quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Boas cinzas

A Quarta-Feira de Cinzas marca o fim do carnaval cuja fórmula era o oposto do nosso cotidiano. Vejo eu mesmo com 14 anos, berrando com a minha turma um inútil: “É hoje só/ Amanhã não tem mais!”. Protesto e mantra daquilo que nos leva à lua nessas jornadas curtas - tão ligeiras e gozosas como a própria vida que passa, ela própria, como um carnaval.

Vivemos num mundo marcado pelo proibido e pelo “amanhã” - um futuro que justificava as negativas porque seria vivido como realidade. Menino e moço, eu não fui cidadão na “terra do nunca” como o mítico moderno Peter Pan, mas no país do “não”. Na terra no “não temos”, “não pode”, “não é possível”, “a lei não permite”, “proibido para menores de 18 anos” ao lado do “daqui a pouco eu faço...”. Essas foram as expressões que - sem exagero - eu mais ouvi na minha rotina caseira, escolar e religiosa, bem como quando estava com a minha “turma” na esquina da rua Dr. Romualdo com a avenida Rio Branco, em Juiz de Fora; ou no “muro branco” de Icaraí, aqui em Niterói.


Em casa, eu internalizava o não entrelaçado ao “tenha muito cuidado”, essa outra dimensão da vida moral brasileira. A “turma” que competia com a minha família e aliava a vivência de proibições permanentes me dava uma certa saúde mental, embora tivesse também suas formas de negação e limites. Nela, eu aprendi o significado do pecado e do correto - essas dissimulações do velho não.

*

Nascemos no mundo do controle. É proibido fumar, a mentira é descoberta no olhar das pessoas e até o vento e a chuva (vindos de fora) - tal como os desconhecidos - são perigosos. Um universo de proibições e restrições permeia nossa morada. O perigo moral ronda o mundo. Muito antes de ler Guimarães Rosa, eu sabia que viver era muito perigoso. É claro que era! Nesse nosso Brasil, tudo - até mesmo usar calça comprida e fazer a barba - era regulado. Quando apareci na turma usando um sapato sem cadarço, perguntaram se, na loja onde eu o havia comprado, vendiam artigo para homem! Homem deveria ser duro, calado e feio. Não poderia usar camisa colorida nem sentar juntando as pernas. Se você apreciasse filmes musicais, você era imediatamente colocado no “gelo”. Ninguém seria seu amigo porque todas as pontes potenciais eram tão condenadas quanto as “desquitadas” num país que, em matéria de casamento, a questão básica não era se ele deveria durar para sempre, mas ser tão eterno quanto o outro mundo. As pessoas não escolhiam casar; era o casamento que as escolhiam.

Hoje, eu vejo que esse Brasil do não, do proibido e do amanhã estava centrado numa religiosidade cuja promessa era o paraíso a ser conquistado pelos obedientes, pelos pacientes, pelos que aceitavam o seu lugar - mesmo quando eram escravos, desviantes, marginais ou miseráveis. Neste mundo, tudo é proibido, mas, em compensação, “no céu”, no paraíso, no verdadeiro mundo real que era ironicamente o outro mundo, havia a felicidade eterna ao lado dos anjos, dos santos e de Deus. O paraíso seria a terra sem fronteira do sim.

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Este mundo e o outro formam as margens ideológicas do imenso rio nacional. Num lado, fica o sim da minoria dos que podem fazer tudo; do outro, há o não da maioria proibida de tudo fazer. Seria o carnaval, essa festa sem centro ou sujeito, uma rosiana terceira margem?

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No país do carnaval, há uma pergunta que não quer calar: por que, com toda essa roubalheira abusiva e nessa falência estrutural de serviços públicos essenciais, os brasileiros não reclamam em bloco e o País não explode numa reversão momesca?

Seria porque nas sociedades densamente antimodernas, fundadas na mais profunda opressão, existem mecanismos sociais de evasão, de compensação e de mistificação - válvulas de escape bem estabelecidas, como o carnaval?

Nesse caso, o carnaval seria o momento festivo do “sim” e do “pode tudo” na terra do não. E, como a liberdade licenciosa do reino de Momo está relacionada ao riso, ao canto, à dança, e aos desfiles nos quais os subordinados viram deuses e os ricos os aplaudem dos seus luxuosos camarotes, o carnaval é um drama fugaz que reverte o cotidiano. Tal teatro tem que terminar em cinzas.

Percorremos mais um carnaval. Fomos da opulenta carne fantasiada e sensualizada (boa de comer) dos desfiles, blocos e bailes, onde a regra é exibir sem vergonha todos os excessos. Sobretudo o de ter o direito e nada fazer num sistema que foi tocado a escravidão.

Não há como todo esse fogo não terminar em cinzas. Nesta pungência fria da morte.

Somos todos a vaca Hermien?

É possível identificar-se com a história da vaca Hermien, que se jogou do caminhão que a levava, junto com outras, ao matadouro e há um mês está fugindo pelos bosques da Holanda? Poderíamos dizer que sim, dada a rede de solidariedade que ela despertou em milhares de pessoas que estão angariando fundos para comprar o animal e assim permitir que termine seus dias em paz sem sofrer uma morte violenta.
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Hermien
Uma história na verdade insignificante que acabou se tornando um símbolo de identificação humana. Caberia perguntar-se o que desperta em nosso subconsciente esse animal que, em vez de se deixar levar passivamente para a morte, teve a coragem de saltar do caminhão e empreender uma fuga sem saber para onde, antes de se deixar sacrificar passivamente no matadouro.

Vivemos em um mundo dominado pela violência, onde os humanos nos sentimos cada vez mais massa passiva dominada por quem nos escraviza de mil formas sofisticadas fazendo-nos perder o sentido mais profundo da existência. Sentimo-nos, todos, e os despossuídos mais ainda, um número, uma peça dentro de uma sociedade que se torna cada vez mais passiva e resignada, “como gado levado ao matadouro”, segundo o sábio adágio popular.

A sociedade se descobre cada dia mais castrada em sua identidade, em sua liberdade de pensar e de criar, de ser mais que um número e uma peça no xadrez anônimo dos poderes de fato que nos vigiam, dominam e domesticam para que sejamos um produto que pode ser vendido e consumido. Somos todos vítimas destinadas ao sacrifício no altar do dinheiro, pelo bem comum, dizem, os novos sacerdotes do mercado.

