quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Pensamento do Dia

 


País assolado por corrupção institucional, facções, crime empresarial e financeiro

Desde 1995, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) teve seis presidentes. Quatro foram presos, no comando da casa ou no comando de coisas ainda piores, como o ex-governador Sérgio Cabral Filho. Que tenham prendido mais um presidente da Alerj deveria causar surpresa? Ou tédio enojado?

Qualquer leitora de jornais dirá logo que essas perguntas estão erradas, pois não se trata de problema específico da Alerj ou do Rio de Janeiro, embora meus conterrâneos estejam de fato exagerando, por assim dizer. Há mais evidências de que a corrupção está mais disseminada, tolerada, perigosa e, agora, é motivo central de uma das maiores querelas institucionais do Brasil —parlamentares contra Supremo.

A corrupção é cada vez mais sistemática ou organizada em gangues políticas. O exemplo mais recente é o desse Rodrigo Bacellar (União Brasil), que presidia a Alerj. Foi preso nesta quarta pela Polícia Federal porque acusado de prestar serviços a um grupo criminoso, vazando informações a fim de ajudar um comparsa a fugir da polícia, no caso um deputado acusado de ser próximo do Comando Vermelho.


A corrupção é escandalosamente tolerada —basta lembrar o caso das rachadinhas daquela famosa família. Está mais e mais conectada ao dito "crime comum". A corrupção vai além do suspeito de sempre, o Legislativo —vide as investigações de vendas de sentenças e outras negociatas em Tribunais de Justiça e no Superior Tribunal de Justiça.

A corrupção tornou-se problema institucional maior e crônico, por vias indiretas, mas gritantes. Nesta quarta, o ministro Gilmar Mendes, do STF, decidiu que o pedido de impeachment de ministros do Supremo deve partir da Procuradoria-Geral da República —o caso ainda vai para o plenário do tribunal. Se a decisão tem fundamento constitucional é assunto para entendidos. O que importa aqui, agora, é que se trata de mais um capítulo do embate entre STF e Congresso. O Senado reagiu e diz que pode votar emenda constitucional que trate do assunto.

Parlamentares, em particular da direita e da extrema direita, querem cabeças do Supremo. A julgar por outras votações relevantes, a maioria quer aprovar leis que a ajude a fugir da polícia e da Justiça. Vide o caso da PEC da Blindagem. Sim, o Supremo está fora da casinha institucional e politizado de modo indevido faz mais de década. Mas o limite constitucional da atuação do Judiciário é assunto da minoria parlamentar que se ocupa de assuntos públicos sérios.

Faz mais de dois anos, deputados e senadores estão incomodados com as investigações de roubança de emendas parlamentares. A tentativa de "blindagem" piorou com a lambança das emendas e depois de o ministro Flavio Dino elaborar um plano para colocar alguma ordem na casa.

Operações contra o crime organizado e contra o crime empresarial ou financeiro organizado frequentemente passam perto do mundo político: pegam amigos, assessores, parentes, sócios. Já pegaram alguns bagrinhos. Há tubarões nervosos. De qualquer modo, seja qual for o motivo, "político" ou outro, parlamentares querem evitar que a gentalha seja processada ou presa. Deputados da extrema direita fogem do país para escapar da polícia, com a tolerância do Congresso.

É uma nova crise de corrupção institucional, que ocorre quando descobrimos o tamanho das facções e suas relações com empresas e finanças. Pior, pode bem haver laços entre todos esses bandos.

Bolsonaro inesquecível

Há uma semana, escrevi de novo aqui sobre Bolsonaro. Leitores estranharam e me cobraram por ter dito que não falaria mais dele. Mas eu nunca disse bem isso. O que prometi foi que, quando Bolsonaro fosse preso, deixaria de poluir este espaço com seu nome. E só naquela quinta-feira, com o jornal já nas ruas, foi-lhe dada a ordem de cumprimento da pena e Bolsonaro começou a contar com quantos dias se fazem 27 anos e três meses de cadeia.


Outros leitores me atribuíram uma fixação em Bolsonaro. De fato, devo ter escrito umas cem vezes ou mais sobre ele nos últimos sete anos. Mas tinha razão para isso. Bolsonaro, político rasteiro quando deputado —pertencia ao baixo clero do baixo clero—, beneficiou-se de uma trágica convergência política para ganhar a Presidência e se tornar o homem mais perigoso da nossa história republicana. Se chegasse ao segundo mandato, já tinha tudo preparado para eternizar-se no poder, do qual "só sairia morto", como não se cansou de dizer. Em quatro anos no Planalto, dedicou cada hora do dia a esse plano.

