sexta-feira, 26 de março de 2021

Pensamento do Dia

 


Preparem-se para os dias piores de sua vida com a pandemia

E a História vai registrar que no dia 25 de março de 2021, quando foi batido mais um recorde no número de mortes e de novos casos de coronavírus no Brasil, pelo menos 6.370 pessoas estavam à espera de um leito de UTI, muitas sem conseguir respirar direito por falta de oxigênio e de equipamentos de ventilação mecânica.

O número foi levantado pelo Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde. Em São Paulo, são 1.500 pessoas na fila por um leito. Em Minas Gerais, 714. No Rio, 582. E no Paraná, 501. O sistema público e privado de saúde entrou em colapso. A doença está em alta em 25 dos 27 Estados, e mais no Distrito Federal.

Segundo a Associação Nacional de Hospitais Privados, a maioria das unidades particulares do país tem estoque só para mais três ou quatro dias de medicamentos usados no atendimento de pacientes da Covid-19. “Isso significa que a gente chegou ao limite”, disse em tom de desespero Carlos Lula, o presidente do Conselho.

O limite já foi ultrapassado. A saúde "é um direito de todos e dever do Estado”, afirma a Constituição. Se jamais foi de fato um direito, agora virou um privilégio de poucos. “Se o Ministério da Saúde não tomar medidas urgentes nas próximas horas, o número de mortes diárias poderá passar da casa de 4 mil", prevê Lula.

Nas últimas 24 horas foram registradas 2.639 mortes de um total até agora de 303.726. Houve 97.586 novos casos da doença, o maior número desde o início da pandemia há 1 ano. O vírus já infectou 12.324.765 brasileiros. Foi o nono dia seguido com uma média de mortes superior a 2 mil, 8% a mais do que 14 dias atrás.

Vacinados? O total de vacinados com a primeira dose corresponde a 6,65% da população. Com a segunda, 2,13%. Marcelo Queiroga, o novo ministro da Saúde, promete vacinar 1 milhão de pessoas por dia. A partir de quando? Não sabe e não se arriscaria a dizer. Culpa do governo que não se mexeu para comprar vacina a tempo.

O número de óbitos, disse o general Hamilton Mourão, vice-presidente da República, “já ultrapassou o limite do bom senso”. Não disse quantas mortes poderiam ter sido admitidas sem ferir o bom senso. Mas descartou um lockdown nacional por impossível de ser implantado: "Vai ficar só no papel”.

O lockdown também foi descartado pelo ministro da Secretaria-Geral do governo, Onyx Lorenzoni, que só repete o que escuta de Jair Bolsonaro: “Alguém consegue impedir que passarinho, cão, gato, rato e formiga se locomovam? Alguém consegue fazer lockdown dos insetos?”. Lorenzoni é tão raso quanto um pires.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, propôs como saída um “isolamento mais inteligente e mais seletivo” para frear a alta nos contágios pelo vírus. Não disse como seria. Deve ser algo como “democracia à brasileira”, ou “democracia relativa”, ou “democracia autoritária”. À brasileira, só peru de Natal.

Palavras são traiçoeiras para quem sabe usá-las como Guedes, e para quem tem dificuldades como Mourão e Lorenzoni. Bolsonaro é um caso à parte. Foi mau aluno na escola primária. E reconhece nunca ter lido um livro – nem mesmo o do coronel torturador Brilhante Ulstra, que apenas deu-se ao trabalho de folhear.

300 mil vidas perdidas

Negacionismo, omissão, incompetência e, sobretudo, desprezo pela vida humana arrastaram 300 mil brasileiros ao túmulo. Um ano e um mês após o registro oficial da primeira infecção pelo novo coronavírus, o Brasil é hoje tudo o que não se queria naquele 26 de fevereiro de 2020. Primeiro país em mortes diárias e segundo em total de mortes, atrás apenas dos Estados Unidos. Lá, a curva vem caindo à medida que a população é vacinada. Aqui, não para de subir enquanto faltam vacinas. Na terça-feira, o Brasil superou pela primeira vez a marca macabra de 3.000 mortes por Covid-19 em um só dia — aproximadamente um morto a cada 30 segundos. A cada quatro vítimas fatais do vírus no mundo, hoje um é brasileiro.