Talvez por isso, milhares de pessoas tenham se sentido sensibilizadas, quase libertadas, ao se identificar com esse animal que intuiu por instinto que era conduzido ao martírio para se transformar em comida dos seus donos, os humanos, e saltou em busca de liberdade.


Essa ânsia de liberdade, a luta contra a morte, a resistência para não ser mais um na multidão anestesiada, as vontades de continuar gozando a vida sem que ninguém tenha o direito de nos sacrificar antes do tempo, pode ter sido o que sentem aqueles estão se identificando com o gesto da vaca Hermien, que disse “não” a quem se arrogava o direito de sacrificá-la. Libertar de uma morte não natural esse animal, que preferiu a fuga no vazio atirando-se do caminhão à aceitação passiva do matadouro, está sendo para muitos uma espécie de catarse. É como se a sociedade se perguntasse se, com nosso conformismo diante dos poderes e das ideologias que pretendem decidir autoritariamente nosso destino, não seria preferível saltar do caminhão da morte para redescobrir nossa dignidade humana. Essa dignidade que vemos metaforicamente refletida no gesto dessa vaca que disse não à multidão e se jogou no vazio que acabou sendo sua salvação.

Enfim descansando os ouvidos

Vai passar

Que tiro foi esse? É funk. Foi hit do Carnaval. Apropriadíssimo, no Brasil que mata gente como se fosse mosca.

Relaxa. A diva Elza Soares ensina: Esse momento trágico do Brasil vai passar. Ela que, aos 80, já viveu um de tudo, sabe muito que tudo passa.

No sábado, a primeira das Escolas de Samba paulistas, a Independente Tricolor, abriu a pista mandando: “Hoje o bicho vai pegar, vem ver, a plateia delirar, enlouquecer. Saiu da tela, entrou na mente. É o terror independente.”.



O terror anda mesmo muito independente – sai da tela e entra na mente. Todo dia. Toda hora.

No modo Carnaval, o brasileiro faz folia – deboche, ironia, zoação. Bagunça para aliviar desacertos. Como dá, puxa no gogó loucura temporária. Trégua nas desditas.

Então, relaxa.

Na rua, o Simpatia Quase Amor, do Rio zoou: “Ensaio de escola? Ele mela. Roda de samba? Atropela. Macumba? Não tolera. Só gosta de bloco nutella. Ele não cuida? Nem zela. Casa de jongo? Cancela. Em nome de Deus? Apela. Qual o nome do hômi?”

É o filho de múmia com cascavel, entrega a letra, que zoa o bispo-alcaide da cidade, de nome não citado, devidamente identificado. Forra.

No sambódromo carioca, a Beija Flor de Nilópolis, mandou reto:

(…)
Ganância veste terno e gravata
Onde a esperança sucumbiu
Vejo a liberdade aprisionada
Teu livro eu não sei ler, Brasil!
Mas o samba faz essa dor dentro do peito ir embora
Feito um arrastão de alegria e emoção o pranto rola
Meu canto é resistência
No ecoar de um tambor
Vêm ver brilhar
Mais um menino que você abandonou
Oh pátria amada, por onde andarás?
Seus filhos já não aguentam mais!


Lá pra trás, quando a ditadura comia solta, em 1975, a mesma Escola atravessou o samba. “A Beija-Flor vem exaltar com galhardia o grande decênio do nosso Brasil, que segue avante, pelo céu, mar e terra, nas asas do progresso constante, onde tanta riqueza se encerra. Lembrando PIS, PASEP e também o FUNRURAL, que ampara o homem do campo com segurança total.” Desafinou.

Bala perdida? Passou.

Tudo passa.

Tânia Fusco

Requisitos para a Presidência da República

Haverá turbulência na campanha eleitoral deste ano. A Lava Jato fragmentou reputações, acuando políticos que se apegam ao foro privilegiado e querem permanecer impunes. Há inúmeros interesses em jogo, enquanto os cidadãos buscam um supercandidato, ignorando as experiências com Jânio Quadros e Fernando Collor, que agravaram a crise político-econômica. Propostas demagógicas são inevitáveis, bem como guerra de informações para iludir o eleitorado.

Este se sensibiliza com as promessas de combate à corrupção, mas esse problema não é o único. Há outros que devemos reconhecer para analisar quem está capacitado para ser presidente.

A honestidade é condição indiscutível para assumir o cargo máximo da República, bem como qualquer outro posto. Devemos exigir também experiência como gestor para conduzir bem o Estado brasileiro.

Não basta prometer educação, saúde e segurança. Isso é muito vago para que possamos conferir se o candidato dará importância a questões como atualização do conteúdo programático, infraestrutura da rede de ensino, qualificação dos docentes, financiamento público das demandas do sistema educacional e princípios filosóficos para nortear a formação dos brasileirinhos, entre muitas facetas que envolvem cidadania, instrução, instituições culturais, lazer e circulação de informações.

O presidente precisa empenhar-se, quanto à saúde, em tudo que se refere à medicina preventiva, infraestrutura sanitária, emergências médicas, assistência ambulatorial, rede hospitalar, indústria farmacêutica, atendimento a categorias fragilizadas, formação de profissionais, programas de nutrição, saúde complementar e outras questões relativas ao bem-estar físico e mental da população.

Outra promessa nunca cumprida é em relação à segurança, mas isso vai além de assaltantes e arrastões na praia, porque envolve patrulhamento das fronteiras, proteção dos indivíduos em qualquer ambiente, socorro às vítimas de catástrofes e de criminosos, atualização contínua dos equipamentos, qualificação dos guardiões da sociedade, respeito aos direitos constitucionais, repressão equilibrada aos transgressores com sólido sistema prisional, presença constante das instituições do Estado e outros itens que assegurem a integridade física e mental de cada brasileiro.

Um presidente precisa ter acuidade também para a mobilidade espacial dos cidadãos, infraestrutura de transportes e comunicações, política agrária e ambiental, estabilidade da moeda, habitação popular, preservação da língua, circulação de bens e serviços, proteção do patrimônio público e privado, revitalização de bacias hidrográficas, formação de lideranças, energia, ciência, tecnologia, artes e artesanato e população indígena.

