quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Pensamento do Dia

 


Crise do clima é efeito não previsto do capitalismo

Todas as sociedades humanas evitam inesperados. Suas rotinas fabricam hábitos e costumes que, inutilmente, pretendem controlar o imprevisto entre o cultural e o natural irredutível — a cabeça e o pé, o lado direito e o esquerdo, o negro da noite e a claridade do dia, o Sol e a Lua, as enchentes, os terremotos, as tempestades e, acima de tudo, o silêncio da morte e a paz enternecedora do esquecimento.

Não há sociedade sem ideias sobre nascer, morrer, sobre a injustiça e as causas dos acidentes e doenças que subvertem as classificações. Tudo o que vivemos como básico ou essencial — aquilo que elege os populistas — é alvo de um mitológico e religioso reconhecimento em toda coletividade humana. Todas têm protocolos para a sovinice, o poder e, principalmente, para os inesperados — para o que atravessa as classificações que ordenam o Universo. Para os eventos individuais ou coletivos, incidentais e inesperados, que ameaçam — como ensinaram Durkheim e Mauss — a ordem estabelecida, a estrutura.

Robert Merton publicou em 1936, na American Sociological Review, um artigo essencial sobre as consequências não previstas de atos sociais programados. Eu quero ficar rico e compro ações que perdem o valor. Depois de diagnosticar toda a população de Itaguaí como louca, o douto alienista descobre o óbvio. O maluco era ele, e sua doidice o faz libertar os habitantes e, numa inversão inesperada, interna-se no manicômio. A ignorância, a ambiguidade ou a inocência, como mostra a literatura, são uma dimensão intrigante da vida social. Ela compete e está ligada às “racionalidades”.

Tais surpreendentes desenganos são a matéria-prima de gente como Balzac, Borges, Maupassant e outros mestres dos inesperados, como Allan Poe, O. Henry, Lobato, Machado de Assis, Tchekhov e Jorge Amado, entre outros...

Uma das fontes do mal-estar do mundo atual resulta da imperiosa programação do capitalismo ocidental. Ela multiplicou oportunidades, criou confortos inimagináveis e acelerou um estilo de vida baseado no progressismo e na quantidade, mas o efeito inesperado desse programa afeta o clima e o equilíbrio do planeta. As mais brilhantes previsões geopolíticas são forçadas a realizar um tradicional “ouça, pare e olhe” para a dinâmica da Terra enquanto palco que reage a um drama incongruente.

A grande contradição não seria a que Marx anunciou — a classe trabalhadora explorada contra os malvados capitalistas encartolados —, mas o não previsto desgaste irracional de uma Terra explorada racionalmente. O imenso e incomensurável inesperado é a ameaça climática que invade nossas vidas como um palco que, surpreendentemente, se torna ator.

No ensaio “Raça e História”, Lévi-Strauss adverte:

— A exclusiva fatalidade, a única tara que pode afligir um grupo humano e impedi-lo de realizar plenamente sua natureza, é estar só.

Publicado em 1952, o ensaio não tinha como prever que o mundo trocaria um milenar e parcimonioso isolamento de línguas e culturas pelo avassalador progressismo movido a cobiça, decorrente das consequências não previstas de um modo de produção global, voltado para a quantidade.

A modéstia e a parcimônia de milênios de evolução deram lugar a uma enxurrada de mensagens expressivas da maldade, do desejo de confundir e da hipocrisia decorrentes do exagerado poder de comunicação que a Humanidade conquistou.

Ao lado das perversas fake news, temos a vergonha de descobrir que a hipocrisia, a maldade e o autoritarismo não são as marcas de um período histórico ou cultural. São parte constitutiva de nossa índole que os meios digitais ampliam. Operam seguindo as intenções dos seus donos — os Musks e os Trumps deste mundo —, mas, eis o inesperado, têm vida própria. E mostram que os tais “países desenvolvidos” à direta e à esquerda são, surpreendentemente, muito mais parecidos com o nosso “Brasil subdesenvolvido” do que imaginávamos.

Valha-nos Deus!

Elogio da dúvida

Vamos brindar – à dúvida!
E você, trate com simpatia e respeito
o homem que escuta o que você fala
como quem testa uma moeda suspeita.
Seja esperto. Não dê sua palavra
com tanta certeza assim.

