quarta-feira, 16 de março de 2022
Os frutos da guerra
O horror tornou-se quotidiano,
a destruição transformou-se em hábito,
o mundo foi ficando kafkiano,
o morrer, agora, volveu-se súbito,
as lindas crianças servem de alvo,
e os olhos das mães gritam de espanto!
Se nada do que temos está a salvo,
fina-se a fala e também o canto.
A morte agora veste-se de aço
e vomita incêndios majestosos:
volatiliza com desembaraço
o museu, o palácio esplendoroso,
o hospital, o armazém, a praça
e tudo quanto o horror devassa!
Eugénio Lisboa
a destruição transformou-se em hábito,
o mundo foi ficando kafkiano,
o morrer, agora, volveu-se súbito,
as lindas crianças servem de alvo,
e os olhos das mães gritam de espanto!
Se nada do que temos está a salvo,
fina-se a fala e também o canto.
A morte agora veste-se de aço
e vomita incêndios majestosos:
volatiliza com desembaraço
o museu, o palácio esplendoroso,
o hospital, o armazém, a praça
e tudo quanto o horror devassa!
Eugénio Lisboa
Era um dia frio
Era um dia frio e ensolarado de abril, e os relógios batiam treze horas. Winston Smith, o queixo fincado no peito numa tentativa de fugir ao vento impiedoso, esgueirou-se rápido pelas portas de vidro da Mansão Vitória; não porém com rapidez suficiente para evitar que o acompanhasse uma onda de pó áspero.
O saguão cheirava a repolho cozido e a capacho de trapos. Na parede do fundo fora pregado um cartaz colorido, grande demais para exibição interna. Representava apenas uma cara enorme, de mais de um metro de largura: o rosto de um homem de uns quarenta e cinco anos, com espesso bigode preto e traços rústicos, mas atraentes. Winston encaminhou-se para a escada. Inútil experimentar o elevador. Raramente funcionava, mesmo no tempo das vacas gordas, e agora a eletricidade era desligada durante o dia. Fazia parte da campanha de economia, preparatória da Semana do Ódio. O apartamento ficava no sétimo andar e Winston, que tinha trinta e nove anos e uma variz ulcerada acima do tornozelo direito, subiu devagar, descansando várias vezes no caminho. Em cada patamar, diante da porta do elevador, o cartaz da cara enorme o fitava da parede. Era uma dessas figuras cujos olhos seguem a gente por toda parte. O GRANDE IRMÃO ZELA POR TI, dizia a legenda.
Dentro do apartamento uma voz sonora lia uma lista de cifras relacionadas com a produção de ferro gusa. A voz saía de uma placa metálica retangular semelhante a um espelho fosco, embutido na parede direita. Winston torceu um comutador e a voz diminuiu um pouco, embora as palavras ainda fossem audíveis. O aparelho (chamava-se teletela) podia ter o volume reduzido, mas era impossível desligá-lo de vez. Winston foi até a janela: uma figura miúda, frágil, a magreza do corpo apenas realçada pelo macacão azul que era o uniforme do Partido. O cabelo era muito louro, a face naturalmente sanguínea, e a pele arranhada pelo sabão ordinário, as giletes sem corte e o inverno que mal terminara.
Lá fora, mesmo através da vidraça fechada, o mundo parecia frio. Na rua, pequenos redemoinhos de vento levantavam em pequenas espirais poeira e papéis rasgados, e embora o sol brilhasse e o céu fosse dum azul berrante, parecia não haver cor em coisa alguma, salvo nos cartazes pregados em toda parte. O bigodudo olhava de cada canto. Havia um cartaz na casa defronte, O GRANDE IRMÃO ZELA POR TI, dizia o letreiro, e os olhos escuros procuravam os de Winston. Ao nível da rua outro cartaz, rasgado num canto, estalava ao vento, ora cobrindo ora descobrindo a palavra INGSOC. Na distância um helicóptero desceu beirando os telhados, pairou uns momentos como uma varejeira e depois se afastou num vôo em curva. Era a Patrulha da Polícia, espiando pelas janelas do povo. Mas as patrulhas não tinham importância. Só importava a Polícia do Pensamento.
Por trás de Winston a voz da teletela ainda tagarelava a respeito do ferro gusa e da superação do Nono Plano Trienal. A teletela recebia e transmitia simultaneamente. Qualquer barulho que Winston fizesse, mais alto que um cochicho, seria captado pelo aparelho; além do mais, enquanto permanecesse no campo de visão da placa metálica, poderia ser visto também. Naturalmente, não havia jeito de determinar se, num dado momento, o cidadão estava sendo vigiado ou não. Impossível saber com que freqüência, ou que periodicidade, a Polícia do Pensamento ligava para a casa deste ou daquele indivíduo. Era concebível, mesmo, que observasse todo mundo ao mesmo tempo. A realidade é que podia ligar determinada linha, no momento que desejasse. Tinha-se que viver - e vivia-se por hábito transformado em instinto na suposição de que cada som era ouvido e cada movimento examinado, salvo quando feito no escuro.