Nenhum ser humano consegue dominar tudo isso, mas um estadista precisa ter discernimento para formar uma equipe que cuide da máquina pública e altivez diante de sua base política a fim de que os cargos não sejam loteados com propósitos distantes do interesse nacional.

Caravanas de Chico, 32 anos atrasada

No verão de 1984, o governo do Rio --sob a liderança do governador Leonel Brizola e o planejamento urbano aos cuidados do arquiteto e urbanista e então secretário dos Transportes Jaime Lerner-- franqueou o túnel Rebouças, principal ligação entre as zonas norte e sul da cidade, aos ônibus. Até aquele momento só carros transitavam pelo Rebouças.

Uma pesquisa na internet no arquivo do "JB" documenta que inicialmente o encontro dos banhistas da zona norte com os frequentadores das belas praias da zona sul não foi muito harmonioso.

A "Coluna do Zózimo" de 27 de novembro de 1984 noticiava que se "criou uma palavra perfeita para definir a horda que invade as areias de Ipanema nos fins de semana ensolarados, despejados pelas amplas portas dos ônibus Padron, que fazem a ligação non-stop zona norte-zona sul. É a turma da galhofa. Galinha com farofa".

Não faltou sugestão para que a circulação no túnel fosse pedagiada ou que os ônibus somente circulassem nos dias úteis.

O sucesso do rock nacional "Nós Vamos Invadir sua Praia", da banda Ultraje a Rigor, lançado em 1985, ecoava esse encontro.

No fim de 2017, nosso maior artista popular em atividade, Chico Buarque, lançou o CD "Caravanas". Na belíssima faixa "As Caravanas", Chico descreve o desconforto dos ricos e brancos com os pobres e pretos nas praias da zona sul do Rio.

"Caravanas" está 32 anos atrasada.

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Por que o atraso? Há uma narrativa construída pela esquerda segundo a qual nossa crise econômica --perda de 9% de PIB per capita entre 2014 e 2016 (a segunda pior dos últimos 120 anos) e a maior taxa de desemprego da história-- é fruto da crise política. Esta, por sua vez, resulta de a parte mais rica da população não suportar o convívio nos mesmos espaços sociais com a parte mais pobre, resultado dos avanços sociais da era Lula. Uma das ideias emblemáticas desse discurso é que a elite branca não tolera conviver com pobres e pretos em aeroportos.

Segundo essa visão, todos os erros de política econômica do governo petista --do abortamento do ajuste fiscal em 2005, "pois gasto social é vida", e o ajuste era "rudimentar", à nova matriz econômica-- nada têm a ver com a crise.

A dificuldade com a ideia da sabotagem dos ricos à ascensão social dos pobres é que dela não se encontra nenhuma comprovação. No caso dos aeroportos no período petista, por exemplo, a mesma busca nos jornais, que encontrou inúmeras referências a desconforto com a invasão das praias em 1984, não consegue achar nada equivalente. O que se encontra, por outro lado, é muita gente de esquerda afirmando que a elite branca não aceita dividir os aeroportos com a nova classe C. Mas não há relatos concretos que comprovem essa percepção.

O que houve, na verdade, foi desconforto com a baixa qualidade da infraestrutura em geral, o que inclui aeroportos. Aliás, essa foi a motivação das manifestações de junho de 2013. Uma das frases que circularam com destaque na época foi que "em país rico as pessoas vão ao trabalho de transporte coletivo, e não de carro".

Mesmo no evento bem lamentável das praias cariocas em 1984, a pesquisa na imprensa do Rio à época mostra que os maiores problemas foram resolvidos quando o poder público se fez presente. O "JB" do dia 1º de janeiro de 1985 noticiou que os afogamentos e os roubos se reduziram com a melhora do policiamento e do serviço de salva-vidas.

No caso presente, nem foi preciso esperar a infraestrutura aeroportuária melhorar. As classes C e D foram expulsas dos aeroportos pela crise.

Diferentemente da sugestão de "Caravanas", não foi a raiva da elite branca que expulsou a população dos voos. A incompetência da gestão econômica petista fechou o túnel Rebouças da ascensão social.

Gente fora do mapa

O nosso samba, minha gente, é isso aí

Marcelo Crivella trancou o caixa da prefeitura à histórica subvenção de escolas de samba. O discurso foi de austeridade: em tempos de crise, as prioridades seriam outras. Colheu aplausos dos (loucos) que não gostam de carnaval e dos que, não sem razão, alegam que dinheiro público para cultura deveria ter destinação restrita, certamente vedada a produções — o desfile das escolas de samba entre elas — capazes de se financiar na iniciativa privada. E apanhou dos que defendem a indústria do carnaval e contabilizam os dividendos turísticos do evento para a cidade, dos que pensam que cabe ao Estado bancar a atividade cultural e dos que, com razão, identificaram, no fundamento da decisão do prefeito, uma imposição de natureza político-religiosa: o desprezo tirânico de lideranças evangélicas por manifestações derivadas de religiões de matriz africana.

Esse é o quadro do que se estabeleceu como debate público a respeito da relação econômica entre poder público e escolas de samba; mas é, sobretudo, um dos casos em que elemento presente nenhum na tela será mais importante do que aquele que falta e cuja ausência me espanta, o argumento essencial de por que nem sequer um centavo de dinheiro público deveria ser posto em escolas de samba: o fato de que, controladas por esquemas criminosos, monumentais tanques para lavagem de dinheiro imundo, entidades cujas contas não suportariam dez minutos de auditoria, é inaceitável que o Estado contribua com isso enquanto assim for. Ponto final. Esta é a chave arrumadora do debate — mas que, por covardia ou comodidade, está fora do debate: dinheiro público no carnaval das escolas de samba é dinheiro público na mão do jogo do bicho, das milícias e do tráfico de drogas e armas.

"Banana para o Brasil", representando políticos e empresários.
Carros alegórico da Beija Flor
A situação é de anomia e em muito extrapola o financiamento estrito dos desfiles. Por exemplo: a prefeitura construiu a Cidade do Samba, conjunto de galpões em que alegorias e fantasias são preparadas, e a entregou — como se propriedade privada — à Liga Independente das Escolas de Samba. Da mesma forma ocorre na organização estrutural do carnaval, monopólio da Liesa e território inacessível ao poder público, desde a comercialização de ingressos até a escolha de jurados e a apuração dos resultados. Duas perguntas — as mais urgentes tanto quanto nunca feitas: quando o Estado retomará os aparelhos públicos usados pelas agremiações para deflagrar o processo licitatório por meio do qual a gestão do espetáculo na Sapucaí passará à iniciativa privada? Quando o julgamento dos desfiles terá a óbvia independência decorrente de não ser dirigido pela elite da parte interessada?