Leia livros de história. Leia sobre
a fuga em pânico de tantos exércitos invencíveis.
Para onde quer que você olhe
há fortalezas inexpugnáveis desmoronando,
e mesmo que a Armada fosse incalculável
quando deixou o porto,
era sempre possível contar
quantos navios voltaram.

Sempre há um dia em que
um homem pousa o pé no pico inatingível,
e um navio chega ao limite
do infinito mar.

Como é belo ver cabeças que discordam
diante da indiscutível verdade!
Bravo! – para o médico que curou
o paciente desenganado.

Mas a mais bela das dúvidas
é quando os explorados e os ofendidos
erguem a cabeça,
e param de pensar que seu opressor
não pode ser derrotado.

Bertolt Brecht

General preso não faz democracia

Há uma parede na sede do Correio Braziliense onde estão as páginas mais criativas e expressivas já publicadas pelo jornal. Neste domingo, a primeira página com a palavra "Preso" acima da foto do general Braga Netto merece ir para esse panteão de manchetes. Em uma palavra, todo um discurso: "as instituições civis são capazes de prender um general quatro estrelas que conspirava contra a democracia". O discurso e a manchete seriam ainda mais fortes se tivessem colocado a foto do general fardado. Ao escolher a foto com traje civil, o Correio teve o cuidado de não expor as Forças Armadas. O mesmo cuidado os democratas devem ter ao comemorar o fato de um militar golpista estar preso, sabendo que um general preso não faz a democracia.


Para tanto, é preciso que a instituição militar, toda a tropa, e que a política, todos políticos, sejam comprometidos com a ética no comportamento e nas prioridades. A democracia tem razões para sentir otimismo com a prisão de um general golpista, mas deve entender que generais presos não fazem tropa democrática. É preciso promover nova mentalidade entre os militares; e que os políticos civis sejam comprometidos com a causa pública, sensíveis aos interesses da população e íntegros no exercício dos cargos. Sem isso, ameaçam a democracia apodrecendo-a por dentro.

Apesar do farto noticiário sobre o inusitado de um general golpista preso, nenhuma pesquisa apurou ainda qual a reação da tropa à prisão. Sabe-se que os comandos estão respeitando a decisão da justiça e o trabalho da polícia, mas não se sabe se a caserna está mais indignada com a postura dos golpistas querendo impedir a posse dos vitoriosos, e até com intenção de assassiná-los, ou se estão indignados com a incompetência para levar adiante o plano. O Ministério da Defesa não parece saber ou estaria escondendo se a tropa considera Braga Netto e sua turma como criminosos golpistas traidores da Constituição e da pátria ou se patriotas incompetentes para vencer uma batalha pelo futuro do país livre do que os militares consideram corruptos civis. Não há manifestação de repúdio da tropa aos golpistas, mas há descontentamento com a falta de respeito de Braga Netto aos colegas que ele teria chamado de covardes por serem legalistas.

Em quase meio século de democracia, nenhum dos presidentes enfrentou a questão militar no Brasil: adotar formação legalista, comportamento hierárquico e não apenas protocolar em relação ao poder civil eleito, consciência democrática, respeito às instituições. Nenhum presidente expôs aos militares de hoje o conhecimento pleno dos crimes nos 21 anos de ditadura, tortura, assassinatos, covas anônimas, censura; não tentou punir os culpados. Aceita-se a permanência de um sistema que põe as armas com poder moderador sobre as urnas, contra o que julgam incompetência, corrupção ou simplesmente ideias exóticas. Sobretudo, todos os oito presidentes civis se comportam assustados e temerosos diante do poder militar.

Os políticos democratas precisam entender que os golpes ocorrem mais pelo apodrecimento interno da democracia dos civis do que por reação golpista de militares. Lembrar que parte substancial da população apoiou o golpe em 1964 e que, em 2022, apenas um milhão de eleitores barrou o presidente golpista nas urnas. O eleitorado prefere a democracia, mas não está satisfeito com o Brasil construído nos últimos 40 anos: sente que diminuiu a penúria, mas a pobreza continua, a concentração de renda se mantém e a desigualdade se transformou em apartheid social; os privilégios e benefícios foram ampliados; a produtividade não aumentou; a economia não sai de uma renda média baixa; a corrupção se espalhou e ficou normal; a violência chegou ao nível de uma guerra civil; o número de analfabetos adultos não diminuiu; o número de crianças matriculadas aumentou, mas não cresceu a percentagem dos que concluem educação de base com qualidade; o presente pode até parecer melhor, mas os anos de democracia não estão acenando para um país eficiente, sem privilégios e sem corrupção, sem pobreza, com renda bem distribuída, com juventude esperançosa e motivada.