Winston continuou de costas para a teletela. Era mais seguro, conquanto até as costas pudessem falar. A um quilômetro dali o Ministério da Verdade, onde trabalhava, alteava-se, alvo e enorme, sobre a paisagem fuliginosa. Era isto, pensou ele com uma vaga repugnância - isso era Londres, cidade principal da Pista Nº 1, por sua vez a terceira entre as mais populosas províncias da Oceania. Tentou encontrar na memória uma recordação infantil que lhe dissesse se Londres sempre tivera aquele aspecto. Haviam existido sempre aquelas apodrecidas casas do século dezenove, os flancos reforçados com espeques de madeira, janelas com remendos de cartolina e os telhados com chapa de ferro corrugado, e os muros doidos dos jardins, descaindo em todas as direções? E as crateras de bombas onde o pó de reboco revoluteava no ar e o mato crescia ao acaso sobre os montes de escombros; e os lugares onde as bombas haviam aberto clareiras maiores e tinham nascido sórdidas colônias de choças de madeira que mais pareciam galinheiros? Mas era inútil, não conseguia se lembrar: nada sobrava de sua infância, exceto uma série de quadros fortemente iluminados, que se sucediam sem pano de fundo e eram quase ininteligíveis.
O Ministério da Verdade - ou Miniver, em Novilíngua - era completamente diferente de qualquer outro objeto visível. Era uma enorme pirâmide de alvíssimo cimento branco, erguendo-se, terraço sobre terraço, trezentos metros sobre o solo. De onde estava, Winston conseguia ler, em letras elegantes colocadas na fachada, os três lemas do Partido: GUERRA É PAZ. LIBERDADE É ESCRAVIDÃO. IGNORÂNCIA É FORÇA. Constava que o Ministério da Verdade continha três mil aposentos sobre o nível do solo, e correspondentes ramificações no sub-solo. Espalhados por Londres havia outros três edifícios de aspecto e tamanho semelhantes. Dominavam de tal maneira a arquitetura circunjacente que do telhado da Mansão Vitória era possível avistar os quatro ao mesmo tempo. Eram as sedes dos quatro Ministérios que entre si dividiam todas as funções do governo: o Ministério da Verdade, que se ocupava das notícias, diversões, instrução e belas artes; o Ministério da Paz, que se ocupava da guerra; o Ministério do Amor, que mantinha a lei e a ordem; e o Ministério da Fartura, que acudia às atividades econômicas. Seus nomes, em Novilíngua: Miniver, Minipaz, Miniamo e Minifarto.
George Orwell, "1984"
O saguão cheirava a repolho cozido e a capacho de trapos. Na parede do fundo fora pregado um cartaz colorido, grande demais para exibição interna. Representava apenas uma cara enorme, de mais de um metro de largura: o rosto de um homem de uns quarenta e cinco anos, com espesso bigode preto e traços rústicos, mas atraentes. Winston encaminhou-se para a escada. Inútil experimentar o elevador. Raramente funcionava, mesmo no tempo das vacas gordas, e agora a eletricidade era desligada durante o dia. Fazia parte da campanha de economia, preparatória da Semana do Ódio. O apartamento ficava no sétimo andar e Winston, que tinha trinta e nove anos e uma variz ulcerada acima do tornozelo direito, subiu devagar, descansando várias vezes no caminho. Em cada patamar, diante da porta do elevador, o cartaz da cara enorme o fitava da parede. Era uma dessas figuras cujos olhos seguem a gente por toda parte. O GRANDE IRMÃO ZELA POR TI, dizia a legenda.
Dentro do apartamento uma voz sonora lia uma lista de cifras relacionadas com a produção de ferro gusa. A voz saía de uma placa metálica retangular semelhante a um espelho fosco, embutido na parede direita. Winston torceu um comutador e a voz diminuiu um pouco, embora as palavras ainda fossem audíveis. O aparelho (chamava-se teletela) podia ter o volume reduzido, mas era impossível desligá-lo de vez. Winston foi até a janela: uma figura miúda, frágil, a magreza do corpo apenas realçada pelo macacão azul que era o uniforme do Partido. O cabelo era muito louro, a face naturalmente sanguínea, e a pele arranhada pelo sabão ordinário, as giletes sem corte e o inverno que mal terminara.
