sexta-feira, 25 de setembro de 2020
Governo ignora o que lhe cabe e se mete onde não deve
Talvez o presidente Jair Bolsonaro não chegue ao ponto de ter vontade de sacar do revólver quando ouve falar em Cultura. Numa peça antinazista de Hanns Jost, encenada em Berlim em 1933, ano em que Hitler assumiu o poder, um personagem dizia: “Quando ouço alguém falar em Cultura, saco o meu revólver”.
Mas Cultura não é lá do agrado do ex-capitão, que já confessou que nunca leu um livro. “Tem muita letra”, queixou-se. “Precisa ter mais figuras”. Por extensão, Educação também não é. Em pouco mais de um ano e meio de governo, dois tristes nomes passaram pelo Ministério da Educação. E o terceiro começou mal.
Mas Cultura não é lá do agrado do ex-capitão, que já confessou que nunca leu um livro. “Tem muita letra”, queixou-se. “Precisa ter mais figuras”. Por extensão, Educação também não é. Em pouco mais de um ano e meio de governo, dois tristes nomes passaram pelo Ministério da Educação. E o terceiro começou mal.
O pastor presbiteriano Milton Ribeiro revelou-se um homofóbico logo em sua primeira entrevista desde que assumiu o cargo. Disse que a homossexualidade é uma “opção”, que ele atribui ao que chamou de “famílias desajustadas”. “Normalizar isso e achar que está tudo certo é uma questão de opinião”, declarou. Não é.
Pediu para receber uma dura resposta de qualquer dos seus antagonistas, e a recebeu do youtuber Felipe Neto (33 milhões de seguidores nas redes sociais), recém-incluído na lista das 100 pessoas mais influentes do mundo em 2020, segundo a insuspeita revista americana “Time”. Neto perguntou ao ministro:
“Se família desajustada gera homossexuais… Que tipo de família gera envolvimento com milicianos e desvio de verba de gabinete para compra de imóveis, além de lavagem de dinheiro?”
Ribeiro pensa o que disse, mas fez questão de dizer para reconciliar-se com Bolsonaro, irritado desde que ele recebeu em audiência um grupo de deputados federais da oposição – entre os quais, Tabata Amaral (PDT-SP). Foi na quarta-feira da semana passada, segundo contou Igor Gadelha, repórter da CNN Brasil.
Bolsonaro orientou Ribeiro a filtrar mais quem recebe no ministério. E, se tiver que receber opositores do governo por obrigação, que não saia divulgando positivamente esses encontros. Que não fosse ingênuo e não se auto sabote. Ribeiro explicou que os deputados integravam uma comissão da Câmara. E daí?
Além de preconceituoso, Ribeiro revelou-se ignorante ao sugerir na entrevista que seu ministério não está interessado em aperfeiçoar a tecnologia nas escolas. Para ele, por exemplo, a dificuldade do ensino a distância durante a pandemia do coronavírus é problema dos outros, dele não:
– A sociedade brasileira é desigual, e não é agora que a gente vai conseguir deixar todos iguais. Esse não é um problema do MEC, é um problema do Brasil.
É possível que um problema do país, tanto mais o do ensino à distância, não seja também problema do Ministério da Educação? A verdade fugiu à boca de Ribeiro. Por muito menos, ao falar sobre impostos em uma entrevista recente, o ministro Paulo Guedes, da Economia, foi arrancado de cena por um dos seus colegas.
Este é um governo que fecha os olhos ao que lhe compete e se envolve com o que nada tem a ver. A opção sexual de cada um é assunto privativo de cada um – ao governo só cabe respeitar. A destruição do meio ambiente é um problema de todos, mas incumbe ao governo liderar os esforços para combatê-la.
Ribeiro não se auto sabota quando aceita reunir-se com deputados da oposição – é dever do homem público porque o governo foi eleito por uns, mas governa para todos. Bolsonaro se auto sabota e, pior, sabota o país quando em meio a uma pandemia com mais de 140 mil mortos é capaz de dizer, como disse ontem:
“Fico vendo Brasília, não posso falar nomes aqui, mas a alta cúpula do poder, alguns do Executivo, Judiciário, Legislativo também, com máscara 24 horas por dia. Dormiam com máscara, cumprimentavam assim [com ombro], pegaram o vírus agora. Não adianta isso aí”.
Pediu para receber uma dura resposta de qualquer dos seus antagonistas, e a recebeu do youtuber Felipe Neto (33 milhões de seguidores nas redes sociais), recém-incluído na lista das 100 pessoas mais influentes do mundo em 2020, segundo a insuspeita revista americana “Time”. Neto perguntou ao ministro:
“Se família desajustada gera homossexuais… Que tipo de família gera envolvimento com milicianos e desvio de verba de gabinete para compra de imóveis, além de lavagem de dinheiro?”
Ribeiro pensa o que disse, mas fez questão de dizer para reconciliar-se com Bolsonaro, irritado desde que ele recebeu em audiência um grupo de deputados federais da oposição – entre os quais, Tabata Amaral (PDT-SP). Foi na quarta-feira da semana passada, segundo contou Igor Gadelha, repórter da CNN Brasil.
Bolsonaro orientou Ribeiro a filtrar mais quem recebe no ministério. E, se tiver que receber opositores do governo por obrigação, que não saia divulgando positivamente esses encontros. Que não fosse ingênuo e não se auto sabote. Ribeiro explicou que os deputados integravam uma comissão da Câmara. E daí?
Além de preconceituoso, Ribeiro revelou-se ignorante ao sugerir na entrevista que seu ministério não está interessado em aperfeiçoar a tecnologia nas escolas. Para ele, por exemplo, a dificuldade do ensino a distância durante a pandemia do coronavírus é problema dos outros, dele não:
– A sociedade brasileira é desigual, e não é agora que a gente vai conseguir deixar todos iguais. Esse não é um problema do MEC, é um problema do Brasil.
