quarta-feira, 9 de outubro de 2024
Por que o povo não pode jogar?
Descobrimos alarmados que o povão também joga. Que plebeus fregueses de ajuda-esmola governamental garantidora de sua ignorância cívica jogam nas bets, esses cassinos digitais. Alguns reacionários de esquerda e direita estão revoltados e confusos. Não podem proibir a jogatina da internet (onde também fazem sua “fezinha”) nem, tampouco, a aspiração mais que legítima dos pobres de “subir na vida” e sair deste massacrante “populismo de merda”, correndo o bom risco de enriquecer.
Tal como nos contos de fada em que, obviamente, acreditamos quando pensamos em controlar tudo, esses plebeus desejam viver aristocraticamente tendo a liberdade e o direito de jogar. De investir em números, bichos, times, gols ou o que mais apareça, assim como os capitalistas e políticos “aplicam” e especulam nas bolsas de valores, esse coração do sistema econômico em que vivemos. Esse mercado autorregulado — visto por Karl Polanyi como rematada loucura — que hoje governa governos.
Jogo rima com povo e com a carência que, na vida diária, se transforma em ambição, vício ou volúpia de enriquecimento rápido. Aquelas “tacadas” que surgem também nas “rachadinhas” e nos múltiplos privilégios de quem ficou “por cima da carne-seca” por meio da ética da amizade e do jamais criticado e de um eficiente exemplo das infalíveis credenciais do familismo. Sabemos disso, mas, como nobres-reacionários, fingimos não saber que o jogo, como a “boa vida”, não se destina a um “todo mundo” igualitário.
Onde não se joga? Que é a vida senão um jogo? Uma partida sem vencedores porque somos, pasmem, os mandões e poderosos mortais. Numa visada profunda, todas as vidas perdem tanto quanto ganham, mas não deixam de, esperançosamente, apostar em pessoas, negócios
Qual é o ganho no jogo acadêmico e intelectual brasileiro, dentro de um mundo em que o grande lance é “subir na vida” a qualquer preço, como rico ou político, e virar doutor e professor? Fui alertado sobre isso quando verifiquei que alguns dos meus interlocutores do sertão brasileiro não podiam acreditar que eu pesquisava a vida social de “índios”. Para alguns — ou quem sabe todos —, eu procurava ouro, urânio ou diamantes!
Não tenho nada contra esclarecer sobre o jogo nesses cassinos digitais e difíceis de controlar da internet. Minha avô materna, Emerentina, tinha motivo para ter afinidade com o jogo. Ela perdeu o marido assassinado e enterrou muitos filhos. Mas enfrentou o inesperado com outro inesperado: o jogo que oferecia o golpe do enriquecimento numa sociedade em que trabalho ainda é castigo. Uma terra que até hoje não se envergonha de seus abismos sociais e trata seus pobres como “povo” ou “massa”, como um bolo dependente de bolsas-esmola que não devem ser gastas com apostas, porque só os esclarecidos e ricos podem jogar.
Hoje a internet faz o que o jogo do bicho fez na virada no século XIX para o XX. Ela digitalizou e, com isso, popularizou os cassinos, abrindo a todos a vantagem e, mais que isso, o conforto de jogar a qualquer hora, dia e lugar. O susto nacional é, portanto, o susto de um sistema fechado, burro e reacionário com mais um perturbador universalismo. O alarme contra o jogo dos plebeus é a reação de um sistema avesso à mobilidade, à liberdade e à igualdade. Essa estrutura formalista e aristocrática não pode ver o jogo como esperança de subir na vida por apostas (ou investimentos), tal como fazem nossos democráticos governantes, que, aristocraticamente, moram em palácios.
Sem consciência de cidadania, continuaremos tentando progredir na ilusão de que as leis têm mesmo o poder mágico de realizar progresso e corrigir a sociedade e seus costumes. Como se uma abolição jurídica do vício, da ambição e do ideal de enriquecer sem trabalho pudesse ser inibida sem determinação gigantesca num país fabricado por uma aristocracia escravocrata.
Tal como nos contos de fada em que, obviamente, acreditamos quando pensamos em controlar tudo, esses plebeus desejam viver aristocraticamente tendo a liberdade e o direito de jogar. De investir em números, bichos, times, gols ou o que mais apareça, assim como os capitalistas e políticos “aplicam” e especulam nas bolsas de valores, esse coração do sistema econômico em que vivemos. Esse mercado autorregulado — visto por Karl Polanyi como rematada loucura — que hoje governa governos.