As 300 mil vidas perdidas para a Covid-19 no país representam aproximadamente 23% da média anual de mortes antes da pandemia. Grosso modo, de cada cinco mortos no último ano, um estaria vivo não fosse o ambiente hospitaleiro que o vírus encontrou entre nós. Viramos um assumido pária mundial, epicentro da Covid-19 e ameaça sanitária ao planeta.

A história poderia ter sido outra? Certamente. O governo Jair Bolsonaro escreveu de próprio punho cada capítulo do roteiro macabro que nos impôs um luto sem data para terminar. Nada foi por acaso. Em 28 de março do ano passado, quando o país contava apenas 114 mortos pela Covid-19, o presidente foi alertado pelo então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, para a gravidade da pandemia e seus efeitos devastadores. Na época, a pior projeção previa 180 mil mortos, caso não fossem tomadas as medidas necessárias. Àquela altura, era plenamente possível evitar o pior. Bolsonaro ignorou o alerta. Continuou agindo como sempre: desprezou máscaras, provocou aglomerações, atacou medidas de isolamento social decretadas por governadores e prefeitos, menosprezou a pandemia — era “só uma gripezinha” — e desdenhou as mortes que não paravam de crescer. Ressoa até hoje seu indiferente “e daí?” diante da tragédia.

No pronunciamento em rede nacional na terça-feira, abafado por panelaços nas capitais, tentou adotar um tom mais sóbrio. Mas continuou a mentir e a distorcer dados para exaltar as ações do governo. “Quero tranquilizar o povo brasileiro e afirmar que as vacinas estão garantidas”, afirmou. “Ao final do ano, teremos alcançado mais de 500 milhões de doses para vacinar toda a população. Muito em breve retomaremos nossa vida normal.” No mesmo dia, o Ministério da Saúde anunciou a redução de quase dez milhões nas doses previstas para abril, de 57,1 milhões para 47,3 milhões.

Em dois meses de campanha, o país aplicou a primeira dose a pouco mais de 6% da população. De acordo com os dados disponíveis até a última semana para 103 países na plataforma Our World in Data, esse percentual nos coloca na 54ª posição no quesito “proporção da população que tomou ao menos uma dose da vacina”. Nem de longe o que prega a propaganda bolsonarista, na tentativa de eximir o presidente da responsabilidade pela condução desastrosa do combate à pandemia.

Bolsonaro trocou dois ministros da Saúde — os médicos Mandetta e Nelson Teich — pelo general Eduardo Pazuello, cujo único predicado era obedecer-lhe na fixação em adotar um remédio comprovadamente ineficaz contra a doença, a cloroquina. Não tinha como dar certo. Acaba de assumir o quarto ministro na pandemia, o cardiologista Marcelo Queiroga, apresentado ontem a sua primeira crise: o Ministério da Saúde mudou os critérios para registro das mortes e, num passe de mágica, os números despencaram. O governo só voltou atrás depois da grita dos estados.

No Planalto, ainda se procura um cargo para Pazuello, investigado pela tragédia de Manaus, onde pacientes morreram por falta de oxigênio. Os equívocos e as omissões da dupla Bolsonaro & Pazuello ficaram explícitos na atitude diante das vacinas. O governo fez tudo errado. Por omissão, viu-se refém do acordo assinado pela Fiocruz para produzir a vacina da AstraZeneca. Desprezou a oferta da Pfizer em agosto para comprá-la somente agora. Acordou tarde para outros imunizantes. A vacina que sustenta o claudicante Programa Nacional de Imunização é a chinesa CoronaVac, que Bolsonaro torpedeou por ter sido contratada por um adversário, o governador João Doria.

O resultado da gestão inepta é que faltam vacinas, enquanto o vírus e suas variantes fazem a festa. O cenário é caótico. Hospitais entram em colapso, doentes morrem nas filas de espera, faltam oxigênio e sedativos para entubar pacientes, corpos se amontoam em corredores. A pandemia pode até acabar, mas as sequelas durarão anos. Famílias perderam seus provedores, crianças ficaram órfãs, pais e mães enterraram prematuramente seus filhos. Trezentas mil mortes — muitas evitáveis — não podem ficar impunes. Quem será responsabilizado por isso? É preciso que Ministério Público, comissões parlamentares e demais órgãos de controle investiguem as responsabilidades de cada um nessa tragédia sem precedentes.