É possível que um problema do país, tanto mais o do ensino à distância, não seja também problema do Ministério da Educação? A verdade fugiu à boca de Ribeiro. Por muito menos, ao falar sobre impostos em uma entrevista recente, o ministro Paulo Guedes, da Economia, foi arrancado de cena por um dos seus colegas.
Este é um governo que fecha os olhos ao que lhe compete e se envolve com o que nada tem a ver. A opção sexual de cada um é assunto privativo de cada um – ao governo só cabe respeitar. A destruição do meio ambiente é um problema de todos, mas incumbe ao governo liderar os esforços para combatê-la.
Ribeiro não se auto sabota quando aceita reunir-se com deputados da oposição – é dever do homem público porque o governo foi eleito por uns, mas governa para todos. Bolsonaro se auto sabota e, pior, sabota o país quando em meio a uma pandemia com mais de 140 mil mortos é capaz de dizer, como disse ontem:
“Fico vendo Brasília, não posso falar nomes aqui, mas a alta cúpula do poder, alguns do Executivo, Judiciário, Legislativo também, com máscara 24 horas por dia. Dormiam com máscara, cumprimentavam assim [com ombro], pegaram o vírus agora. Não adianta isso aí”.
A rã sábia
Como a onça estivesse para casar-se, os animais todos andavam aos pulos, radiantes, com olho na festa prometida. Só uma velha rã sabidona torcia o nariz àquilo.
O marreco observou-lhe o trejeito e disse:
— Grande enjoada! Que cara feia é essa, quando todos nós pinoteamos alegres no antegozo do festão?
— Por um motivo muito simples — respondeu a rã. Porque nós, como vivemos quietas, a filosofar, sabemos muito da vida e enxergamos mais longe do que vocês. Responda-me a isto: se o sol se casasse e em vez de torrar o mundo sozinho o fizesse ajudado por dona sol e por mais vários sóis filhotes? Que aconteceria?
— Secavam-se todas as águas, está claro.
— Isto mesmo. Secavam-se as águas e nós, rãs e peixes, levaríamos a breca. Pois calamidade semelhante vai cair sobre vocês. Casa-se a onça, e já de começo será ela e mais o marido a perseguirem os animais. Depois aparecem as oncinhas — e os animais terão que agüentar com a fome de toda a família. Ora, se um só apetite já nos faz tanto mal, que será quando forem três, quatro e cinco?
O marreco refletiu e concordou:
— É isso mesmo…
Monteiro Lobato
O marreco observou-lhe o trejeito e disse:
— Grande enjoada! Que cara feia é essa, quando todos nós pinoteamos alegres no antegozo do festão?
— Por um motivo muito simples — respondeu a rã. Porque nós, como vivemos quietas, a filosofar, sabemos muito da vida e enxergamos mais longe do que vocês. Responda-me a isto: se o sol se casasse e em vez de torrar o mundo sozinho o fizesse ajudado por dona sol e por mais vários sóis filhotes? Que aconteceria?
— Secavam-se todas as águas, está claro.
— Isto mesmo. Secavam-se as águas e nós, rãs e peixes, levaríamos a breca. Pois calamidade semelhante vai cair sobre vocês. Casa-se a onça, e já de começo será ela e mais o marido a perseguirem os animais. Depois aparecem as oncinhas — e os animais terão que agüentar com a fome de toda a família. Ora, se um só apetite já nos faz tanto mal, que será quando forem três, quatro e cinco?
O marreco refletiu e concordou:
— É isso mesmo…
Monteiro Lobato
Moral:
Pior que um inimigo, dois; pior que dois, três...
Pior que um inimigo, dois; pior que dois, três...
Os rolos da família Bolsonaro
Sempre achei que o objeto da advocacia fosse o estudo das leis e de seus adendos, emendas, petições, parágrafos e ab-rogações. Estava enganado. Nenhum advogado hoje irá longe sem um pós-doc na investigação de contratos, saques, depósitos, transferências e transações financeiras em geral, especialmente as ilícitas. Um ramo dessa disciplina é o que tenta entender por que os praticantes de tais operações tanto se casam e descasam entre si e não param de fazer negócios uns com os outros.
Depois do intenso trabalho de desmonte dos trânsitos milionários do PT e de outros partidos com empresas e governos, é a vez de um mergulho em águas igualmente turvas: os rolos da família Bolsonaro. Os Bolsonaros legítimos não passam de meia-dúzia, compreendendo o titular, seus filhos e suas atuais mulheres, mas, em 30 anos de ação nos gabinetes oficiais, arrolaram um histórico de práticas e de associados que está levando a Justiça à loucura.
É uma infernal ciranda de dinheiro originário da compra e venda de imóveis, depósitos fora do expediente, lojas de chocolate e salários de assessores que triplicavam ou se reduziam à metade, protagonizados por funcionários invisíveis que se revezavam passando dois ou três meses em cada cargo e um turbilhão de mulheres, ex-mulheres, filhas, noras, ex-noras e até vendedoras de açaí, todos aparentemente comandados por um homem que só pode ser um gênio da administração: Fabrício Queiroz.
Outra característica é a de que, exceto pelos cheques mágicos na conta da primeira-dama, tudo era feito em dinheiro vivo, transportado para cima e para baixo não se sabe se em envelopes, valises ou malas. Nem o governo Temer foi tão ativo nessa arte.
Os adeptos dos Bolsonaros alegam que, agora, acabou a farra de dinheiro do passado. De fato, os Bolsonaros parecem movimentar menos grana. O baixo clero, por definição, voa abaixo do radar.