Jogo rima com povo e com a carência que, na vida diária, se transforma em ambição, vício ou volúpia de enriquecimento rápido. Aquelas “tacadas” que surgem também nas “rachadinhas” e nos múltiplos privilégios de quem ficou “por cima da carne-seca” por meio da ética da amizade e do jamais criticado e de um eficiente exemplo das infalíveis credenciais do familismo. Sabemos disso, mas, como nobres-reacionários, fingimos não saber que o jogo, como a “boa vida”, não se destina a um “todo mundo” igualitário.
Onde não se joga? Que é a vida senão um jogo? Uma partida sem vencedores porque somos, pasmem, os mandões e poderosos mortais. Numa visada profunda, todas as vidas perdem tanto quanto ganham, mas não deixam de, esperançosamente, apostar em pessoas, negócios
Qual é o ganho no jogo acadêmico e intelectual brasileiro, dentro de um mundo em que o grande lance é “subir na vida” a qualquer preço, como rico ou político, e virar doutor e professor? Fui alertado sobre isso quando verifiquei que alguns dos meus interlocutores do sertão brasileiro não podiam acreditar que eu pesquisava a vida social de “índios”. Para alguns — ou quem sabe todos —, eu procurava ouro, urânio ou diamantes!
Não tenho nada contra esclarecer sobre o jogo nesses cassinos digitais e difíceis de controlar da internet. Minha avô materna, Emerentina, tinha motivo para ter afinidade com o jogo. Ela perdeu o marido assassinado e enterrou muitos filhos. Mas enfrentou o inesperado com outro inesperado: o jogo que oferecia o golpe do enriquecimento numa sociedade em que trabalho ainda é castigo. Uma terra que até hoje não se envergonha de seus abismos sociais e trata seus pobres como “povo” ou “massa”, como um bolo dependente de bolsas-esmola que não devem ser gastas com apostas, porque só os esclarecidos e ricos podem jogar.
Hoje a internet faz o que o jogo do bicho fez na virada no século XIX para o XX. Ela digitalizou e, com isso, popularizou os cassinos, abrindo a todos a vantagem e, mais que isso, o conforto de jogar a qualquer hora, dia e lugar. O susto nacional é, portanto, o susto de um sistema fechado, burro e reacionário com mais um perturbador universalismo. O alarme contra o jogo dos plebeus é a reação de um sistema avesso à mobilidade, à liberdade e à igualdade. Essa estrutura formalista e aristocrática não pode ver o jogo como esperança de subir na vida por apostas (ou investimentos), tal como fazem nossos democráticos governantes, que, aristocraticamente, moram em palácios.
Sem consciência de cidadania, continuaremos tentando progredir na ilusão de que as leis têm mesmo o poder mágico de realizar progresso e corrigir a sociedade e seus costumes. Como se uma abolição jurídica do vício, da ambição e do ideal de enriquecer sem trabalho pudesse ser inibida sem determinação gigantesca num país fabricado por uma aristocracia escravocrata.
A direita prefere ser chamada de centro para não passar vergonha
Dá para distinguir entre esquerda e direita, esquerda da extrema-esquerda e direita da extrema-direita. Nomes aos bois para que fique mais claro: por exemplo, dá para distinguir Lula (PT) de Tarcísio de Freitas (Republicanos), governador de São Paulo.
O PT pouco tem a ver com o PCO (Partido da Causa Operária), assim como o PSD de Kassab pouco tem a ver com o PL de Bolsonaro e o PRTB de Pablo Marçal. Difícil é fazer tais distinções a cada dois anos quando a data das eleições se aproxima.
Antigamente – e põe tempo nisso -, salvo o Partido Comunista Brasileiro (PCB), fundado em 1922, nenhum partido se dizia de esquerda. Se dissesse ou fosse reconhecido como tal, acabaria posto na ilegalidade. Foi o que aconteceu com o PCB.
Antigamente, nenhum partido se dizia de direita. Em tese, todos eram do centro, uns mais, outros menos conservadores. O PSD criado por Getúlio Vargas era o partido para abrigar os patrões, e o PTB para reunir os trabalhadores em torno do governo.
A UDN surgiu à revelia de Vargas para se opor a ele. Uma vez que ele morreu, ela jogou fora a máscara de partido liberal para tentar chegar ao poder com o apoio dos militares. Chegou com o populista Jânio Quadros, que renunciaria à presidências.
Em 1964, os militares extinguiram os partidos existentes e criaram os seus: a ARENA, à direita, para obedecer às suas ordens sem maiores discussões; o MDB, à esquerda, para moderadamente desobedecê-las, desde que não ameaçasse o novo regime.