Comandadas pelo complexo de atividades criminosas que fez o Rio de Janeiro refém e sustentadas pela sucessão de governantes que nos entregaram ao sequestrador, escolas de samba são peculiares instituições do Estado. Todas. Ou quase. E as que não são sonham ser. Nem sempre foi assim. Mas assim é há muito. São, acima de tudo, a perfeita representação da sociedade, tipicamente brasileira, entre Estado e crime organizado; centros de criação cultural e de vida comunitária (algumas poucas, cada vez menos) tanto quanto núcleos (quase todas) para exercício autoritário de poder; agremiações que (com modestas exceções) não sobreviveriam sem os braços trançados de bandidos e governantes; e que se acostumaram a exigir dinheiro do Estado tanto quanto se recusam a funcionar sob a lei do Estado, com o aval do Estado.

Aí está, descrita, a engenharia corrompida da farra. Um universo de podridão inescapável — isso se formos capazes de nos despir da paixão, no caso daqueles que, como eu, amam, cada vez mais à distância, uma escola de samba, o glorioso Império Serrano. Não posso, a propósito, deixar de registrar o constrangimento em ver jornalistas, que passam o ano todo se capitalizando com o discurso contra a desigualdade e em defesa da alforria, batendo cabeça para papai bicheiro quando se acerca o carnaval. A cobertura jornalística das escolas de samba há muito está, com respeitáveis exceções, contaminada por relações promíscuas.

Chego, pois, a meu ponto — desdobrado dessa cegueira voluntária. Se as escolas de samba, quase todas, não existiriam sem o casamento entre crime e Estado, tornam-se vergonhosos — farsantes mesmo — alguns dos desfiles apresentados em 2018, aqueles cujos enredos tiveram natureza crítica, carregados de protestos sociais e políticos, e exaltados como vigorosos acontecimentos no campo da liberdade. Depois de curiosa mais de década em que essa valentia seletiva se amorteceu (escolas de samba são de esquerda pelo mesmo mecanismo de adesão-pressão sob o qual artistas têm de ser?), houve agremiação — uma dessas com dono não exatamente democrata — apresentando-se contra a escravidão moderna, e até mesmo um vampirão houve, referência a Michel Temer, chefe de um governo a cujo Ministério da Cultura, porém, as escolas correram em busca de dinheiro.

Gosto, especialmente, do caso da grande Beija-Flor, propriedade de um dos barões do bicho, cujo crescimento bebeu gostoso na fonte — sede expressa não apenas em desfiles de exaltação aos generais — do regime militar, e que não faz muito desfilou em homenagem a uma ditadura africana, mas que, neste ano, resolveu, com um lindíssimo samba, protestar contra a intolerância, contra o opressor modelo político e social vigente no Brasil. Não foi uma autocrítica. Chora, cavaco.

Carlos Andreazza

A verdade do momento

O jornalista Fernando Gabeira publicou no jornal “O Globo” artigo sob o título “O momento da verdade”, no qual mostra que, ao não aceitar a condenação de Lula pela Justiça, o PT demonstra seu divórcio entre a imaginação política dos militantes e a verdade do sentimento da nação. Não houve, como esses dirigentes esperavam, um levante popular contra a Justiça. Porque não há uma causa em jogo. Trata-se apenas de manter ou não Lula na disputa presidencial, sem um rumo diferente para o Brasil.

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O que há de mais grave é que o PT não entendeu a gravidade do momento: não reconhece seus erros e não percebe que o mundo real aposentou a falsa verdade entranhada nas mentes de seus militantes. Depois de quase duas décadas, as falsas narrativas – da “ascensão da classe média pela Bolsa Família”, do “salto científico pelo Ciência sem Fronteiras”, da “revolução educacional pelas vagas na universidade” – transformaram-se em realidades alternativas, que não apenas criaram narrativas, mas fazem com que se acredite nelas.

A tragédia brasileira é não poder contar com o imenso potencial do PT e de Lula, porque eles perderam o sentimento da realidade, a noção da verdade, a credibilidade das propostas e o patrocínio de um novo rumo para o Brasil. E isso se deve ao fato de terem abandonado propostas de economia eficiente, sociedade justa, civilização sustentável, política ética. Perderam o vigor transformador que apresentavam, passando a acreditar na imagem de verdade que criaram para justificar o poder pelo poder, inclusive o de que Temer seria ótimo presidente se Dilma tivesse algum problema que a impedisse de continuar seu mandato.

O povo não foi à rua para atacar a Justiça porque não vê uma causa por trás do PT ou de Lula. Em 1964, foi preciso usar tanques e soldados para impedir o povo de ir à rua pela legalidade e pelas reformas em marcha lideradas por Goulart. Hoje, o impeachment foi feito dentro da legalidade: o substituto foi escolhido pelo PT, o partido ficou 13 anos no poder, sem deixar qualquer reforma em marcha, apesar da expansão de programas assistenciais ameaçados pela inflação e pela recessão.

O povo não foi para a rua porque não viu causa transformadora para defender e pela qual lutar, além de perceber no PT um partido condenado eticamente sob fortes evidências de corrupção na Petrobras, fundos de pensão, benefícios injustificados, remunerações superfaturadas, apartamento na praia e sítio de lazer.

A incapacidade para ver a realidade está impedindo o Brasil de beneficiar-se do que ainda sobrevive no PT, inclusive aqueles que não se corromperam pelo poder ou por dinheiro com falsas narrativas. O Brasil ganharia muito se eles fizessem uma autocrítica e pedissem desculpas ao país pelos erros cometidos. Seria a verdade do momento para ajudar o Brasil a enfrentar o arriscado futuro próximo, que está ameaçado pelos desastres cometidos. 

Enquanto agonizo

Ele se amontoa sobre o país. Hiperrealiza seus desejos, usa aliados como escória. Sem álibi, mandou o genro do compadre desqualificar a acusação, e deu errado. Segue trabalhando mal o luto. Um voo tão alto, uma queda tão grande. Revelou-se político de comodidade, tirou vantagem da desonestidade e alega princípios para abafar inconveniências. Chegou ao limite de querer aproveitar da própria decadência.