Por que não se seguiram as recomendações científicas? Por que não foram tomadas as medidas de restrição sabidamente eficazes para conter o vírus? Por que não se testou em massa a população, como fizeram os países que controlaram a epidemia? Por que o Ministério da Saúde abriu mão de coordenar o combate à doença? Por que se desperdiçaram dinheiro e energia com medicamentos inócuos? Por que não foram compradas vacinas a tempo de imunizar a população e salvar centenas de milhares de vidas?

Só ontem, depois de um ano e 300 mil mortes, Bolsonaro anunciou a criação de um comitê nacional para coordenar o combate ao vírus. Ficou claro no discurso do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que a paciência até dos aliados com os erros está no fim. Que este momento, em que Bolsonaro passou a defender a vacinação e aparenta ter caído em si, marque enfim a guinada no combate à pandemia e a adesão a políticas embasadas na Ciência, para que não tenhamos mais de chorar milhares de mortos todo dia.

A Guerra do Brasil

Todos foram contaminados. Para alguns, o vírus asfixiou. Para outros, ele gerou a fome, o desemprego e a depressão. Incapacidade de dormir para quem não sabe o dia de amanhã, medo de fechar os olhos para aqueles que temem não despertar. Explosão de problemas de visão para as crianças privilegiadas submetidas às telas que se multiplicam. Revelações da cegueira coletiva em adultos.

Oficialmente, chegamos perto de 300 mil mortos em apenas um ano, um número equivalente aos onze anos da guerra civil em Sierra Leoa. Superamos conflitos históricos como o do Líbano, dos Balcãs, os 56 anos de guerra na Colômbia e mesmo a atual guerra no Iêmen.


Num primeiro momento, diante dos números e da ameaça global, rapidamente tiramos conclusões equivocadas de que o vírus era democrático. Mas basta ver as taxas de mortes e de sofrimento nas periferias, na população negra e indígena e nos mais vulneráveis para entender a ilusão dessa declaração.

A palavra pandemia não está no feminino por acaso. São elas as mais afetadas, mais sobrecarregadas e mais prejudicadas.

Desde o início da pandemia, governos democráticos e autoritários usaram o simbolismo da guerra para mobilizar e justificar medidas extraordinárias. Comparações fora de lugar e com objetivos políticos para lidar com um desafio que era social, não militar.

Mas a nossa guerra não foi um recurso de retórica. O país foi transformado em uma enorme Guernica, com trincheiras e rostos deformados em cada ônibus lotado, em cada casa sem esgoto, em cada corredor de hospitais, no corpo estendido no chão em Teresina. Um corpo seminu, coberto de marcas de crimes.

Ironicamente, estamos sendo derrotados justamente no momento em que os militares se infiltraram no comando do Brasil. Prova – mais uma delas – que uma guerra é importante demais para ser deixada para os generais.

Em meio século, seremos questionados pelos livros de história: o que fizeram aquelas pessoas em 2020 e 2021? Não faltarão pesquisas nos arquivos diplomáticos para descobrir que parte do esforço não foi para enfrentar o inimigo. Mas para usar as tribunas internacionais para mentir.

Não faltarão alunos em choque ao descobrir que milícias – digitais ou suburbanas – agiram como braço armado de uma política deliberada de tentar desmontar e intimidar uma reação popular.

Tampouco faltarão estudos para mostrar que, num certo dia 23 de março de 2021, ao fazer um pronunciamento à nação, um charlatão fantasiado de presidente tentava esconder sua nudez obscena com manipulações e com Deus

Se existe de fato uma comunidade de destino nesse primeiro povo global, o atual momento coloca uma encruzilhada inédita para nossa geração.

Nessa guerra, de nada adiantará desfilar com as cores nacionais. A bandeira do patriotismo não será grande o suficiente para cobrir todos esses corpos e todas nossas almas dilaceradas. A soberania foi zombada por um inimigo que gargalhou das ideologias.

Sem coordenação, sem controle, sem um destino claro e sem um plano, o Brasil vive seu momento definidor em uma batalha em suas entranhas.

Quanto ao inimigo acostumado ao cheiro da morte, o realismo mágico do país lhe deixou assombrado. Afinal, descobriu, de forma impensável, que tem na liderança do próprio estado um dos seus melhores aliados.

Bom senso de general é abaixo de 300 mil


Agora vamos enfrentar o que está aí e tentar de todas as formas diminuir a quantidade de gente contaminada e, obviamente, o número de óbitos, que já ultrapassou o limite do bom senso
Hamilton Mourão 

O presidente improvisado

Jair Bolsonaro agora quer convencer os brasileiros de que é presidente da República, e não o irresponsável que todos conhecem. Esse novo personagem se apresentou ao País em cadeia nacional de TV, na terça-feira à noite, e numa reunião com governadores e dirigentes do Congresso e do Judiciário para tratar da pandemia de covid-19, no dia seguinte.