Depois do intenso trabalho de desmonte dos trânsitos milionários do PT e de outros partidos com empresas e governos, é a vez de um mergulho em águas igualmente turvas: os rolos da família Bolsonaro. Os Bolsonaros legítimos não passam de meia-dúzia, compreendendo o titular, seus filhos e suas atuais mulheres, mas, em 30 anos de ação nos gabinetes oficiais, arrolaram um histórico de práticas e de associados que está levando a Justiça à loucura.
É uma infernal ciranda de dinheiro originário da compra e venda de imóveis, depósitos fora do expediente, lojas de chocolate e salários de assessores que triplicavam ou se reduziam à metade, protagonizados por funcionários invisíveis que se revezavam passando dois ou três meses em cada cargo e um turbilhão de mulheres, ex-mulheres, filhas, noras, ex-noras e até vendedoras de açaí, todos aparentemente comandados por um homem que só pode ser um gênio da administração: Fabrício Queiroz.
Outra característica é a de que, exceto pelos cheques mágicos na conta da primeira-dama, tudo era feito em dinheiro vivo, transportado para cima e para baixo não se sabe se em envelopes, valises ou malas. Nem o governo Temer foi tão ativo nessa arte.
Os adeptos dos Bolsonaros alegam que, agora, acabou a farra de dinheiro do passado. De fato, os Bolsonaros parecem movimentar menos grana. O baixo clero, por definição, voa abaixo do radar.
Patriota do avesso
A menor das preocupações de Jair Bolsonaro é com o humor do mundo. Pouco se lhe dá que o discurso feito na abertura da Assembleia-Geral da ONU tenha sido desconstruído ponto a ponto e, por obra da versão fantasiosa, angariado críticas e descrédito. O presidente está se lixando para a avaliação mundial sobre o governo dele, assim como não liga a mínima para a opinião do público interno que compreende a extensão dos prejuízos causados pela devastação dos nossos recursos naturais e a degradação da imagem do Brasil no exterior.
A maior preocupação de Jair Bolsonaro é com o estado de espírito do brasileiro médio que vota e explicita suas demandas prioritárias em pesquisas como a do Ibope publicada no jornal Estado de S. Paulo no último dia 21. Ali foram listados dezoito itens para que os eleitores paulistanos apontassem suas premências: o meio ambiente ficou com o penúltimo lugar, com índice de 1%, apenas atrás do lazer e cultura, que registraram 0% na escala de interesses dos consultados.
É nesse tipo de cenário (provavelmente replicado país afora) de prioridades relacionadas a saúde, transporte, segurança, emprego, educação e outras carências que o presidente da República concentra suas atenções, convicto de que, assim, fala para o enorme contingente em cuja pauta de urgências não consta a preservação do meio ambiente. Um dado de lamentável realidade ao qual se atém o presidente em detrimento do dever e da necessidade de incutir na população a educação ambiental como fator essencial de sobrevivência.
Bolsonaro segue dando ao tema o tratamento de supérfluo, como se artigo de luxo fosse, coisa do interesse exclusivo de uma elite desatenta às agruras do cotidiano. Faz parecido em relação à crise sanitária: nega a realidade, transfere culpas e responsabilidade, posiciona-se como vítima dos mal-intencionados, aponta conspirações, exalta qualidades que não tem, celebra feitos inexistentes, abusa, enfim, de raciocínios formulados para produzir ilusão de verdade.
No pronunciamento à ONU o presidente exibiu essas características todas, exclusivamente concentrado no público que busca ampliar e com o qual pretende se manter identificado a fim de obter mais um mandato. Os críticos, na visão dele, já estão perdidos mesmo e a imagem do Brasil no exterior, ora, essa não faz visagem na urna eletrônica. Portanto, pouco importa.
Fosse Bolsonaro o amante da pátria que apregoa, deveriam importar os prejuízos impostos ao agronegócio (nosso maior ativo econômico), o favorecimento que isso proporciona aos competidores internacionais, o patrocínio do descrédito aos órgãos de fiscalização e monitoramento, a redução dos investimentos, os mais de 15 bilhões de dólares que deixaram o país neste ano, os 87 bilhões de reais de capital estrangeiro retirados da bolsa, num panorama dantesco.
Atos e palavras do presidente, contudo, desenham o patriota do avesso que, a pretexto de defender, só propicia ataques ao Brasil.
A maior preocupação de Jair Bolsonaro é com o estado de espírito do brasileiro médio que vota e explicita suas demandas prioritárias em pesquisas como a do Ibope publicada no jornal Estado de S. Paulo no último dia 21. Ali foram listados dezoito itens para que os eleitores paulistanos apontassem suas premências: o meio ambiente ficou com o penúltimo lugar, com índice de 1%, apenas atrás do lazer e cultura, que registraram 0% na escala de interesses dos consultados.
É nesse tipo de cenário (provavelmente replicado país afora) de prioridades relacionadas a saúde, transporte, segurança, emprego, educação e outras carências que o presidente da República concentra suas atenções, convicto de que, assim, fala para o enorme contingente em cuja pauta de urgências não consta a preservação do meio ambiente. Um dado de lamentável realidade ao qual se atém o presidente em detrimento do dever e da necessidade de incutir na população a educação ambiental como fator essencial de sobrevivência.
Bolsonaro segue dando ao tema o tratamento de supérfluo, como se artigo de luxo fosse, coisa do interesse exclusivo de uma elite desatenta às agruras do cotidiano. Faz parecido em relação à crise sanitária: nega a realidade, transfere culpas e responsabilidade, posiciona-se como vítima dos mal-intencionados, aponta conspirações, exalta qualidades que não tem, celebra feitos inexistentes, abusa, enfim, de raciocínios formulados para produzir ilusão de verdade.