Um grupo e ele saem do Fórum seguindo na direção do passeio. Embora vários do cortejo sejam mais altos e estejam à frente dele, qualquer pessoa que os observe do outro lado da rua pode ver a cabeça dele ultrapassando por uma cabeça a dos seus apoiadores. Não é perspectiva, é subalternidade. Lembra livro de Willian Faulkner, Enquanto Agonizo, onde um pai brutal impõe a todos um enterro sem fim, não deixando a vida de ninguém fluir sem ter de pensar no seu egoísmo doentio.

A calçada, esturricada pelos pisões do povo e pedras soltas, segue reta como um fio de prumo até o pé do avião emprestado onde ele os deixará, indiferente aos terrenos resvalantes que o levaram a escorregar. Antes de embarcar, mirando o dilúvio, determina: meu reino por minha vitimização, façam ferver o coração, vai ser longa a condolência. Preparem o caixão e, se der certo, enterrem, com a toga preta do Supremo, o princípio da igualdade de todos perante a lei.

Alguns aliados não aduladores sentiram que havia alguma coisa ruim. Nem em silêncio era razoável aquela insensatez de celebrar como triunfo uma calamidade. Nem apropriado apiedar-se de um político mais que do povo. Uns diziam que era anomalia necrológio de homem vivo; outros, que não se chama crime de perseguição; todos julgavam sinistro candidato cuja glória é ser condenado por mentir.

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Ele estava se esvaziando rapidamente. Um tique nervoso, fruto de soberba banal, o levava a referir-se a si mesmo na terceira pessoa. “Não há qualquer rival de ‘o líder’ em todo o firmamento.” Era assim mesmo que se chamava, “o líder”, apelido privado que incorporou ao nome, marca da sua ambiguidade pública.

Como numa piada, arrumou advogado na ONU. Sentia-se um país. Não queria mais suar. Botaram na cabeça dele que se é vontade de Deus que as pessoas tenham opinião diferente sobre honestidade não cabe a ele discutir desígnios divinos. Suas proezas entardeceram e começaram a alimentar uma ordem política incapaz de produzir valores sociais. Vazio, deixou-se preencher pelo maior valor do mundo moderno, o ouro de tolo, que lambuza no presente a consequência do futuro.

Quando mais se encheu de medalhas, mas se esvaziou de ideias. “A abundância de diploma acaba com o diploma”, alguém alertou, e foi expulso da sala. E uma pessoa vazia na política não é mais um político. Enchendo-se de autoelogios e fúria, logo ele não sabe se é ou não é, ou que é que de fato é. Saiu do trilho, aumentou necessidades, até que as dádivas deram por conhecidos seus favores.

Enfraqueceu a autoridade por seu abuso e o hábito de confundir poder com relação e intimidade. No mundo das decisões apressadas, dissimulações, das interdições sobre as quais ninguém tem domínio, da liberdade irresponsável de ser o que você quiser ser, a transgressão percebeu a melhor das convergências. Com a autoridade participando, o erro ganha mais velocidade.

Seu talento para a evasão o tornou conhecido como aquele político “veloz estruturador de negócios e soluções”. Logo que recebeu a resposta da carta enviada aos brasileiros donos de banco, escrita em inglês, percebeu que pecado-salvação é mera questão de palavra. Harmonizou-se com a parceria de talentosos ocultadores de intenções para montar as ladainhas, a lenga-lenga a que deu o nome de política de governo.

Quando a Justiça abriu a porta dos seus transtornos desesperadores, ele já havia caído na mais sedutora armadilha da política atual, o dinheiro fácil, e não quis reconhecer o que fez. Saiu em desespero para pagar a promessa de 40 anos atrás. Mas sem dizer o que deveria ter dito ao juiz – o que o deteria na certeza de que alcançar seu objetivo primordial de ser respeitado, ser alguma coisa nova, é que compunha seu élan vital – pressupôs que a condição de vítima evitaria o caminho da desmoralização. Ele voltou a suar, como se estivesse espumando, feito um cavalo desembestado, convocou adoradores, dependentes, para a velha modalidade de ação heroica – camisa de partido, candidatura, comício, farisaísmo – na tentativa desesperada de incinerar a sentença e botar fogo na pavorosa jornada da Justiça de ousar apontar o dedo para quem sempre fez o que quis e nunca foi tão adequadamente contrariado.

Quando ouviu “estamos aqui e você tem de lidar conosco”, percebeu que escondera dos amigos o que os inimigos já sabiam. Falhou em grandeza, foi-se a profecia. Quem dera fosse capaz de suportar o sucesso com mais honestidade e a adversidade com mais autocontrole.

Um partido de esquerda moderno e com capacidade de diálogo deve parar de tratar de forma errada o erro. E reconhecer que um período de governo com um presidente deposto, três ex-presidentes da Câmara, senadores e inúmeros ministros de Estado presos ou processados, dirigentes partidários e governadores confinados ou envolvidos, a maior empresa do País dilapidada, a autoridade olímpica nacional presa, o bilionário do período encarcerado, a Copa investigada, fundos de pensão arruinados, o BNDES um clube de amigos, grandes empresários condenados, frugal intimidade com ditadores, etc., não foi um período virtuoso.

O que “o líder” quer é o refluxo da identidade perdida, fugir da responsabilidade confinado na condição de perseguido. Pelo alto, espalha simulacros de habeas corpus, certo de que a Justiça dos privilegiados prevalece e o ressuscita, como Lázaro. Por baixo, mantém agitada a agonia, seguro de que a manipulação do povo reabsorve a desordem que ele criou e a dissolve na sociedade até sumir sua autoria.

Imagem do Dia

Nada foi mudado

Você já ouviu falar de Pacopampa? Trata-se de uma localidade situada no Peru, na qual um grupo de pesquisadores encontrou restos de esqueletos com ferimentos terríveis, segundo consta frutos de rituais violentos realizados ao longo do século XIII a.C. Os arqueólogos sugerem que os tais rituais estavam relacionados à produção de água e alimentos.

De lá para cá, mais de 30 séculos se passaram. E como avançamos tecnologicamente, enquanto humanidade! Transformamos o planeta em uma verdadeira "aldeia global". Dominamos a arte de voar. Fomos à Lua. Já nos preparamos para ir a Marte.