Raros foram os parlamentares da ARENA que ousaram declarar que eram de direita, embora quase todos fossem; pegava mal. Raros foram os parlamentares do MDB que ousaram declarar que eram de esquerda. Muitos deles, mesmo assim, foram cassados.
Bolsonaro, a partir de 2018, venceu o medo da direita de se dizer de direita. Marçal, este ano, fez a extrema-direita perder a vergonha de apresentar-se como ela é. Bolsonaro, por falta de coragem, deixou a extrema-direita a clamar sozinha por um golpe.
Marçal acolheu-a. E já anunciou que daqui a dois anos, disputará o governo de São Paulo ou a sucessão de Lula. O que a direita não extremista fará se concluir que Marçal é imparável? O que estava pronta para fazer agora: apoiá-lo no segundo turno.
Até lá, a direita posará de centro na esperança de que Tarcísio ceda ao seu apelo para que se candidate a presidente. Ele só cederá se concluir que poderá vencer Lula. Do contrário, será candidato à reeleição. Sem ele, quem teria chances de derrotar Lula?
Se não aparecer outro nome, a direita – ou o centro como ela prefere se chamar -, irá com Marçal. Mandará às favas todos os escrúpulos, como mandou o ministro Jarbas Passarinho ao assinar o AI-5 em 1968, o ato mais violento da ditadura. Você duvida?
Não pague para ver.
O PT pouco tem a ver com o PCO (Partido da Causa Operária), assim como o PSD de Kassab pouco tem a ver com o PL de Bolsonaro e o PRTB de Pablo Marçal. Difícil é fazer tais distinções a cada dois anos quando a data das eleições se aproxima.
Antigamente – e põe tempo nisso -, salvo o Partido Comunista Brasileiro (PCB), fundado em 1922, nenhum partido se dizia de esquerda. Se dissesse ou fosse reconhecido como tal, acabaria posto na ilegalidade. Foi o que aconteceu com o PCB.
Antigamente, nenhum partido se dizia de direita. Em tese, todos eram do centro, uns mais, outros menos conservadores. O PSD criado por Getúlio Vargas era o partido para abrigar os patrões, e o PTB para reunir os trabalhadores em torno do governo.
A UDN surgiu à revelia de Vargas para se opor a ele. Uma vez que ele morreu, ela jogou fora a máscara de partido liberal para tentar chegar ao poder com o apoio dos militares. Chegou com o populista Jânio Quadros, que renunciaria à presidências.
Em 1964, os militares extinguiram os partidos existentes e criaram os seus: a ARENA, à direita, para obedecer às suas ordens sem maiores discussões; o MDB, à esquerda, para moderadamente desobedecê-las, desde que não ameaçasse o novo regime.
Raros foram os parlamentares da ARENA que ousaram declarar que eram de direita, embora quase todos fossem; pegava mal. Raros foram os parlamentares do MDB que ousaram declarar que eram de esquerda. Muitos deles, mesmo assim, foram cassados.
Bolsonaro, a partir de 2018, venceu o medo da direita de se dizer de direita. Marçal, este ano, fez a extrema-direita perder a vergonha de apresentar-se como ela é. Bolsonaro, por falta de coragem, deixou a extrema-direita a clamar sozinha por um golpe.
Marçal acolheu-a. E já anunciou que daqui a dois anos, disputará o governo de São Paulo ou a sucessão de Lula. O que a direita não extremista fará se concluir que Marçal é imparável? O que estava pronta para fazer agora: apoiá-lo no segundo turno.
Até lá, a direita posará de centro na esperança de que Tarcísio ceda ao seu apelo para que se candidate a presidente. Ele só cederá se concluir que poderá vencer Lula. Do contrário, será candidato à reeleição. Sem ele, quem teria chances de derrotar Lula?
Se não aparecer outro nome, a direita – ou o centro como ela prefere se chamar -, irá com Marçal. Mandará às favas todos os escrúpulos, como mandou o ministro Jarbas Passarinho ao assinar o AI-5 em 1968, o ato mais violento da ditadura. Você duvida?
Não pague para ver.
Fome
Fui comprar carne, pão e sabão. Parei na banca de jornaes. Li que uma senhora e três filho havia suicidado por encontrar dificuldade de viver.
A mulher que suicidou-se não tinha alma de favelado, que quando tem fome recorre ao lixo, cata verduras nas feiras, pedem esmola e assim vão vivendo.