Feliz a democracia em que um juiz legalista tem poder para prender um general golpista, mas nenhum juiz empoderado ou general preso constrói a democracia; é preciso que os políticos civis sejam respeitados e usem o sistema democrático para abolir a corrupção no comportamento e nas prioridades, atendam aos sonhos da população, enfrentem a secular questão militar do Brasil, ao ponto que a ideia de golpe não faça mais parte do imaginário dos militares.

Ler pouco, crescer pouco

A redução da pobreza e da extrema pobreza no Brasil para os níveis mais baixos já aferidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) deveria instilar-nos algum otimismo, de que tanto carecemos nestes tempos. Segundo a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, entre 2022 e 2023, 8,7 milhões de brasileiros deixaram a linha de pobreza, outros 3,1 milhões saíram da condição de miséria e a proporção da população considerada pobre diminuiu de 31,6% para 27,4%. O aquecimento do mercado de trabalho e o pagamento de benefícios sociais, como os vinculados ao Bolsa Família, são apontados como fatores decisivos para a melhora, o que mostra a importância desses programas.

Muito lentamente, as condições de vida estão melhorando para a população mais sacrificada nos tempos de dificuldades e nem sempre suficientemente recompensada nos períodos de prosperidade. Mas persiste um quadro social inquietante, dominado por um imenso contingente de pobres. Ainda há 59 milhões de brasileiros sobrevivendo com menos de R$ 22,17 por dia. Mais de um quarto da população é muito pobre.

As piores consequências da deformada distribuição de renda no País têm sido atenuadas por programas sociais e de serviços públicos, especialmente na saúde. Mais eficácia poderia ser alcançada com medidas no campo tributário, mas, por conhecidas dificuldades no seu relacionamento com um Congresso de nítido perfil conservador, o governo não mostrou disposição de avançar nesse rumo.


São, reconheça-se, caminhos alternativos. O central é óbvio: oferecer a todos as condições para progredir por meio de uma educação inclusiva e formadora de cidadãos aptos a desempenhar com competência e consciência seu papel econômico, social e político.


Não há motivos para animar os que se preocupam com o futuro. No campo da educação, parece que decidimos parar ou caminhar para trás. É entristecedor saber que o País, onde se lê pouco, perdeu 6,7 milhões de leitores em cinco anos. A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (feita pelo Instituto Pró-Livro, Ipec e Itaú Cultural) constatou pela primeira vez que a maioria dos brasileiros não lê livros.

Falta de tempo, mais dedicação à internet, televisão e outros motivos foram apontados para a queda no número de leitores. Quaisquer que sejam as razões, é um fato preocupante. Baixo índice de leitura significa menor compreensão do mundo em que se vive, mais dificuldades no acesso a melhores postos de trabalho e nas demais atividades da vida em sociedade.

O problema é mais profundo. Mesmo quem lê entende mal o que lê, como aponta há tempos o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), estudo comparativo realizado a cada três anos pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). No último relatório, relativo a 2022 e divulgado no ano passado, o Brasil manteve os resultados alcançados em 2018 em matemática, leitura e ciências.

Com otimismo, pode-se dizer que o Brasil mostrou resistência na pandemia da covid19. Não piorou. Mas isso pouco significa. Em 16 países que fazem parte da OCDE, a média em 2018 foi de 487 pontos em proficiência em leitura; estudantes brasileiros de 15 anos registraram média de 413 pontos. Esses números mostram que os estudantes brasileiros não aprenderam a interpretar o que leem (quando leem, pois o índice de leitura está em queda, como vimos acima) e não estão habituados a ler outras obras além dos livros didáticos ou as exigidas pela escola.

É claro que os resultados variam de acordo com a situação econômica e social das famílias. Desigualdades sociais estão por trás de resultados desiguais alcançados por estudantes pertencentes a famíforum@estadao.com lias de diferentes situações econômicas. Uma pesquisa do Insper sobre a democratização da educação profissional e tecnológica constatou que estudantes de nível econômico e social mais baixo têm menor acesso a esse tipo de ensino. E esse grupo social é justamente o que mais poderia se beneficiar com o acesso à educação profissional e tecnológica.