Performance da escola mostra mortos pela violência.
Desfile da Beija Flor
Eis que, dia desses, li em um jornal lá da Índia uma chocante matéria sobre mulheres caçadas, vendadas, agredidas e em seguida mortas por conta de… bruxaria! Não estamos a falar de um país qualquer - trata-se da Índia, uma potência nuclear, associada aos BRICS. Aliás, li que em um único estado daquele país, Uttar Pradesh, em apenas quatro meses foram realizados 28 rituais religiosos envolvendo sacrifício humano - no mais das vezes de crianças.

Ali perto, na África, são frequentes as notícias sobre o sofrimento imposto aos albinos, cujos corpos, esquartejados, são considerados essenciais para a prática de certos rituais religiosos. Considera-se, inclusive, que seus ossos tem poderes mágicos.

Na China segue viva, apesar de perseguida pelas autoridades, a prática de sacrificar mulheres a fim de que, na condição de "noivas fantasmas", acompanhem ricos senhores que faleceram solteiros ao além. Falamos da China, outra potência nuclear e segunda maior economia do planeta!

No Reino Unido, nos idos de 2014, a ONU alertou para o fato de que centenas de crianças estavam sendo traficadas da África para lá, a fim de serem sacrificadas em rituais de vudu. A cidade mais afetada, pasme, seria exatamente Londres.

Note que não estamos a falar de casos isolados, praticados por alguns poucos psicopatas, mas sim de práticas recorrentes, resistentes à ação do tempo. A quem estiver escandalizado com este quadro, sugiro visitar, por exemplo, o corredor fétido de alguns hospitais públicos, lotado de doentes miseráveis espalhados pelo chão, esperando um atendimento que somente chegará tarde demais - afinal, há que se oferecer sacrifícios a alguma divindade, nem que seja a do dinheiro. Pois é: nada mudou!

Pedro Valls Feu Rosa

Bloco da saúde no STF

As recentes decisões do STF sobre ressarcimento ao SUS e obrigatoriedade de justificar negação de coberturas de planos privados não deixam dúvidas sobre a amplitude das garantias contratuais que envolvem a saúde. Empurrar pacientes graves para o SUS foi considerado “enriquecimento ilícito”.

Julgou-se que fornecer um documento com a negação de coberturas assegura “transparência” para o cumprimento da legislação. E validou-se a regra que proíbe reajuste por faixa etária para maiores de 60 anos, com base na Constituição, que “impõe a todos o dever de auxiliar os idosos”. Segundo o ministro Marco Aurélio Mello, esse conjunto de regras tem sentido inequívoco ao afirmar que “a promoção da saúde pelo particular não exclui o dever do Estado, mas deve ser realizada dentro das balizas do interesse coletivo”.

Demorou 20 anos. Os questionamentos sobre a inconstitucionalidade da lei foram apresentados por entidades de representação das empresas de planos em 1998. Mas, finalmente, os sinais são claros: as relações das empresas de planos de saúde com a sociedade não podem ser abusivas.

Enquanto havia pendências no STF, empresas de planos deitaram e rolaram. O ressarcimento ao SUS tornou-se primeiro um monstrengo administrativo e, depois, um artefato contábil, que transmutou dívidas em garantias financeiras dos devedores e objeto oficial de refinanciamento fiscal. Justificativas formais das empresas pelo não atendimento — um documento básico, necessário para fins de conferência do cumprimento dos contratos — estavam sendo avaliadas quase como um luxo, um acessório. Queriam punir quem vive mais. Os idosos teriam que arcar com a culpa, expressa em pecúnia, por demandar assistência para seguir envelhecendo.
Ao julgar que essas ações e intenções são improcedentes, o STF abriu alas para a saúde. O não cumprimento das normas legais abarrotou os tribunais com ações sobre barreiras de acesso a clientes de planos. Em São Paulo, no ano passado, foram julgadas mais de 30 mil ações relativas a queixas sobre planos de saúde. A maior parte das demandas judiciais referiu-se exatamente aos aspectos que mereceram atenção do STF: negativas de coberturas, reajustes de mensalidades e reclamações sobre o aumento de mensalidades para idosos.

As experiências acumuladas dos magistrados sobre exorbitâncias de empresas de planos podem ter influenciado a votação unânime do STF. Em 2013, também por unanimidade, uma câmara de direito aplicou multa preventiva a uma operadora com a intenção preventiva de inibir práticas lesivas à saúde. A litigância referiu-se à polêmica em torno da exigência do cumprimento de prazos de carência, para atendimento de um paciente infartado que declarou ser portador de hipertensão — em oposição à situação de emergência de um caso de falência cardíaca.

Mas nem assim as recusas de cobertura diminuíram. Casos de pacientes que não tiveram acesso à assistência médico-hospitalar em razão da supremacia das razões financeiras — e em detrimento da responsabilidade pela preservação da vida — continuaram batendo nas portas da Justiça. Quando o STF deixa claro que as estratégias de lucro adicional são ilegais, espera-se que empresas e instâncias governamentais não façam corpo mole e muito menos inventem novos truques para driblar as normas.
A Câmara de Deputados e a ANS (dirigida por pessoas indicadas pelo Senado) deverão se ajustar às determinações do Poder Judiciário. Será contraditório com a decisão do STF querer aprovar no Legislativo um plano com coberturas muito restritas — como previsto no projeto de autoria de empresas de planos, relatado pelo deputado Rogério Marinho (PSDB-RN).

Também não terá cabimento seguir tratando o ressarcimento ao SUS como uma dívida, sempre deduzida e virtual, como faz a ANS. O STF mandou “água para ioiô”. Agora, a ausência de estabilidade jurídica não pode ser pretexto para o descumprimento da legislação sobre planos de saúde. Também mandou “água para iaiá”, em 2017, ao proteger o SUS dos cortes de recursos federais e ao caracterizar a necessidade de financiamento mínimo do direito à saúde e o caráter progressivo do custeio das ações e serviços públicos.

O STF não é Alá. Entretanto, estabeleceu coordenadas que permitem atravessar o “deserto” de descompromisso social. São boas perspectivas, para “queimar” a cara e chegar a um Brasil que efetive o direito à saúde.