No pronunciamento à ONU o presidente exibiu essas características todas, exclusivamente concentrado no público que busca ampliar e com o qual pretende se manter identificado a fim de obter mais um mandato. Os críticos, na visão dele, já estão perdidos mesmo e a imagem do Brasil no exterior, ora, essa não faz visagem na urna eletrônica. Portanto, pouco importa.
Fosse Bolsonaro o amante da pátria que apregoa, deveriam importar os prejuízos impostos ao agronegócio (nosso maior ativo econômico), o favorecimento que isso proporciona aos competidores internacionais, o patrocínio do descrédito aos órgãos de fiscalização e monitoramento, a redução dos investimentos, os mais de 15 bilhões de dólares que deixaram o país neste ano, os 87 bilhões de reais de capital estrangeiro retirados da bolsa, num panorama dantesco.
Atos e palavras do presidente, contudo, desenham o patriota do avesso que, a pretexto de defender, só propicia ataques ao Brasil.
A receita bolsonarista para a estagnação neocolonial
A sociedade brasileira vem experimentando há várias décadas um nítido processo de perda de importância das atividades da indústria no conjunto de sua base econômica e produtiva. No entanto, ao contrário do discurso otimista e enganador dos que defendem tal movimento, por aqui ele não se dá na mesma direção das transformações ocorridas na distribuição dos diferentes setores da economia nos chamados países desenvolvidos.
O processo de desindustrialização sempre poderá ser analisado sob diferentes prismas. Em uma primeira abordagem, passa a ser valorizada a redução da participação da indústria dita “tradicional”, uma vez que essa mudança seria fruto de um crescimento da importância relativa de setores de serviços de ponta, portadores de uma elevada densidade tecnológica em seus processos intrínsecos. Com isso, a migração em direção a essa nova área do terciário não implicaria uma redução na capacidade de geração de valor pela sociedade e nem mesmo seria causador de uma nova inserção internacional mais desqualificada do país considerado.
Porém, várias nações pelo mundo afora entram nessa onda de desindustrialização perdendo tal capacidade de promover um salto de qualidade em sua estrutura econômica. Com isso, a perda de espaço das atividades industriais encontra seu substituto no crescimento desproporcional de setores que pouco contribuem para o crescimento estratégico da importância de tais países. É o caso do crescimento de serviços tradicionais (exemplos bastante simbólicos talvez sejam os casos de telemarketing e de entregas por aplicativos) ou de atividades ligadas ao setor primário, como o extrativismo ou a agricultura.
O Brasil vem caminhando a passos largos e decididos rumo a essa ladeira abaixo há muito tempo. A participação do conjunto da indústria em nosso Produto Interno Bruto (PIB) chegou a apontar para um expressivo índice de 50% em meados da década de 1980, mas em seguida houve uma inversão desse movimento para uma tendência de queda. A abertura comercial descontrolada e irresponsável – iniciada em 1990 por Collor e que foi continuada pelos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso – foi um dos fatores que abriu o caminho para essa desindustrialização perversa. Em 1999, o PIB industrial representava apenas 25% do PIB total, uma queda para a metade em menos de duas décadas. Em 2019 o IBGE sinalizava para 22% nesse índice.
Caso se busque identificar as atividades estritamente manufatureiras no PIB – a chamada indústria de transformação – a perda de capacidade econômica instalada em nosso território também é bastante expressiva. A série histórica iniciada em 1948 aponta para o crescimento a partir da década de 1950, com o período do segundo governo de Getúlio Vargas e o de Juscelino Kubitschek. Em seguida, à época do milagre econômico da ditadura militar e a fase do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), essa participação atinge seu pico, em torno de 27%. Esse é o longo processo em que o Brasil deixa de ser um país agrícola para se converter em uma nação industrial. É o chamado período de substituição de importações e de internalização de um importante setor de produção de bens de capital.
Mas o mesmo gráfico deixa evidente os estragos provocados pela ilusão neoliberal de uma abertura ao capital internacional sem nenhuma regra de controle. As importações de produtos industrializados passaram a ser regra prioritária, esmagando a capacidade de sobrevivência da indústria nacional. A participação da indústria manufatureira no PIB despencou a partir da década de 1990, tendo chegado atualmente a 11%, segundo as últimas informações do IBGE disponíveis para 2019.
Ora tal perda de importância relativa desse setor estratégico para nossa economia veio acompanhada de uma maior fragilidade do Brasil frente às mutações verificadas no cenário internacional. Passamos a nos converter cada vez mais em exportadores de produtos de baixo valor agregado, como pode bem ser identificado pela composição de nossa pauta exportadora. Vendemos ao resto do mundo produtos de origem agrícola com reduzida transformação, como é o caso da soja, açúcar, carnes e similares. Além disso, cada vez mais pesa em nossa cesta de exportações a participação de produtos derivados do extrativismo, como minério de ferro e petróleo.
A contrapartida desse movimento foi o incremento de nossa dependência de importações de todo tipo para atender ao nosso crescente mercado de consumo interno. Estão aí as evidências de nossas compras sistemáticas de produtos oriundos da China e demais países asiáticos, enquanto as instalações industriais em nosso território são abandonadas e sucateadas. A estratégia empresarial da Vale do Rio Doce privatizada para o capital internacional reflete de forma emblemática o triste retrato dessa nova realidade. A empresa exporta minério de ferro para a China e de lá importa os trilhos de ferro manufaturados para construir suas ferrovias por aqui. Um verdadeiro crime de lesa pátria.
