quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Fazer viver, deixar morrer: a farmacopolítica da existência

A recente decisão das empresas farmacêuticas Dr. Reddy’s e Hetero de disponibilizar o Lenacapavir como profilaxia pré-exposição (PrEP) ao HIV por US$ 40 anuais a partir de 2027 foi recebida com entusiasmo por organizações internacionais de saúde pública. Não sem razão, pois trata-se de um medicamento injetável de altíssima eficácia, aplicado apenas duas vezes por ano, capaz de contribuir na prevenção do HIV para populações que enfrentam estigma, violência, criminalização ou barreiras na adesão medicamentosa. Entretanto, apesar do potencial revolucionário desta tecnologia, o modelo de acesso que vem sendo estruturado tende a intensificar os padrões globais de exclusão que historicamente moldam a resposta à epidemia.

Médicos Sem Fronteiras (MSF), uma das vozes mais respeitadas no campo humanitário, celebrou o acordo, mas advertiu para um paradoxo evidente: os 120 países contemplados no licenciamento incluem muitos territórios de baixa renda, mas deixa de fora países de renda média onde ocorre um quarto das novas infecções globais por HIV. Vale lembrar que o licenciamento foi concedido pela empresa Gilead, que, em última instância, detém o poder de definir quais países que poderão ter acesso aos genéricos.

Também ficam excluídas populações que participaram de ensaios clínicos com o Lenacapavir na América Latina, como o Brasil, a Argentina, o México e o Peru, cenário que reforça uma lógica extrativista em que corpos do Sul global servem como base de pesquisa, mas não como destinatários prioritários dos benefícios produzidos.

Essa contradição evidencia que a disputa em torno do Lenacapavir não é apenas sanitária, mas também econômica e geopolítica. A tecnologia biomédica, quando submetida às lógicas de propriedade intelectual e de rentabilidade corporativa, deixa de ser instrumento de saúde pública e passa a operar como um ativo estratégico circulando em mercados globalmente desiguais. O caso do Lenacapavir, portanto, inscreve-se na longa história de tensões entre ciência e capital, característica dos regimes contemporâneos de inovação farmacêutica.

Segundo modelagem recente do UNAIDS, as metas globais propostas reduzirão apenas 50 mil novas infecções, num universo potencial de 3,8 milhões que poderiam ser evitadas com uma estratégia mais ousada de implementação. Isso ocorre porque os principais compromissos internacionais, como o acordo entre PEPFAR, Gilead e Fundo Global, são limitados em escopo territorial e populacional, e porque sua concepção política prioriza grupos como gestantes e lactantes, enquanto desprioriza populações-chave que já carregam o maior peso da epidemia.

A Gilead, detentora da patente, permanece no centro da crítica. Sua estratégia comercial prioriza o lucro e resguarda mercados de alto poder aquisitivo, enquanto restringe a entrada de genéricos e limita acordos de licenciamento voluntário. O resultado é uma cadeia de oferta que, mesmo ampliada com a participação de empresas indianas, permanece estreita, insuficiente e vulnerável às oscilações do mercado.

Não é apenas uma questão de preço, mas de controle político da tecnologia. O monopólio sobre moléculas inovadoras permite às corporações governar a velocidade, o alcance e as condições de difusão de medicamentos, invertendo a lógica: não é o interesse público que organiza a inovação, mas a inovação que subordina o interesse público às dinâmicas corporativas.


O anúncio do preço de US$ 40 é um avanço, mas insuficiente se considerado o que está em disputa: a possibilidade real de frear a epidemia em escala global. A ciência, aqui, não é o limite. O limite é a política. Deixar grandes populações de fora de um regime de acesso significa consolidar um sistema de saúde internacional seletivo, onde vidas são hierarquizadas por critérios econômicos e geopolíticos.

O caso das Filipinas, citado pela MSF, é emblemático: ofertar Lenacapavir a apenas 2% da população, mas justamente às populações mais expostas, reduziria quase metade das novas infecções. A matemática da saúde pública segue submetida à matemática do lucro.

O sistema classificatório global de renda, utilizado para determinar acesso a genéricos e a acordos de licenciamento, reduz realidades complexas em categorias binárias, perpetuando a colonialidade no campo da saúde global. Ao final, países considerados “ricos demais para receber ajuda”, mas “pobres demais para comprar inovação”, ficam aprisionados em um limbo sanitário e econômico.

É verdade que os países excluídos da licença voluntária da Gilead poderiam recorrer a licença compulsória – portanto, não estariam totalmente reféns do acordo. No entanto, essa seria uma outra batalha, que igualmente depende de vontade política.

Uma estratégia verdadeiramente transformadora exigiria ampliar acordos de licenciamento para toda a América Latina e demais países de renda média; estabelecer mecanismos de transparência nos preços e nos custos de produção; fortalecer pressões multilaterais para flexibilizar patentes em contextos de pandemias e epidemias; garantir participação das populações-chave na formulação das políticas de acesso; e fomentar produção pública e regional de tecnologias biomédicas.

A ciência já demonstrou que o Lenacapavir pode mudar a história da prevenção ao HIV. O que falta agora não é tecnologia, mas decisão política. A saúde global seguirá refém da lógica de mercado enquanto países e organizações não confrontarem a estrutura que transforma bens fundamentais à vida em mercadoria. O desafio, portanto, vai além da PrEP. Trata-se de redefinir o regime global de inovação biomédica e exigir que a vida, e não o lucro, seja o eixo organizador das políticas de saúde.

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