O Brasil é réu confesso

Num certo dia tenebroso do ano da graça de 2005, Luiz Inácio da Silva olhou-se no espelho e viu refletida a expressão universal para o momento em que a vaca toma o rumo do brejo: “Ferrou” – com uma palavrinha um pouco diferente, claro, também com F. O Brasil tinha descoberto o escândalo do mensalão, um duto nunca visto de dinheiro do contribuinte para o partido do presidente, com a formação de um caixa milionário para a compra de deputados, partidos e outros agentes públicos. Fim da linha – era só uma questão de tentar sobreviver ao cataclisma.

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Que nada. O espelho mentiu para Lula. Não era o fim coisa nenhuma, era só o começo. O filho do Brasil tinha subestimado a catatonia de papai. Ele ainda chegou a ir a público pedir desculpas – se arrependimento matasse... –, mal sabendo que o país não só passaria a mão na cabeça do seu vigarista predileto, como o reelegeria um ano depois.

Claro que o felizardo voltou para diante do espelho cheio de moral (sic), querendo saber então qual era o limite daquele maravilhoso cheque em branco: espelho, espelho meu, se eu meti a mão no mensalão e me disseram para ir em frente, o céu é o limite? O espelho rosnou uma resposta mal-humorada: para de falar em limite, otário, vai ser feliz.

E aí Lula não teve medo de ser feliz, como mandava o jingle da sua primeira campanha presidencial. Chega a ser comovente cruzar as datas do mensalão e do petrolão e constatar que, em meio ao dramático e desnecessário pedido de desculpas em 2005, o grande chefe estava em plenas tratativas para a execução da negociata da Refinaria de Pasadena. Desinibição é tudo.

Inibido você não rouba nem um pirulito de uma criança. Muito menos a maior empresa pública do país, que você passou a vida jurando defender porque é do povo, e menos ainda depois de já ter sido flagrado roubando o maior banco público do país, que você também passou a vida jurando defender porque é do povo. Mas, se o povo disse “Vai fundo, companheiro”, aí já não é mais problema seu. E você não vai ficar por aí remoendo culpa, com esse jardim das delícias entregue generosamente ao seu desfrute.

Então não perca a conta. Se depois dessa epopeia mágica de mais de década Lula é heptarréu, o Brasil é no mínimo tetra. O primeiro processo criminal contra esse país conivente e fanfarrão se refere ao mensalão, lavado e enxaguado nas urnas com a reeleição triunfal do chefe do escândalo. O segundo crime foi cometido na eleição seguinte, quando o bandido bom ofereceu ao país uma sucessora, por assim dizer, inacreditável – com flagrantes dificuldades cognitivas, para dizer o mínimo.

Mas, se o mínimo parecer pouco, acrescente-se: em plena campanha presidencial, a tal candidata inacreditável teve sua principal aliada e futura ministra flagrada transformando a chefia da Casa Civil num bazar de tráfico de influência. Tudo isso esfregado com detalhes sórdidos na cara do Brasil, que foi lá e avalizou a nova trampolinagem de Lula.

Aí esse Brasil ficha suja não teve medo de ser desgraçado e cometeu mais um crime – esse, sem dúvida, hediondo: com quase um ano de operação Lava Jato expondo as tripas do maior assalto governamental da história, regido por Lula e por sua inacreditável sucessora, o país foi lá e renovou a licença para roubar, reelegendo a quadrilha para seu quarto mandato. Contando ninguém acredita.

Alguém pode ponderar que, afinal, foi um resultado dividido... Ponderação recusada. Um país que queira ser chamado de país, com o nível de informação que já tinha sobre a longa e profunda rapinagem, tinha de ter escorraçado a gangue sem margem de erro. Pois espere que vem aí o quarto crime.

Depois do impeachment da inacreditável governanta, o Brasil deu corda a uma conspiração montada por um procurador-geral picareta e um açougueiro biônico do PT, com a cumplicidade dos supremos companheiros. O golpe de Estado só não vingou porque era muito vagabundo, mas evitou a morte da lenda (coitada) – embaralhando a percepção da opinião pública (pobrezinha) sobre os 13 anos de estupro.

Foi assim que Lula pôde chegar para acompanhar seu julgamento de jatinho e fazendo coraçãozinho com as mãos – essas que já estariam há muito algemadas se não fossem os crimes em série do Brasil, réu confesso.
Guilherme Fiuza

Paisagem brasileira

Sao Luis do Maranhão, Brazil
São Luís (MA)

O espírito do tempo

O melhor caminho para descobrir onde estamos e para onde vamos é dedicar um tempinho a analisar o espírito do tempo: situações que levam as pessoas a avaliar sua condição, movimentos que enchem as ruas, frustrações geradas por expectativas que não ocorrem, circunstâncias que determinam a maneira de agir das pessoas, enfim, o motor que gira a roda da vida.

Zeitgeist é a palavra alemã que define esse conceito, onde se abriga todo o conhecimento humano acumulado ao longo dos tempos e que, de repente, se faz presente em determinado momento da história. Ou, em outras palavras, o espírito do tempo é o estado social, intelectual e cultural de uma época.

Edgar Morin, o grande pensador francês, nos ajuda a interpretar o espírito do tempo em Cultura de Massas no Século XX: o Espírito do Tempo e em outros ensaios. Abrir uns minutinhos nesses dias de carnaval para refletir sobre o espírito do tempo pode ser eficaz exercício para compreendermos a realidade que nos cerca.

Lobo em pele de cordeiro e suas mala de dinheiro.
Desfile da Beija Flor
Comecemos com a questão: o Brasil tem jeito? Somos um território de dimensão continental, recheado de riquezas e recursos minerais, paisagens exuberantes, terras férteis que nos elegem como “celeiro do mundo”, a maior reserva de água doce do planeta (12%), só para citar superlativos que alimentam o civismo. Enfrentamos catástrofes, na esteira de janeiros chuvosos, mas não sofremos a destruição de terremotos, tempestades e tufões, que devastam Nações-líderes, como os EUA.

Vamos aos contrapontos: abrigamos um dos maiores índices de corrupção do mundo, temos uma das maiores cargas tributárias do universo, a miséria assola 50 milhões de brasileiros. Somos um país rico que não descobriu a rota do progresso. Puxemos a onda da corrupção, alvo de escândalos. Pode ser diminuída? Sim. A conclusão: se cortássemos o Produto Nacional Bruto da Corrupção em 10%, nosso PIB (das riquezas) jogaria o Brasil na esfera das grandes nações.