Bolsonaro vestiu um mal-ajambrado figurino de estadista nas últimas horas não porque, subitamente, passou a se preocupar com o padecimento de seus concidadãos, e sim porque a queda acentuada de sua popularidade, em razão de sua desastrosa administração da crise, ameaça sua reeleição.

Cobrado pelos líderes políticos que ainda o apoiam, mas que já começam a mostrar impaciência com seu talento para criar tumulto em vez de governar, Bolsonaro viu-se na contingência de se mostrar mais comedido e até disposto a defender a vacinação e a colaboração para o combate à pandemia.

Os panelaços que acompanharam o pronunciamento de Bolsonaro na TV mostram que os espectadores não se deixaram convencer por esse presidente improvisado. Pudera.



Depois de passar seus mais de dois anos de mandato mobilizando as atenções por ameaçar a ordem democrática, desrespeitar a Presidência e ofender a inteligência e a moral dos brasileiros, Bolsonaro jamais será visto como o líder que nunca foi. E jamais será porque, entre outras muitas razões, Bolsonaro trata seus governados como tolos, ao mentir descaradamente e esperar que alguém, além dos celerados que o idolatram, acredite.

No pronunciamento, Bolsonaro disse que “em nenhum momento o governo deixou de tomar medidas importantes tanto para combater o coronavírus quanto para combater o caos na economia”. Ora, todos sabem que o presidente foi o líder dos negacionistas da pandemia.

Além disso, o presidente teve a audácia de dizer que “temos mais de 14 milhões de vacinados e mais de 32 milhões de doses de vacina distribuídas para todos os Estados da Federação graças às ações que tomamos logo no início da pandemia”.

Da boca de um presidente que passou a pandemia inteira a desdenhar das vacinas – a certa altura, mandou comprá-las “na casa da tua mãe” – e a prejudicar a organização da imunização ao trocar três vezes de ministro da Saúde, trata-se de inaceitável escárnio. Bolsonaro espera que todos esqueçam que a maior parte das vacinas citadas em sua fala mendaz foi produzida pelo Instituto Butantan em parceria com os chineses, sem qualquer participação do governo federal. Ao contrário, Bolsonaro desprezou desde sempre a “vacina chinesa” de São Paulo e agora, como um parasita, reivindica os louros de sua produção.

Essa desfaçatez se estendeu por quatro minutos espantosos, coroados pela promessa de que toda a população será vacinada até o fim do ano – no mesmo momento em que o Ministério da Saúde revisou para baixo, mais uma vez, seu cronograma de entrega dos imunizantes. O presidente terminou manifestando solidariedade “a todos aqueles que tiveram perdas em sua família”, depois de passar meses a dizer que não era “coveiro”, que “todos vão morrer um dia”, que era preciso enfrentar a pandemia “como homem” e de ter menosprezado a dor dos brasileiros, qualificando-a de “frescura” e de “mimimi”.

No dia seguinte, Bolsonaro, depois de se reunir com governadores e dirigentes de outros Poderes, anunciou a criação de um comitê para tomar decisões sobre a pandemia – algo que deveria ter sido feito há um ano. A sensação, no entanto, é que o tal comitê é só parte da encenação mambembe de Bolsonaro.

O presidente que hoje acena com diálogo e cooperação é o mesmo que dias antes chamou de “tiranetes” os governadores que adotaram toque de recolher contra a pandemia e entrou no Supremo Tribunal Federal contra eles. Ao rejeitar a ação, o ministro Marco Aurélio Mello, além de salientar o “erro grosseiro” do presidente ao assinar ele próprio a petição, e não a Advocacia-Geral da União, disse que “ao presidente da República cabe a liderança maior, a coordenação dos esforços visando o bem-estar dos brasileiros”. Mas Bolsonaro definitivamente não nasceu para esse papel.

