fará? Se depender das palavras do próprio, o pau vai comer. Além dos ataques seguidos à imprensa e suas promessas de criar um mecanismo de controle externo (leia-se censura) da mídia, ele já disse que voltará desencarnado do Lulinha Paz e Amor e com um programa ao avesso da famosa Carta aos Brasileiros com que se elegeu em 2002. Com o PT, embora o presidente do partido diga outra coisa, a economia corre seriíssimo risco de sofrer seguidas intervenções do Estado.

O que pode se esperar de Ciro presidente? Bomba! Se levarmos em conta apenas o que diz o candidato, teremos um país sob permanente tensão. Ciro já avisou que vai revogar o leilão de partilha do pré-sal e reestatizar empresas que julgar “imprescindíveis”. Também intervirá no Banco Central, pois anunciou que a taxa de juros praticada no Brasil impede o seu crescimento. Vai aumentar os impostos de lucros e dividendos e criar um teto para o pagamento das dívidas da União. Ciro também atacou a reforma da Previdência e prometeu rever a trabalhista. Na terça disse que vai vetar o acordo Embraer/Boeing. Um deus nos acuda.

Bolsonaro, que operaria uma catástrofe nas questões sociais e de comportamento, tampouco seria grandes coisas nos demais setores. Ele já disse que é contra a reforma da Previdência e avisou que prefere acordos bilaterais a acertos múltiplos, como o Mercosul. Disse que vai colocar um general no Ministério da Educação para dar às escolas do país o perfil dos colégios militares. Apesar disso, agrada ao mercado ao prometer manter o tripé macroeconômico com taxas de câmbio flutuantes e metas fiscais e de inflação. Mas Bolsonaro tem um grave problema de credibilidade.

Marina defende rever algumas privatizações dos governos Temer e Dilma, mas de um modo geral sua plataforma para a economia agrada ao mercado. Suas vulnerabilidades, do ponto de vista do capital e de quem protege o capital alheio, são os prováveis entraves que uma política ambiental poderia impor aos negócios e a sua aparente falta de vontade para tomar decisões duras. Geraldo Alckmin é o mais querido no ambiente empresarial, mas até agora não deu sinais de que vai muito longe.

O fato é que, num cenário confuso e incerto, o melhor é não fazer apostas de longo prazo. Os analistas acreditam que, qualquer que seja o resultado em outubro, a inflação vai ter crescimento acelerado em 2019. Ninguém espera hiperinflação, mas todos projetam aumento para lá da meta já para este ano. Por isso, investimento com renda pré-fixada é fria, avisam os corretores. A ideia é evitar que o cliente faça uma aplicação a um valor imaginado para a inflação, e ela venha maior e o dinheiro aplicado acabe menor ao final do período.

“Em síntese, uma situação doméstica de inflação em elevação, desemprego alto, crescimento baixo, crise fiscal e eleição incerta, aliada a uma conjuntura externa adversa aos países emergentes, nos dá a convicção de que estamos diante de um cenário extremamente desafiador para o Brasil. A cautela e a prudência, como em 1989, serão imperativas”, diz um grande consultor de investimentos em carta distribuída entre seus clientes.

O gestor cita o ano de 1989 em razão da primeira eleição presidencial direta depois do fim da ditadura, e que lembra a de hoje pela multiplicidade de candidatos e de ideias. Naquele ano, ganhou Collor, que confiscou a poupança e outros investimentos e congelou contas bancárias. O paper foi batizado “Os fantasmas do passado voltam a assombrar”. Ninguém, em sã consciência, pode imaginar que um novo presidente seja louco e corajoso o suficiente para confiscar outra vez a poupança. Mas, quem tem passado, tem medo.
Ascânio Seleme

Mais que números


Em política o que conta é o caráter - não os caracteres
João Miguel Tavares

Os filhos do lixo

Há quem diga que dou esperança; há quem proteste que sou pessimista. Eu digo que os maiores otimistas são aqueles que, apesar do que vivem ou observam, continuam apostando na vida, trabalhando, cultivando afetos e tendo projetos. Às vezes, porém, escrevo com dor. Como hoje. Acabo de assistir a uma reportagem sobre crianças do Brasil que vivem do lixo. Digamos que são o lixo deste país, e nós permitimos ou criamos isso. Eu mesma já vi com estes olhos gente morando junto de lixões, e crianças disputando com urubus pedaços de comida estragada para matar a fome. 

A reportagem era uma história de terror – mas verdadeira, nossa, deste país. Uma jovem de menos de 20 anos trazia numa carretinha feita de madeiras velhas seus três filhos, de 4, 2 e 1 ano. Chegavam ao lixão, e a maiorzinha, já treinada, saía a catar coisas úteis, sobretudo comida. Logo estavam os três comendo, e a mãe, indagada, explicou com simplicidade: "A gente tem de sobreviver, né?". Não sei como é possível alguém dizer que este país vai bem enquanto esses fatos, e outros semelhantes, acontecem. Pois, sendo na nossa pátria, não importa em que recanto for, tudo nos diz respeito, como nos dizem respeito a malandragem e a roubalheira, a mentira e a impunidade e o falso ufanismo. 

Ouvimos a toda hora que nunca o país esteve tão bem. Até que em algumas coisas, talvez muitas, melhoramos. Mas quem somos, afinal? Que país somos, que gente nos tornamos, se vemos tudo isso e continuamos comendo, bebendo, trabalhando e estudando como se nem fosse conosco? Deve ser o nosso jeito de sobreviver – não comendo lixo concreto, mas engolindo esse lixo moral e fingindo que está tudo bem. Pois, se nos convencermos de que isso acontece no nosso meio, no nosso país, talvez na nossa cidade, e nos sentirmos parte disso, responsáveis por isso, o que se poderia fazer?
Lya Luft