Porém, atualmente nem a opção por essa obsoleta tentativa de inserção do Brasil de forma dependente na dinâmica econômica internacional oferece mais segurança. Abandonar a opção de consolidação da indústria sem ter as mínimas condições de avanço científico e tecnológico para dar o salto rumo à economia do conhecimento já revela por si só uma irresponsabilidade para com o futuro da Nação e para com a maioria de sua população. Construir para nosso país um cenário conformista de sua transformação em mero exportador de produtos primários e importador de bens de alto valor agregado é reproduzir, em pleno século XXI, as lógicas da subalternidade e da dependência do período colonial.
Ocorre que nem mesmo esse projeto servil e pernicioso as nossas elites tupiniquins são capazes de implementar com sua “competência”. Prevalece também nessa nova etapa, como sempre ocorreu no passado, a lógica imediatista do lucro fácil e no curto prazo. Reproduz-se a velha estória de maximização dos ganhos instantâneos, sem a menor preocupação com a sustentabilidade do modelo. Assim se consolida de forma irresponsável a lógica da expansão da fronteira agrícola na dinâmica cíclica envolvendo “desmatamento – pecuária extensiva – agricultura de commodities”. Esse processo implica explosão descontrolada dos índices de destruição de biomas essenciais, tais como o Pantanal, o cerrado e a Amazônia. Esse processo envolve a eliminação da ocupação do território pelas populações originárias, a exemplo de indígenas e quilombolas. Esse processo provoca o comprometimento da sustentabilidade ambiental, por uso excessivo e estimulado de agrotóxicos e transgênicos. Esse processo escancara o quadro da tragédia da desigualdade social e da concentração de riqueza, com aumento de denúncias de trabalho análogo ao escravo e consolidação de gigantescas propriedades agrícolas sem controle nas regiões de fronteira das atividades econômicas.
Assim, o descalabro da imagem que o atual desgoverno faz questão de oferecer ao resto do mundo termina por criar dificuldades para a aceitação desse modelo de exploração de atividades econômicas nas instâncias multilaterais e nos próprios mercados consumidores dos países desenvolvidos. Pouco a pouco, os produtos originários do Brasil passam a encontrar dificuldades de aceitação, refletindo uma mudança radical em relação ao histórico da boa aceitação do chamado “made in Brazil”.
A política negacionista do atual governo beira o ridículo, mas provoca muitos estragos para nosso desempenho exportador – atual e futuro. Os representantes do Brasil nos foros internacionais não aceitam as óbvias evidências dos prejuízos derivados do aquecimento global do desmatamento. Para a narrativa oficial, fenômenos como a destruição da Amazônia ou os incêndios atuais no Pantanal nada mais são do que fruto de guerra de informações de ONG, sempre a serviço de potências internacionais. A resistência da equipe de Bolsonaro em aceitar os compromissos dos acordos de redução de emissão também contribui para piorar a imagem de nosso País no exterior.
Representantes de grandes fundos financeiros internacionais não escondem seu descontentamento para com os rumos mais recentes adotados pelo governo brasileiro. Assim, alertam para o risco de abandonarem seus projetos por aqui, caso não seja alterada de forma significativa nossa política para o meio ambiente. Vários países europeus ameaçam de forma concreta pela não assinatura do Acordo da União Europeia com o Mercosul. O principal argumento, para além de problemas com seus produtores agrícolas locais, refere-se ao processo descontrolado da destruição ambiental levado a cabo pelo Brasil.
Assim, corremos o sério de risco perder até mesmo esse espaço para exportação de nossos produtos de baixo valor agregado. Destruímos nosso parque industrial e tudo indica que estamos seriamente comprometidos em danificar gravemente também o nosso meio ambiente. Perdemos parte de nosso futuro com a inserção na cadeia produtiva da indústria global. E agora nossas elites insistem obstinadamente em reduzir ainda mais o já reduzido patamar dessa estratégia de transformação do Brasil em mero exportador de produtos de baixo valor agregado. O que vemos pela frente é o triste panorama de uma possível estagnação neocolonial, onde nem mesmo os produtos mais elaborados dessa cadeia têm seus mercados assegurados.
O processo de desindustrialização sempre poderá ser analisado sob diferentes prismas. Em uma primeira abordagem, passa a ser valorizada a redução da participação da indústria dita “tradicional”, uma vez que essa mudança seria fruto de um crescimento da importância relativa de setores de serviços de ponta, portadores de uma elevada densidade tecnológica em seus processos intrínsecos. Com isso, a migração em direção a essa nova área do terciário não implicaria uma redução na capacidade de geração de valor pela sociedade e nem mesmo seria causador de uma nova inserção internacional mais desqualificada do país considerado.
Porém, várias nações pelo mundo afora entram nessa onda de desindustrialização perdendo tal capacidade de promover um salto de qualidade em sua estrutura econômica. Com isso, a perda de espaço das atividades industriais encontra seu substituto no crescimento desproporcional de setores que pouco contribuem para o crescimento estratégico da importância de tais países. É o caso do crescimento de serviços tradicionais (exemplos bastante simbólicos talvez sejam os casos de telemarketing e de entregas por aplicativos) ou de atividades ligadas ao setor primário, como o extrativismo ou a agricultura.
O Brasil vem caminhando a passos largos e decididos rumo a essa ladeira abaixo há muito tempo. A participação do conjunto da indústria em nosso Produto Interno Bruto (PIB) chegou a apontar para um expressivo índice de 50% em meados da década de 1980, mas em seguida houve uma inversão desse movimento para uma tendência de queda. A abertura comercial descontrolada e irresponsável – iniciada em 1990 por Collor e que foi continuada pelos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso – foi um dos fatores que abriu o caminho para essa desindustrialização perversa. Em 1999, o PIB industrial representava apenas 25% do PIB total, uma queda para a metade em menos de duas décadas. Em 2019 o IBGE sinalizava para 22% nesse índice.