Pobre mulher! Quem sabe se de há muito ela vem pensando em eliminar-se, porque as mães tem muito dó dos filhos. Mas é uma vergonha para uma nação. Uma pessoa matar-se porque passa fome. E a pior coisa para uma mãe é ouvir esta sinfonia:
— Mamãe eu quero pão! Mamãe, eu estou com fome!
Penso: será que ela procurou a Legião Brasileira ou Serviço Social? Ela devia ir nos palácios falar com os manda chuva.
A noticia do jornal deixou-me nervosa. Passei o dia chingando os políticos, porque eu também quando não tenho nada para dar aos meus filhos fico quase louca.
Carolina Maria de Jesus, "Quarto de despejo"
— Mamãe eu quero pão! Mamãe, eu estou com fome!
Penso: será que ela procurou a Legião Brasileira ou Serviço Social? Ela devia ir nos palácios falar com os manda chuva.
A noticia do jornal deixou-me nervosa. Passei o dia chingando os políticos, porque eu também quando não tenho nada para dar aos meus filhos fico quase louca.
Carolina Maria de Jesus, "Quarto de despejo"
O sonho como única realidade
A política eleitoral sucumbe em prol de si mesma em patética autoidolatria. Tudo se expressa quase que exclusivamente em termos pessoais. Tanta confusão, tão pouca luta! Na deformadora escola de eleições, políticos neófitos e partidos autoritários se esquecem de que ninguém vence eleição sem voto dos adversários. Buscar coalizões fora das urnas produz governos sem reserva de poder autêntico e base instável com partidos adversários.
A redemocratização não surgiu do enterro do coronel, nem de uma ordem nacional competitiva, com regras claras em direção à produtividade econômica, ambiente de paz psicossocial e emancipação cultural. Formou-se aos trancos e barrancos em virtude das deficiências na circulação de classes e a crônica desigualdade social que não permite ao País uma grandeza calma previsível para nenhum setor da sociedade.
Agora, o que se vê, é o desdobramento do sistema eleitoral e partidário não cumprir o papel de revigorar o País. Antes avança voraz para se apropriar do indivíduo isolado sem que as instituições do Estado – igualmente individualistas – possam oferecer em contrapartida a força propulsora da organização coletiva. Neste niilismo avassalador cresce o desmembramento do povo brasileiro, reduzindo-o a tribos, guetos, plateias – forma de dissolver seus laços espirituais e culturais e o enquadrar em círculos de influência ao modo patriarcal e colonialista.
As classes sociais não conseguem mais se manter influentes para modificar e aperfeiçoar a atividade política na direção da república democrática representativa. Vários fatores marcam o País nos últimos anos, com destaque para a religiosidade exaltada e intolerante das igrejas; o mal do século que se tornou o açoite que são as redes sociais e as reformas interrompidas ou deturpadas do modelo político, educacional, jurídico e econômico brasileiro. A precária forma como tratamos problemas estruturais e conjunturais retirou da sociedade a força, o orgulho e o esforço para se projetar na vida pública e atingiu frontalmente o aproveitamento de seus quadros nos processos de gestão do Estado.
Forma estranha de sucesso mistura heresia, decrepitude e zombaria, que desvia a concentração do cidadão da nobreza que é buscar vencer na vida. O trabalho e a riqueza no Brasil não estão no mesmo nível. Não adianta combater bets quando há fortunas tão rápidas que até parecem virtude. Sonhar errado vai continuar a influenciar de forma mística, ingênua ou oportunista pessoas cujo sonho é a única realidade. Startups predadoras, certos açougueiros e sertanejos; não são gênios, nem banqueiros clássicos, industriais pioneiros, inventores, urbanistas ou sanitaristas. Não são especialistas, nem artistas verdadeiros, são o prato principal de animadores do mercado dos ambiciosos, hipnotizadores que os fazem parecer normais.
Nada sabem de práticas exemplares. Espancam leis, não se submetem ao seu poder, antes as fizeram de escravas. Não nasceram da vontade geral, mas nela se meteram por refinados ardis que tiram a autonomia de qualquer público e o transforma em gente idiotizada. Quando se infiltram no meio da massa reduzem qualquer possibilidade de formação de opinião. É mentira que os que jogam perdem mais. Quem perde sempre é sempre quem não joga. Pobres não apostam na impulsividade sem limites das maquininhas do poder jurídico-político.