Lá fora, mesmo através da vidraça fechada, o mundo parecia frio. Na rua, pequenos redemoinhos de vento levantavam em pequenas espirais poeira e papéis rasgados, e embora o sol brilhasse e o céu fosse dum azul berrante, parecia não haver cor em coisa alguma, salvo nos cartazes pregados em toda parte. O bigodudo olhava de cada canto. Havia um cartaz na casa defronte, O GRANDE IRMÃO ZELA POR TI, dizia o letreiro, e os olhos escuros procuravam os de Winston. Ao nível da rua outro cartaz, rasgado num canto, estalava ao vento, ora cobrindo ora descobrindo a palavra INGSOC. Na distância um helicóptero desceu beirando os telhados, pairou uns momentos como uma varejeira e depois se afastou num vôo em curva. Era a Patrulha da Polícia, espiando pelas janelas do povo. Mas as patrulhas não tinham importância. Só importava a Polícia do Pensamento.
Por trás de Winston a voz da teletela ainda tagarelava a respeito do ferro gusa e da superação do Nono Plano Trienal. A teletela recebia e transmitia simultaneamente. Qualquer barulho que Winston fizesse, mais alto que um cochicho, seria captado pelo aparelho; além do mais, enquanto permanecesse no campo de visão da placa metálica, poderia ser visto também. Naturalmente, não havia jeito de determinar se, num dado momento, o cidadão estava sendo vigiado ou não. Impossível saber com que freqüência, ou que periodicidade, a Polícia do Pensamento ligava para a casa deste ou daquele indivíduo. Era concebível, mesmo, que observasse todo mundo ao mesmo tempo. A realidade é que podia ligar determinada linha, no momento que desejasse. Tinha-se que viver - e vivia-se por hábito transformado em instinto na suposição de que cada som era ouvido e cada movimento examinado, salvo quando feito no escuro.
Winston continuou de costas para a teletela. Era mais seguro, conquanto até as costas pudessem falar. A um quilômetro dali o Ministério da Verdade, onde trabalhava, alteava-se, alvo e enorme, sobre a paisagem fuliginosa. Era isto, pensou ele com uma vaga repugnância - isso era Londres, cidade principal da Pista Nº 1, por sua vez a terceira entre as mais populosas províncias da Oceania. Tentou encontrar na memória uma recordação infantil que lhe dissesse se Londres sempre tivera aquele aspecto. Haviam existido sempre aquelas apodrecidas casas do século dezenove, os flancos reforçados com espeques de madeira, janelas com remendos de cartolina e os telhados com chapa de ferro corrugado, e os muros doidos dos jardins, descaindo em todas as direções? E as crateras de bombas onde o pó de reboco revoluteava no ar e o mato crescia ao acaso sobre os montes de escombros; e os lugares onde as bombas haviam aberto clareiras maiores e tinham nascido sórdidas colônias de choças de madeira que mais pareciam galinheiros? Mas era inútil, não conseguia se lembrar: nada sobrava de sua infância, exceto uma série de quadros fortemente iluminados, que se sucediam sem pano de fundo e eram quase ininteligíveis.
O Ministério da Verdade - ou Miniver, em Novilíngua - era completamente diferente de qualquer outro objeto visível. Era uma enorme pirâmide de alvíssimo cimento branco, erguendo-se, terraço sobre terraço, trezentos metros sobre o solo. De onde estava, Winston conseguia ler, em letras elegantes colocadas na fachada, os três lemas do Partido: GUERRA É PAZ. LIBERDADE É ESCRAVIDÃO. IGNORÂNCIA É FORÇA. Constava que o Ministério da Verdade continha três mil aposentos sobre o nível do solo, e correspondentes ramificações no sub-solo. Espalhados por Londres havia outros três edifícios de aspecto e tamanho semelhantes. Dominavam de tal maneira a arquitetura circunjacente que do telhado da Mansão Vitória era possível avistar os quatro ao mesmo tempo. Eram as sedes dos quatro Ministérios que entre si dividiam todas as funções do governo: o Ministério da Verdade, que se ocupava das notícias, diversões, instrução e belas artes; o Ministério da Paz, que se ocupava da guerra; o Ministério do Amor, que mantinha a lei e a ordem; e o Ministério da Fartura, que acudia às atividades econômicas. Seus nomes, em Novilíngua: Miniver, Minipaz, Miniamo e Minifarto.
George Orwell, "1984"
Heróis
Você acorda, Petrópolis foi destruída pela chuva. Mais de duzentos mortos, um monte de gente sem ter para onde ir. Você dorme e, no dia seguinte, a Rússia invadiu a Ucrânia. Você começa a ter medo de dormir, mesmo não estando em área de risco, mesmo não estando em zona de guerra. Você está no mundo, e o mundo é um desacerto com belas paisagens e poucos encontros.