Há esperança de que isso possa ocorrer? Certamente. Basta pinçar a missão do Judiciário. Que resgata seu papel de protagonista central. Há críticas sobre seu desempenho? Procedem. Destacam-se as que mostram os membros das Cortes Judiciais liderando os vãos dos privilégios. Há, ainda, a observação sobre a judicialização da política, a intervenção dos juízes no ambiente político, o que ocorre com a absorção de tarefas da competência do Legislativo e do Executivo pelo Judiciário.

Se os quadros desses dois Poderes estivessem sob os aplausos sociais, não haveria tanta interferência. A crise de credibilidade que afeta a representação política e governamental desequilibra a Tríade do Poder, obra do barão de Montesquieu. Infelizmente, o espírito do nosso tempo tem deixado a política em maus lençóis. Essa fresta abre horizontes sombrios. Mas o futuro do país não será melhor sob a exclusão da política.

Gaudêncio Torquato

A sequestrada

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Tudo se discute neste mundo, menos uma única coisa: a democracia. Ela está aí, como se fosse uma espécie de santa no altar, de quem já não se espera milagres, mas que está aí como referência. E não se repara que a democracia em que vivemos é uma democracia sequestrada, condicionada, amputada
José Saramago

Palhaço que se preza paga a conta

Com Carnaval não se brinca. É coisa séria. Um país inteiro que se organiza para uma festa que vara dia e noite. Comunidades se unem, coordenam e se apresentam em desfile milimetricamente planejado, no tempo certo, sem atraso ou adianto. Não é brincadeira mesmo.

O trânsito melhora. As ruas ficam mais seguras. As pessoas se divertem. Em casa ou fora, tudo parece funcionar razoavelmente. Com exceção da (frequente, aparentemente inevitável, mas certamente tolerada) urinação (ou pior) pública, o país mostra a sua melhor. E ainda ri.

Carnaval não é problema. É oportunidade. Mostra que produzir, organizar e fazer são atividades surpreendentemente possíveis no país tropical. Para espanto de todos e contra todas as expectativas e, talvez até ao arrepio da lógica, tudo (ou quase) funciona. São 5 dias em que a gente vê o que poderia ser. Seguidos de outros 360 arrastando a vergonha de já ter sido.


É depois da 4ª feira que as coisas complicam. Aí sim parece brincadeira. Ou talvez seja brincadeira mesmo. Falta seriedade. E a gente, ironicamente, carnavaliza resto do ano como se para ganhar pontos em desfile de fantasias malfeitas. E este ano a carnavalização da nação promete.

A comissão de frente já anuncia o enredo. Nada de alegria, ironia ou inteligência. Drama policial é o enredo do ano. Nada de original ou surpreendente. E segue o desfile trágico completo com a presença de investigados de todo gênero, presos, condenados atuais e futuros e celebridades de calibre e gosto discutíveis, todos, claro, andando de costas em marcha batida em direção ao passado.

O desfile segue com evolução, harmonia e conjunto bem sincronizados. O que não quer dizer belo, ou mesmo bom. A cleptocracia de prestidigitadores ilude os espectadores, em espetáculo medíocre, de pouca inteligência e nenhuma vergonha. Como convém a vigarista que se preze. Coreografia velha, sem novidades, previsível ao ponto de atrair o mofo.

Tudo isso ao som de samba-enredo de melodia repetitiva onde entonam desculpas repetitivas, empacotadas em vícios de linguagem e erros de concordância. Para desespero do distinto público.

No quesito alegorias e adereços, a novidade é a ala dos palhaços. Assistindo incrédulos ao espetáculo inaceitável, palhaços, a tudo assistem. Sem direito sequer a distribuição gratuita de colarinhos largos ou narizes vermelhos. Palhaço que se preza paga a conta.

Elton Simões

Ministério da Segurança Pública de Temer é apenas mais um tipo de 'fake news'

Está na moda falar contra as “fake news” (notícias falsas) que inundam a internet. Infelizmente, não há como evitá-las. Muitas vezes são plantadas por pessoas que têm interesse e pretendem se beneficiar, de uma forma ou outra. Mas há também as notícias falsas criadas por desocupados, que não têm mais o que fazer e se divertem inventando notas, situações e até artigos, cujas autorias são atribuídas a personagens famosos, como Millôr Fernandes, Luís Fernando Veríssimo, Arnaldo Jabor etc.

O mais repelente tipo de “fake news” é aquele que sai de fontes oficiais, como o Palácio do Planalto, cujos assessores têm um empenho enorme em plantar notícias falsas para beneficiar o governo e destruir seus adversários. Sempre que o Planalto quer fritar um ministro, o primeiro passo é plantar uma série de informações depreciativas contra ele, como aconteceu com Marcelo Calero, que era ministro da Cultura e se viu obrigado a gravar Michel Temper e Geddel Vieira Lima, para se precaver. 
 

PF, PRF, Depen e Senasp ficarão subordinados à nova pasta. Um dos objetivos do ministério será desenvolver ações de combate à criminalidade.

 A mais nova “fake news” oriunda do Planalto é a criação do Ministério da Segurança Pública. O presidente Temer está cansado de saber que será mais uma pasta inútil. Vai criá-la, porque considera que será uma boa jogada de marketing eleitoral, em busca da reeleição.

Atualmente, existe o Ministério da Justiça e da Segurança Pública, que é uma espécie de Saci Pererê, porque cuida da parte da Justiça e não se mete em assuntos de Segurança Pública, que são tratados pelo Ministério da Defesa.

A suposta criação do Ministério da Segurança Pública, portanto, será apenas virtual. Não irá cuidar de nada, o futuro ministro (ou ministra, a gente nunca sabe) ficará ocioso em Brasília, fazendo palavras cruzadas ou sudoku.

Pela proposta, Polícia Federal (PF), Polícia Rodoviária Federal (PRF), Departamento Penitenciário Nacional (Depen) e Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) saem da alçada do Ministério da Justiça e ficarão subordinados ao novo ministério. A pasta contará com a estrutura já existente no Ministério da Justiça. Aí serão dois ministros a fazer passatempos, podiam até se reunir para jogar buraco. E la nave va, cada vez mais fellinianamente.