Outros leitores comentaram que "está na hora de esquecer Bolsonaro" e que "continuar a falar dele é dar-lhe uma importância que ele não merece". Pois penso exatamente o contrário. Não podemos esquecê-lo nunca. Bolsonaro precisa ser lembrado para sempre a fim de que não surjam novos bolsonaros —assim como as Forças Armadas não podem se esquecer de Augusto Heleno, Braga Netto, Almir Garnier e outros que rebaixaram suas fardas a serviço de alguém que nunca honrara a dele.

A história é a espinha dorsal de um país, daí os regimes autoritários, de direita ou de esquerda, a reescreverem quando se instalam no poder. Todos aprenderam com George Orwell: quem controla o presente controla o passado; quem controla o passado controla o futuro.

Bolsonaro já devia começar a fazer parte do currículo do ensino básico. Os filhos de muitos mortos pela Covid, por exemplo, têm o direito de saber que seus pais morreram porque ele lhes negou a vacina.

Fazer viver, deixar morrer: a farmacopolítica da existência

A recente decisão das empresas farmacêuticas Dr. Reddy’s e Hetero de disponibilizar o Lenacapavir como profilaxia pré-exposição (PrEP) ao HIV por US$ 40 anuais a partir de 2027 foi recebida com entusiasmo por organizações internacionais de saúde pública. Não sem razão, pois trata-se de um medicamento injetável de altíssima eficácia, aplicado apenas duas vezes por ano, capaz de contribuir na prevenção do HIV para populações que enfrentam estigma, violência, criminalização ou barreiras na adesão medicamentosa. Entretanto, apesar do potencial revolucionário desta tecnologia, o modelo de acesso que vem sendo estruturado tende a intensificar os padrões globais de exclusão que historicamente moldam a resposta à epidemia.

Médicos Sem Fronteiras (MSF), uma das vozes mais respeitadas no campo humanitário, celebrou o acordo, mas advertiu para um paradoxo evidente: os 120 países contemplados no licenciamento incluem muitos territórios de baixa renda, mas deixa de fora países de renda média onde ocorre um quarto das novas infecções globais por HIV. Vale lembrar que o licenciamento foi concedido pela empresa Gilead, que, em última instância, detém o poder de definir quais países que poderão ter acesso aos genéricos.

Também ficam excluídas populações que participaram de ensaios clínicos com o Lenacapavir na América Latina, como o Brasil, a Argentina, o México e o Peru, cenário que reforça uma lógica extrativista em que corpos do Sul global servem como base de pesquisa, mas não como destinatários prioritários dos benefícios produzidos.

Essa contradição evidencia que a disputa em torno do Lenacapavir não é apenas sanitária, mas também econômica e geopolítica. A tecnologia biomédica, quando submetida às lógicas de propriedade intelectual e de rentabilidade corporativa, deixa de ser instrumento de saúde pública e passa a operar como um ativo estratégico circulando em mercados globalmente desiguais. O caso do Lenacapavir, portanto, inscreve-se na longa história de tensões entre ciência e capital, característica dos regimes contemporâneos de inovação farmacêutica.

Segundo modelagem recente do UNAIDS, as metas globais propostas reduzirão apenas 50 mil novas infecções, num universo potencial de 3,8 milhões que poderiam ser evitadas com uma estratégia mais ousada de implementação. Isso ocorre porque os principais compromissos internacionais, como o acordo entre PEPFAR, Gilead e Fundo Global, são limitados em escopo territorial e populacional, e porque sua concepção política prioriza grupos como gestantes e lactantes, enquanto desprioriza populações-chave que já carregam o maior peso da epidemia.

A Gilead, detentora da patente, permanece no centro da crítica. Sua estratégia comercial prioriza o lucro e resguarda mercados de alto poder aquisitivo, enquanto restringe a entrada de genéricos e limita acordos de licenciamento voluntário. O resultado é uma cadeia de oferta que, mesmo ampliada com a participação de empresas indianas, permanece estreita, insuficiente e vulnerável às oscilações do mercado.

Não é apenas uma questão de preço, mas de controle político da tecnologia. O monopólio sobre moléculas inovadoras permite às corporações governar a velocidade, o alcance e as condições de difusão de medicamentos, invertendo a lógica: não é o interesse público que organiza a inovação, mas a inovação que subordina o interesse público às dinâmicas corporativas.


O anúncio do preço de US$ 40 é um avanço, mas insuficiente se considerado o que está em disputa: a possibilidade real de frear a epidemia em escala global. A ciência, aqui, não é o limite. O limite é a política. Deixar grandes populações de fora de um regime de acesso significa consolidar um sistema de saúde internacional seletivo, onde vidas são hierarquizadas por critérios econômicos e geopolíticos.

O caso das Filipinas, citado pela MSF, é emblemático: ofertar Lenacapavir a apenas 2% da população, mas justamente às populações mais expostas, reduziria quase metade das novas infecções. A matemática da saúde pública segue submetida à matemática do lucro.