Na televisão, as imagens dão a dimensão da catástrofe, enquanto mostram aqueles que, dilacerados, transformam-se em heróis. No Morro da Oficina, um pedreiro, ó, meu Deus, qual é o seu nome? Jefferson? Não sei. Meu esquecimento já mostra como esse heroísmo é efêmero. Mas vamos adiante. Jefferson perdeu mulher e filhos e cavucava o chão atrás da família. Naquele momento, os bombeiros não o ajudavam, e ele usava o que tinha: mãos, unhas, pá e picareta. Seu sonho era dar um enterro digno a cada um dos seus. Jefferson é um herói com todo caráter.
Na Europa, uma brasileira, Clara (dela guardei muito bem o nome), saiu da Alemanha e, dirigindo por mais de dez horas, foi até a fronteira da Polônia com a Ucrânia. Seu objetivo era simplesmente colocar brasileiros em seu carro e levá-los a uma cidade estruturada e capaz de abrigá-los. Depois eu soube que ela não era a única, vários brasileiros, saindo de outros pontos da Europa, faziam o mesmo. Essa carona acabou servindo não apenas a nossos compatriotas e enfrentou problemas adicionais, uma vez que eram impostos bloqueios nas estradas, tornando necessário tomar caminhos alternativos, cruzar outros países. Clara e os demais voluntários também são heróis plenos de caráter.
Jefferson e Clara serão esquecidos.
Einstein teria dito que não sabia como seria a terceira guerra, mas, na quarta, as armas seriam tacapes e braços, uma tremenda briga de rua. Sem rua. Se o conflito entre Rússia e Ucrânia não se difundir e o mundo não se acabar, ao fim da guerra, como sempre acontece, os heróis da morte serão eternizados em estátuas, nomes de rua, de praças etc.
Já em Petrópolis, nenhum monumento exaltando os heróis ou homenageando as vítimas será levantado. Os que sofreram perdas estarão marcados para o resto da vida, e os que podem mudar a situação permanente de risco, depois de discursos e promessas, voltarão a não gastar a verba nas obras de prevenção, se é que não a excluirão do orçamento. Até que nova chuva caia e eles chorem, em alguns casos até arregacem as mangas e se misturem aos despossuídos como se fossem um deles. Não são. Nunca foram. Eles acham que a culpa da tragédia é de quem construiu a casa lá na ribanceira.
Alexandre Brandão
Na televisão, as imagens dão a dimensão da catástrofe, enquanto mostram aqueles que, dilacerados, transformam-se em heróis. No Morro da Oficina, um pedreiro, ó, meu Deus, qual é o seu nome? Jefferson? Não sei. Meu esquecimento já mostra como esse heroísmo é efêmero. Mas vamos adiante. Jefferson perdeu mulher e filhos e cavucava o chão atrás da família. Naquele momento, os bombeiros não o ajudavam, e ele usava o que tinha: mãos, unhas, pá e picareta. Seu sonho era dar um enterro digno a cada um dos seus. Jefferson é um herói com todo caráter.
Na Europa, uma brasileira, Clara (dela guardei muito bem o nome), saiu da Alemanha e, dirigindo por mais de dez horas, foi até a fronteira da Polônia com a Ucrânia. Seu objetivo era simplesmente colocar brasileiros em seu carro e levá-los a uma cidade estruturada e capaz de abrigá-los. Depois eu soube que ela não era a única, vários brasileiros, saindo de outros pontos da Europa, faziam o mesmo. Essa carona acabou servindo não apenas a nossos compatriotas e enfrentou problemas adicionais, uma vez que eram impostos bloqueios nas estradas, tornando necessário tomar caminhos alternativos, cruzar outros países. Clara e os demais voluntários também são heróis plenos de caráter.
Jefferson e Clara serão esquecidos.
Einstein teria dito que não sabia como seria a terceira guerra, mas, na quarta, as armas seriam tacapes e braços, uma tremenda briga de rua. Sem rua. Se o conflito entre Rússia e Ucrânia não se difundir e o mundo não se acabar, ao fim da guerra, como sempre acontece, os heróis da morte serão eternizados em estátuas, nomes de rua, de praças etc.
Já em Petrópolis, nenhum monumento exaltando os heróis ou homenageando as vítimas será levantado. Os que sofreram perdas estarão marcados para o resto da vida, e os que podem mudar a situação permanente de risco, depois de discursos e promessas, voltarão a não gastar a verba nas obras de prevenção, se é que não a excluirão do orçamento. Até que nova chuva caia e eles chorem, em alguns casos até arregacem as mangas e se misturem aos despossuídos como se fossem um deles. Não são. Nunca foram. Eles acham que a culpa da tragédia é de quem construiu a casa lá na ribanceira.
Alexandre Brandão
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