quarta-feira, 16 de março de 2022

Heróis

Você acorda, Petrópolis foi destruída pela chuva. Mais de duzentos mortos, um monte de gente sem ter para onde ir. Você dorme e, no dia seguinte, a Rússia invadiu a Ucrânia. Você começa a ter medo de dormir, mesmo não estando em área de risco, mesmo não estando em zona de guerra. Você está no mundo, e o mundo é um desacerto com belas paisagens e poucos encontros.

Na televisão, as imagens dão a dimensão da catástrofe, enquanto mostram aqueles que, dilacerados, transformam-se em heróis. No Morro da Oficina, um pedreiro, ó, meu Deus, qual é o seu nome? Jefferson? Não sei. Meu esquecimento já mostra como esse heroísmo é efêmero. Mas vamos adiante. Jefferson perdeu mulher e filhos e cavucava o chão atrás da família. Naquele momento, os bombeiros não o ajudavam, e ele usava o que tinha: mãos, unhas, pá e picareta. Seu sonho era dar um enterro digno a cada um dos seus. Jefferson é um herói com todo caráter.


Na Europa, uma brasileira, Clara (dela guardei muito bem o nome), saiu da Alemanha e, dirigindo por mais de dez horas, foi até a fronteira da Polônia com a Ucrânia. Seu objetivo era simplesmente colocar brasileiros em seu carro e levá-los a uma cidade estruturada e capaz de abrigá-los. Depois eu soube que ela não era a única, vários brasileiros, saindo de outros pontos da Europa, faziam o mesmo. Essa carona acabou servindo não apenas a nossos compatriotas e enfrentou problemas adicionais, uma vez que eram impostos bloqueios nas estradas, tornando necessário tomar caminhos alternativos, cruzar outros países. Clara e os demais voluntários também são heróis plenos de caráter.

Jefferson e Clara serão esquecidos.

Einstein teria dito que não sabia como seria a terceira guerra, mas, na quarta, as armas seriam tacapes e braços, uma tremenda briga de rua. Sem rua. Se o conflito entre Rússia e Ucrânia não se difundir e o mundo não se acabar, ao fim da guerra, como sempre acontece, os heróis da morte serão eternizados em estátuas, nomes de rua, de praças etc.

Já em Petrópolis, nenhum monumento exaltando os heróis ou homenageando as vítimas será levantado. Os que sofreram perdas estarão marcados para o resto da vida, e os que podem mudar a situação permanente de risco, depois de discursos e promessas, voltarão a não gastar a verba nas obras de prevenção, se é que não a excluirão do orçamento. Até que nova chuva caia e eles chorem, em alguns casos até arregacem as mangas e se misturem aos despossuídos como se fossem um deles. Não são. Nunca foram. Eles acham que a culpa da tragédia é de quem construiu a casa lá na ribanceira.
Alexandre Brandão

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