Caso se busque identificar as atividades estritamente manufatureiras no PIB – a chamada indústria de transformação – a perda de capacidade econômica instalada em nosso território também é bastante expressiva. A série histórica iniciada em 1948 aponta para o crescimento a partir da década de 1950, com o período do segundo governo de Getúlio Vargas e o de Juscelino Kubitschek. Em seguida, à época do milagre econômico da ditadura militar e a fase do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), essa participação atinge seu pico, em torno de 27%. Esse é o longo processo em que o Brasil deixa de ser um país agrícola para se converter em uma nação industrial. É o chamado período de substituição de importações e de internalização de um importante setor de produção de bens de capital.
Mas o mesmo gráfico deixa evidente os estragos provocados pela ilusão neoliberal de uma abertura ao capital internacional sem nenhuma regra de controle. As importações de produtos industrializados passaram a ser regra prioritária, esmagando a capacidade de sobrevivência da indústria nacional. A participação da indústria manufatureira no PIB despencou a partir da década de 1990, tendo chegado atualmente a 11%, segundo as últimas informações do IBGE disponíveis para 2019.
Ora tal perda de importância relativa desse setor estratégico para nossa economia veio acompanhada de uma maior fragilidade do Brasil frente às mutações verificadas no cenário internacional. Passamos a nos converter cada vez mais em exportadores de produtos de baixo valor agregado, como pode bem ser identificado pela composição de nossa pauta exportadora. Vendemos ao resto do mundo produtos de origem agrícola com reduzida transformação, como é o caso da soja, açúcar, carnes e similares. Além disso, cada vez mais pesa em nossa cesta de exportações a participação de produtos derivados do extrativismo, como minério de ferro e petróleo.
A contrapartida desse movimento foi o incremento de nossa dependência de importações de todo tipo para atender ao nosso crescente mercado de consumo interno. Estão aí as evidências de nossas compras sistemáticas de produtos oriundos da China e demais países asiáticos, enquanto as instalações industriais em nosso território são abandonadas e sucateadas. A estratégia empresarial da Vale do Rio Doce privatizada para o capital internacional reflete de forma emblemática o triste retrato dessa nova realidade. A empresa exporta minério de ferro para a China e de lá importa os trilhos de ferro manufaturados para construir suas ferrovias por aqui. Um verdadeiro crime de lesa pátria.
Porém, atualmente nem a opção por essa obsoleta tentativa de inserção do Brasil de forma dependente na dinâmica econômica internacional oferece mais segurança. Abandonar a opção de consolidação da indústria sem ter as mínimas condições de avanço científico e tecnológico para dar o salto rumo à economia do conhecimento já revela por si só uma irresponsabilidade para com o futuro da Nação e para com a maioria de sua população. Construir para nosso país um cenário conformista de sua transformação em mero exportador de produtos primários e importador de bens de alto valor agregado é reproduzir, em pleno século XXI, as lógicas da subalternidade e da dependência do período colonial.
Ocorre que nem mesmo esse projeto servil e pernicioso as nossas elites tupiniquins são capazes de implementar com sua “competência”. Prevalece também nessa nova etapa, como sempre ocorreu no passado, a lógica imediatista do lucro fácil e no curto prazo. Reproduz-se a velha estória de maximização dos ganhos instantâneos, sem a menor preocupação com a sustentabilidade do modelo. Assim se consolida de forma irresponsável a lógica da expansão da fronteira agrícola na dinâmica cíclica envolvendo “desmatamento – pecuária extensiva – agricultura de commodities”. Esse processo implica explosão descontrolada dos índices de destruição de biomas essenciais, tais como o Pantanal, o cerrado e a Amazônia. Esse processo envolve a eliminação da ocupação do território pelas populações originárias, a exemplo de indígenas e quilombolas. Esse processo provoca o comprometimento da sustentabilidade ambiental, por uso excessivo e estimulado de agrotóxicos e transgênicos. Esse processo escancara o quadro da tragédia da desigualdade social e da concentração de riqueza, com aumento de denúncias de trabalho análogo ao escravo e consolidação de gigantescas propriedades agrícolas sem controle nas regiões de fronteira das atividades econômicas.
Assim, o descalabro da imagem que o atual desgoverno faz questão de oferecer ao resto do mundo termina por criar dificuldades para a aceitação desse modelo de exploração de atividades econômicas nas instâncias multilaterais e nos próprios mercados consumidores dos países desenvolvidos. Pouco a pouco, os produtos originários do Brasil passam a encontrar dificuldades de aceitação, refletindo uma mudança radical em relação ao histórico da boa aceitação do chamado “made in Brazil”.
A política negacionista do atual governo beira o ridículo, mas provoca muitos estragos para nosso desempenho exportador – atual e futuro. Os representantes do Brasil nos foros internacionais não aceitam as óbvias evidências dos prejuízos derivados do aquecimento global do desmatamento. Para a narrativa oficial, fenômenos como a destruição da Amazônia ou os incêndios atuais no Pantanal nada mais são do que fruto de guerra de informações de ONG, sempre a serviço de potências internacionais. A resistência da equipe de Bolsonaro em aceitar os compromissos dos acordos de redução de emissão também contribui para piorar a imagem de nosso País no exterior.
Representantes de grandes fundos financeiros internacionais não escondem seu descontentamento para com os rumos mais recentes adotados pelo governo brasileiro. Assim, alertam para o risco de abandonarem seus projetos por aqui, caso não seja alterada de forma significativa nossa política para o meio ambiente. Vários países europeus ameaçam de forma concreta pela não assinatura do Acordo da União Europeia com o Mercosul. O principal argumento, para além de problemas com seus produtores agrícolas locais, refere-se ao processo descontrolado da destruição ambiental levado a cabo pelo Brasil.