Critérios para a ação do Ministério da Educação anunciados pelo ministro Camilo Santana apontam o caminho correto, com prioridade para alfabetização na idade certa, educação em tempo integral, permanência do jovem na escola e melhoria na formação inicial e continuada dos professores.

Talvez devêssemos concentrar atenção no último item. Causa desassossego ter de concordar com o editorial Professores que não sabem ensinar publicado pelo Estadão (13/12). Não se trata de inculpar o professor, mas de defendê-lo. Ele é vítima de um círculo vicioso, formado por salários inadequados, falta de reconhecimento social de seu papel vital na formação das pessoas, desrespeito nos locais de trabalho, desestímulo ao bom preparo didático e ao aperfeiçoamento, baixa qualidade do ensino, alunos mal preparados e baixos salários. Esse círculo precisa ser rompido, e com urgência.

Jorge J. Okubaro

Às vésperas de completar 40 anos, a democracia inspira cuidados

Deve-se louvar o golpista ou o indiferente ao Estado de Direito que sinceramente converteu-se à democracia. O Estado de Direito é aquele que assegura que nenhum indivíduo está “acima da lei”.

Mas ao golpista ou ao indiferente ao Estado de Direito, não basta converter-se. Ao golpista, para que sua conversão seja reconhecida como verdadeira, há que se cobrar explicações.

Pelo menos duas: por que antes foi golpista? E o que o fez mudar de posição? Há também que se cobrar um pedido público de desculpas se suas ações pretéritas causaram danos ao país.

A mesma receita deveria ser aplicada às instituições. Quantos Papas já não pediram desculpas e autorizaram o pagamento de indenizações a fiéis abusados sexualmente por sacerdotes?

Não se pode dizer da Igreja Católica que ela, em algum momento, tenha estimulado o abuso. Mas pode-se dizer, sim, que ela por séculos tolerou o abuso que provocou tanto mal aos seus servos.

O Estado alemão, até hoje, se penitencia pelo mal que o nazismo infligiu à Humanidade, especialmente aos 6 milhões de judeus, ciganos e outras minorias mortos em câmaras de gás.

O ministro José Múcio Monteiro, da Defesa, prega que é preciso diferenciar o CPF do CNPJ das Forças Armadas quando se discute o comportamento dos militares em relação a golpes.

CPF é o Cadastro de Pessoa Física, CNPJ, o Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica. O que José Múcio quer dizer: as Forças Armadas não são golpistas; mas há militares que são ou que foram.

É uma sacada engenhosa do ministro para preservar a imagem da instituição, as Forças Armadas, mas se lida à luz da história, não corresponde à realidade; é apenas uma sacada oportuna.

Só pelo prazer de argumentar: dou de barato que CPFs tramaram o golpe de dezembro de 2022 para impedir a posse de Lula, e o de janeiro de 2023 para interromper seu governo mal iniciado.

Mas não foram CPFs que acolheram em diversas partes do país os golpistas acampados à porta de quarteis; ali, área de segurança nacional, sem o endosso do CNPJ, ninguém acampa.

Sem endosso do CNPJ, CPF não movimenta tropas e armamento pesado para retardar a prisão de golpistas como aconteceu na noite do 8 de janeiro, nem sugere uma operação para restaurar a ordem.

Foi um golpe militar que derrubou a monarquia e proclamou a República entre nós. Foi um golpe militar que levou Getúlio Vargas ao poder em 1930 e que o retirou de lá em 1945.

Getúlio voltou em 1950, desta vez pelo povo popular, matando-se com um tiro no peito quatro anos depois para não ser derrubado por outro golpe. Sua morte postergou em 10 anos a ditadura de 64.

A anistia de 1976, dita ampla, geral e irrestrita, perdoou os crimes dos militares que torturaram e mataram adversários do regime; esses, pagaram seus crimes com o próprio sangue.

Uma anistia de araque, portanto, que serviu mais a um lado do que ao outro; uma anistia que dispensou as Forças Armadas de ao menos pedirem desculpa e de revisarem sua formação.

Às vésperas de completar 40 anos, a democracia brasileira ainda coxeia, sente-se ameaçada e inspira cuidados.
Ricardo Noblat