O sistema classificatório global de renda, utilizado para determinar acesso a genéricos e a acordos de licenciamento, reduz realidades complexas em categorias binárias, perpetuando a colonialidade no campo da saúde global. Ao final, países considerados “ricos demais para receber ajuda”, mas “pobres demais para comprar inovação”, ficam aprisionados em um limbo sanitário e econômico.

É verdade que os países excluídos da licença voluntária da Gilead poderiam recorrer a licença compulsória – portanto, não estariam totalmente reféns do acordo. No entanto, essa seria uma outra batalha, que igualmente depende de vontade política.

Uma estratégia verdadeiramente transformadora exigiria ampliar acordos de licenciamento para toda a América Latina e demais países de renda média; estabelecer mecanismos de transparência nos preços e nos custos de produção; fortalecer pressões multilaterais para flexibilizar patentes em contextos de pandemias e epidemias; garantir participação das populações-chave na formulação das políticas de acesso; e fomentar produção pública e regional de tecnologias biomédicas.

A ciência já demonstrou que o Lenacapavir pode mudar a história da prevenção ao HIV. O que falta agora não é tecnologia, mas decisão política. A saúde global seguirá refém da lógica de mercado enquanto países e organizações não confrontarem a estrutura que transforma bens fundamentais à vida em mercadoria. O desafio, portanto, vai além da PrEP. Trata-se de redefinir o regime global de inovação biomédica e exigir que a vida, e não o lucro, seja o eixo organizador das políticas de saúde.

Estamos a viver ou apenas a sobreviver?

O ritmo da vida moderna tornou-se tão acelerado que muitos de nós já nem o questionamos. Vivemos numa espécie de corrida permanente, em que cada dia começa com urgências e termina com a sensação de que ficou algo por fazer. A produtividade transformou-se numa métrica de valor pessoal e a disponibilidade constante parece ter-se tornado um requisito de sobrevivência, porém, por trás desta normalidade forçada esconde-se um risco cada vez mais evidente, o burnout.

O burnout não é apenas sinónimo de cansaço extremo. É um esgotamento profundo, físico e emocional, que se instala quando ultrapassamos de forma continuada os nossos limites. Surge quando tratamos o descanso como um detalhe dispensável, quando ignoramos a necessidade de parar, quando acreditamos que resistir é sempre a solução. E, no entanto, é justamente esta ideia, a de que aguentar é virtude, que nos empurra para o abismo.


Hoje, qualquer pessoa está vulnerável, a linha que separa dedicação de exaustão tornou-se tão ténue que basta um prolongado período de exigência para a ultrapassarmos sem perceber. A tecnologia ampliou essa fragilidade, estamos sempre alcançáveis, sempre ligados, sempre expostos a estímulos que exigem resposta, a fronteira entre trabalho e vida pessoal dissolveu-se, e com ela dissolveu-se também o espaço para simplesmente existir.

Mais preocupante ainda é que a sociedade continua a glorificar este modo de vida, premia quem nunca falha, quem acumula tarefas, quem está sempre “on”. Raramente valorizamos quem escolhe descansar, quem define limites, quem decide preservar a saúde mental antes de tudo, mas a verdade é que nenhuma carreira, nenhum objetivo e nenhum reconhecimento compensam o desgaste silencioso que se vai acumulando até rebentar.

É, por isso, urgente que repensemos o modo como vivemos, precisamos de recuperar o direito ao ritmo humano, um ritmo que permita pausa, reflexão e cuidado. Precisamos de aceitar que não somos máquinas e de compreender que produtividade sem bem-estar não é progresso, é autodestruição. A ideia de que parar é desperdício deve dar lugar à consciência de que o descanso é parte essencial da vida e não um luxo ocasional.

Viver não pode ser apenas cumprir tarefas, responder a e-mails ou sobreviver ao calendário, viver implica sentir, relacionar-se, estar presente e cuidar de si. Implica reconhecer que o corpo tem limites, que a mente precisa de silêncio e que a felicidade não nasce de uma agenda cheia, mas de uma vida equilibrada. E cuidar de nós não é egoísmo, é responsabilidade. É o gesto que garante que permaneceremos inteiros, saudáveis e capazes de dar o melhor de nós às pessoas e causas que nos importam.

O burnout não é inevitável, mas evitá-lo exige coragem, a coragem de abrandar quando tudo nos empurra para correr, de dizer “basta” quando os limites já foram ultrapassados, de escolher a vida antes que ela se reduza a uma sucessão de obrigações. Talvez o maior desafio do nosso tempo seja justamente este, aprender a viver de forma consciente, recusando a lógica do sacrifício permanente.

Porque, no fim, não se trata de fazer mais, trata-se de viver melhor. E essa escolha, embora difícil, é a única capaz de nos devolver aquilo que a pressa nos tem roubado, a capacidade de sermos verdadeiramente humanos.