Assim, corremos o sério de risco perder até mesmo esse espaço para exportação de nossos produtos de baixo valor agregado. Destruímos nosso parque industrial e tudo indica que estamos seriamente comprometidos em danificar gravemente também o nosso meio ambiente. Perdemos parte de nosso futuro com a inserção na cadeia produtiva da indústria global. E agora nossas elites insistem obstinadamente em reduzir ainda mais o já reduzido patamar dessa estratégia de transformação do Brasil em mero exportador de produtos de baixo valor agregado. O que vemos pela frente é o triste panorama de uma possível estagnação neocolonial, onde nem mesmo os produtos mais elaborados dessa cadeia têm seus mercados assegurados.
De quem é a culpa
A situação internacional que o Brasil enfrenta em relação às políticas ambientais de Jair Bolsonaro é séria e perigosa. Vamos olhar o que acontece do ponto de vista da comunicação, deixando para especialistas dos vários outros setores o mérito de questões específicas.
Existe desinformação no que se diz e se publica sobre o que acontece na Amazônia e no Pantanal? Sim. Existem interesses de competidores comerciais incomodados com a capacidade brasileira de produzir grãos e proteínas? Sim. Existem organizações (partidos, ONGs, instituições religiosas) com agenda político-ideológica atacando um governo (o brasileiro) por considerá-lo seu adversário? Sim.
Nada disso é novidade nem começou com Bolsonaro. Mas o governo está sabendo enfrentar essa batalha da comunicação? Não. Faltam aos que tomam esse tipo de decisões em Brasília dois elementos fundamentais que ajudam a entender a natureza deste que é um dos maiores desastres de comunicação em escala internacional.
O primeiro elemento é a falta de compreensão do fenômeno lá fora, mas não só. Por incrível que pareça, o governo brasileiro não entendeu a abrangência, a profundidade e o peso da questão climática e ambiental na sua escala planetária. Se isto era, nos idos da Rio 92 (quando o Brasil se preparou muito bem para o que viria), uma agenda de instituições multilaterais e de governos, empurrados em parte por ONGs, hoje a questão ambiental molda nosso “Zeitgeist”, o espírito de uma época, e condiciona a percepção da realidade de gerações inteiras de atores políticos, instituições, governos, consumidores, empresários, grandes corporações no mundo inteiro.
Há um notável apego de ocupantes de gabinetes no Planalto, especialmente generais estrelados, em enxergar no tsunami negativo lá fora em relação ao Brasil articulações contra a nossa soberania em geral e nosso governo em particular – um esquema mental diretamente transferido dos anos setenta para uma realidade muito mais complexa do que conspirações geopolíticas para negar ao Brasil seu direito manifesto de ser uma grande potência. Em outras palavras, embarcaram na guerra de ontem.
O segundo elemento que ajuda a entender o desastre de comunicação é o apego a táticas político-eleitorais – como a negação de fatos, o “deixa que eu chuto”, o xingamento do adversário, a efervescência nas redes sociais – que funcionam no ambiente polarizado de eleições. Mas que tem se mostrado inócuas em escala internacional. O “enfrentamento” duro do adversário, real ou percebido, até aqui não avançou os interesses do Brasil.
Ao contrário, se há algo que o “altivo” discurso de Bolsonaro evidencia quanto à “estratégia” de lidar com a crise internacional de imagem brasileira é a de que ele não tem nenhuma – além de satisfazer seus seguidores domésticos. E não estamos falando de danos subjetivos ou de “percepções” deste ou daquele dirigente ou personagem do debate ambiente versus economia (totalmente superado até na China): estamos falando de danos concretos à capacidade do Brasil de competir nos mercados que interessam.
O extraordinário de tudo isso é que o Brasil tem, de fato, lições a dar em matéria de meio ambiente e de como aumentar a produção de grãos e proteínas de forma sustentável e socialmente responsável. Tem lições a dar em matéria de matrizes energéticas. Dispõe de sólida tradição diplomática (hoje abandonada) na busca de decisões por consenso e cooperação multilaterais. E uma imagem (ainda que cada vez mais distante da realidade social) de um país aberto, simpático, tolerante e bonito.
São ativos desprezados na batalha da comunicação. Enfrentar o que estamos enfrentando lá fora em termos de imagem não é culpa dos outros, dos insidiosos adversários. É nossa, mesmo.
Existe desinformação no que se diz e se publica sobre o que acontece na Amazônia e no Pantanal? Sim. Existem interesses de competidores comerciais incomodados com a capacidade brasileira de produzir grãos e proteínas? Sim. Existem organizações (partidos, ONGs, instituições religiosas) com agenda político-ideológica atacando um governo (o brasileiro) por considerá-lo seu adversário? Sim.
Nada disso é novidade nem começou com Bolsonaro. Mas o governo está sabendo enfrentar essa batalha da comunicação? Não. Faltam aos que tomam esse tipo de decisões em Brasília dois elementos fundamentais que ajudam a entender a natureza deste que é um dos maiores desastres de comunicação em escala internacional.
O primeiro elemento é a falta de compreensão do fenômeno lá fora, mas não só. Por incrível que pareça, o governo brasileiro não entendeu a abrangência, a profundidade e o peso da questão climática e ambiental na sua escala planetária. Se isto era, nos idos da Rio 92 (quando o Brasil se preparou muito bem para o que viria), uma agenda de instituições multilaterais e de governos, empurrados em parte por ONGs, hoje a questão ambiental molda nosso “Zeitgeist”, o espírito de uma época, e condiciona a percepção da realidade de gerações inteiras de atores políticos, instituições, governos, consumidores, empresários, grandes corporações no mundo inteiro.