Com medo e encurralado, Bolsonaro se refugia em Deus e no Exército

Com medo e encurralado, o presidente Jair Bolsonaro vem se refugiando em Deus e nas armas. Assim revelou no domingo passado, quando uma pequena multidão de seguidores dele foi a Brasília para felicitá-lo por seu 66º aniversário. Disse, sem citar nomes, que “estão esticando demais a corda”, mas que não havia motivo para temores porque Deus e o Exército estão ao seu lado. Respondendo aos rumores de que tanto o Congresso quanto os governadores estariam estudando formas de afastá-lo do cargo devido à sua catastrófica gestão da pandemia, que acumula mais mortos a cada dia, declarou aos seus admiradores, num tom entre medroso e arrogante: “Só Deus me tira daqui”. Também mencionou que a função do Exército é garantir a liberdade deles. Que Bolsonaro fale de liberdade é algo que soa a piada, uma vez que, dia sim, dia não, ele ameaça com gestos autoritários e golpes de Estado.

Bolsonaro se escuda cada dia mais em Deus e nas armas para se proteger e poder chegar à reeleição, que é hoje sua única obsessão. Mas, diante das graves crises que se acumulam no Brasil― sanitária, social, econômica e política―, as eleições de 2022 têm tudo para serem dramáticas. Na verdade, o Brasil já está em campanha eleitoral antecipada, com dois líderes populares duelando: Lula e Bolsonaro. Ambos só pensam na reeleição, e desde que Lula ficou, ao menos por enquanto, livre para voltar à arena política, já botou o bloco na rua, para usar suas próprias palavras. E seu competidor Bolsonaro, esquecido de que é o presidente, já se dedica descaradamente à campanha eleitoral. São dois candidatos indiscutíveis e convencidos da vitória. O drama está em que ambos são hoje os únicos personagens consolidados como mitos.


E o centro democrático, que teria condições de romper essa polarização? Esse é o drama. Não só não está ainda em campanha como parece perdido, sem uma liderança capaz de enfrentar dois mitos. A terceira via, que seria a de centro-direita democrática, não foi até agora nem sequer capaz de se decidir por um candidato único capaz de enfrentar com chances de vitória os dois nomes já consolidados e que vêm afiando suas armas para o duelo.

A única esperança que restaria a esse centro democrático é que Bolsonaro sofra um impeachment antes de disputar a reeleição. E isso porque o bolsonarismo golpista não conta hoje com ninguém capaz de ter a força eleitoral de Bolsonaro. Sem ele, o bolsonarismo certamente não desapareceria, mas não contaria mais com um novo mito. O duelo entre Lula e Bolsonaro, únicos candidatos num cenário em que também a esquerda está dividida, é afinal mais do mesmo. Para um Brasil que parece terra arrasada, sem dúvida seria melhor um novo mandato de Lula, que não ameaça a democracia e ainda é capaz de pronunciar palavras de esperança, e não de ódio a um país que a perdeu com Bolsonaro, o negacionista e saudosista das ditaduras.

O ideal seria, entretanto, uma substituição que revelasse uma alternativa firmemente democrática capaz de oferecer um novo projeto de país. Um novo projeto capaz de lhe devolver a confiança e de salvar a democracia hoje ameaçada e ultrajada no meio de uma grave crise econômica agravada pela crise da pandemia à deriva. Uma tragédia que está arrastando milhões de famílias não só para a pobreza e o desencanto, mas para a miséria e a fome.

Se o centro democrático não puser já o seu bloco eleitoral na rua, com um candidato preparado e carismático que seja capaz de enfrentar os dois mitos já presentes na arena, não só perderá o trem como também comprometerá sua credibilidade e terá que prestar contas ao país por ter feito abortar o que neste momento seria uma renovação política e social. Uma renovação capaz de destruir a eterna polarização que não permite ao país oferecer algo novo que o faça ressuscitar de seu déjà vu fatalista, paralisando a esperança de fazer este país ressurgir da sua condenação ao imobilismo político.

O grave é que esse centro que poderia ser uma terceira via renovadora capaz de abrir novos horizontes está flertando muito com Bolsonaro, como denunciou dias atrás o analista político Demetrio Magnoli, para quem o centro democrático “não tem narrativa, discurso, programa ou rosto” e não foi capaz de “lavar as mãos que tocaram uma poça tão pútrida”. Tudo perdido, então? Não. Em política as coisas podem mudar de repente. Mas deixar que as velhas receitas do passado se fortaleçam significa na verdade continuarmos atolados numa dicotomia populista que ameaça fechar a porta a uma esperança de mudança que a sociedade vem pedindo. É uma sociedade cansada da velha política que Bolsonaro prometeu combater, para acabar atado a ela com total desfaçatez.