Há um notável apego de ocupantes de gabinetes no Planalto, especialmente generais estrelados, em enxergar no tsunami negativo lá fora em relação ao Brasil articulações contra a nossa soberania em geral e nosso governo em particular – um esquema mental diretamente transferido dos anos setenta para uma realidade muito mais complexa do que conspirações geopolíticas para negar ao Brasil seu direito manifesto de ser uma grande potência. Em outras palavras, embarcaram na guerra de ontem.
O segundo elemento que ajuda a entender o desastre de comunicação é o apego a táticas político-eleitorais – como a negação de fatos, o “deixa que eu chuto”, o xingamento do adversário, a efervescência nas redes sociais – que funcionam no ambiente polarizado de eleições. Mas que tem se mostrado inócuas em escala internacional. O “enfrentamento” duro do adversário, real ou percebido, até aqui não avançou os interesses do Brasil.
Ao contrário, se há algo que o “altivo” discurso de Bolsonaro evidencia quanto à “estratégia” de lidar com a crise internacional de imagem brasileira é a de que ele não tem nenhuma – além de satisfazer seus seguidores domésticos. E não estamos falando de danos subjetivos ou de “percepções” deste ou daquele dirigente ou personagem do debate ambiente versus economia (totalmente superado até na China): estamos falando de danos concretos à capacidade do Brasil de competir nos mercados que interessam.
O extraordinário de tudo isso é que o Brasil tem, de fato, lições a dar em matéria de meio ambiente e de como aumentar a produção de grãos e proteínas de forma sustentável e socialmente responsável. Tem lições a dar em matéria de matrizes energéticas. Dispõe de sólida tradição diplomática (hoje abandonada) na busca de decisões por consenso e cooperação multilaterais. E uma imagem (ainda que cada vez mais distante da realidade social) de um país aberto, simpático, tolerante e bonito.
São ativos desprezados na batalha da comunicação. Enfrentar o que estamos enfrentando lá fora em termos de imagem não é culpa dos outros, dos insidiosos adversários. É nossa, mesmo.
Mandetta e as previsões
Se fôssemos extremamente duros, radical, nível Nova Zelândia, teríamos 30 mil mortes. Se tivéssemos nossas ferramentas de enfrentamento, luta, restrição, conscientização, educação em saúde e participação suprapartidária de todo mundo contra um inimigo em comum, seriam 80 mil.Se fizéssemos um caminho de não fazer nada, e deixar a onda explodir, é um número muito elevado. E estamos aí em 140 mil mortes (atualmente). Acho que até o surgimento da vacina é capaz de chegarmos aos 180 mil, que falamos no livro.Henrique Mandetta, ex-ministro da Saúde, que lança o livro de memórias “Um paciente chamado Brasil”
Ignorância gera ignorância
‘Perdoa-lhes, Senhor, pois eles não sabem o que fazem’ (Lucas 23:34).
Ele se diz o grande vitorioso sobre a epidemia, mesmo com o Brasil em segundo lugar nas mortes, repetindo que a cloroquina evitaria muitas delas, que os culpados são os governadores e prefeitos, e o STF, que lhes deu autoridade para instituir o isolamento, que, como ele diz, é para os fracos. Assegura para seu rebanho que, sem o isolamento, haveria menos contaminações e mortes — o único governante ou médico do mundo a dizer isso. Nem Trump ousou tanto. Ele vira piadas, escrachos e memes, mas não liga, aposta sempre na ignorância, talvez por ser ele mesmo de ignorância cavalar — que não se confunde com burrice ou ingenuidade. A inteligência a serviço do mal provoca mais danos que a burrice.</p><p>Jair não é burro nem ingênuo e está desenvolvendo uma mistura explosiva de pastor evangélico e militar latino-americano, com um discurso populista-nacionalista, baseado em verdades fictícias, sempre sem provas concretas, e mentiras conscientes que só vão gerar mais ignorância. A vantagem de mentir para ignorantes é que ninguém o contesta.
Mas Bolsonaro sabe muito bem o que diz e para quem fala. Quando ele afirma, sem rir ou baixar os olhos, que a economia brasileira é a que está se recuperando melhor, mesmo com 13 milhões de desempregados, quebradeira geral, déficit monstro e recessão, está falando para pessoas que não têm ideia do que acontece em outros países, não têm base para comparação. E, mesmo assim, acreditam nele e saem repetindo o bordão. Ele confia na ignorância de sua base e não liga de ser debochado, desmentido e chacoteado pelos que sabem das suas mentiras mal contadas. Esses não vão votar nele mesmo, então não o interessam.
Ele se diz o grande vitorioso sobre a epidemia, mesmo com o Brasil em segundo lugar nas mortes, repetindo que a cloroquina evitaria muitas delas, que os culpados são os governadores e prefeitos, e o STF, que lhes deu autoridade para instituir o isolamento, que, como ele diz, é para os fracos. Assegura para seu rebanho que, sem o isolamento, haveria menos contaminações e mortes — o único governante ou médico do mundo a dizer isso. Nem Trump ousou tanto. Ele vira piadas, escrachos e memes, mas não liga, aposta sempre na ignorância, talvez por ser ele mesmo de ignorância cavalar — que não se confunde com burrice ou ingenuidade. A inteligência a serviço do mal provoca mais danos que a burrice.</p><p>Jair não é burro nem ingênuo e está desenvolvendo uma mistura explosiva de pastor evangélico e militar latino-americano, com um discurso populista-nacionalista, baseado em verdades fictícias, sempre sem provas concretas, e mentiras conscientes que só vão gerar mais ignorância. A vantagem de mentir para ignorantes é que ninguém o contesta.
Quando contestado, como no único debate de que participou, ele foi o pior de todos: mostrou que não sabia nada, que não sabe responder, só dar ordens. Nos outros debates, se tivessem acontecido, seria massacrado até pelo Cabo Daciolo. Mas essa sorte não se repetirá em 2022.
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