O País está cansado dos fatos que não dão em nada e mais parecem um disparate. Há uma cisão que está em curso na cabeça do cidadão em virtude da ruína dos partidos, do Direito e da lei e dos erros detalhados da liberdade e dos privilégios dos que os consumaram para si. Bilionário exibido e entrosado permite supor que no Brasil é possível conciliar tudo isso com a graça eficaz da autoridade que se orienta pelo princípio de legitimidade operacional que visa, de tempos em tempos, a tornar tudo controverso e paradoxal. Vem dos juízes purificadores o phátos das vozes e sentenças espantosas que temos que suportar. Uns não estão nem aí, outros são o “aí”.
A eleição é um grito de alerta. O feudalismo de donos do inconsciente coletivo nos espreita. Riqueza fácil, campanha cara e maus candidatos são irmãos gêmeos da carne que corta, dinheiro apreendido, medidas provisórias, emendas parlamentares, tribunais de faz de conta, jogos de azar, liminar encomendada. Olhando bem certas regras que fazem alguns tipos prosperarem, observamos que um é o outro revelado em suas atitudes cujos traços estão aí na realidade da vida das instituições. Eles são um outro de si mesmo. Há outros náufragos que navegam pelas ondas da política e da justiça do interesse, mudam de lado com as marés e se aquecem pelo calor corrosivo do poder.
O individualismo triunfante deve ser visto como freio à igualdade social geral. Está evidente a prosperidade de pessoas bizarras, coaches, influencers – evacuadores de regra, diria meu avô português – que impedem as instituições de se expressarem por sua história.
Assim como a qualidade de rico e de cultura não se adquire com riqueza ou poder, a grandeza do titular de certos cargos e fortunas costuma inspirar mais piedade do que respeito.
A redemocratização não surgiu do enterro do coronel, nem de uma ordem nacional competitiva, com regras claras em direção à produtividade econômica, ambiente de paz psicossocial e emancipação cultural. Formou-se aos trancos e barrancos em virtude das deficiências na circulação de classes e a crônica desigualdade social que não permite ao País uma grandeza calma previsível para nenhum setor da sociedade.
Agora, o que se vê, é o desdobramento do sistema eleitoral e partidário não cumprir o papel de revigorar o País. Antes avança voraz para se apropriar do indivíduo isolado sem que as instituições do Estado – igualmente individualistas – possam oferecer em contrapartida a força propulsora da organização coletiva. Neste niilismo avassalador cresce o desmembramento do povo brasileiro, reduzindo-o a tribos, guetos, plateias – forma de dissolver seus laços espirituais e culturais e o enquadrar em círculos de influência ao modo patriarcal e colonialista.
As classes sociais não conseguem mais se manter influentes para modificar e aperfeiçoar a atividade política na direção da república democrática representativa. Vários fatores marcam o País nos últimos anos, com destaque para a religiosidade exaltada e intolerante das igrejas; o mal do século que se tornou o açoite que são as redes sociais e as reformas interrompidas ou deturpadas do modelo político, educacional, jurídico e econômico brasileiro. A precária forma como tratamos problemas estruturais e conjunturais retirou da sociedade a força, o orgulho e o esforço para se projetar na vida pública e atingiu frontalmente o aproveitamento de seus quadros nos processos de gestão do Estado.
Forma estranha de sucesso mistura heresia, decrepitude e zombaria, que desvia a concentração do cidadão da nobreza que é buscar vencer na vida. O trabalho e a riqueza no Brasil não estão no mesmo nível. Não adianta combater bets quando há fortunas tão rápidas que até parecem virtude. Sonhar errado vai continuar a influenciar de forma mística, ingênua ou oportunista pessoas cujo sonho é a única realidade. Startups predadoras, certos açougueiros e sertanejos; não são gênios, nem banqueiros clássicos, industriais pioneiros, inventores, urbanistas ou sanitaristas. Não são especialistas, nem artistas verdadeiros, são o prato principal de animadores do mercado dos ambiciosos, hipnotizadores que os fazem parecer normais.
Nada sabem de práticas exemplares. Espancam leis, não se submetem ao seu poder, antes as fizeram de escravas. Não nasceram da vontade geral, mas nela se meteram por refinados ardis que tiram a autonomia de qualquer público e o transforma em gente idiotizada. Quando se infiltram no meio da massa reduzem qualquer possibilidade de formação de opinião. É mentira que os que jogam perdem mais. Quem perde sempre é sempre quem não joga. Pobres não apostam na impulsividade sem limites das maquininhas do poder jurídico-político.
O País está cansado dos fatos que não dão em nada e mais parecem um disparate. Há uma cisão que está em curso na cabeça do cidadão em virtude da ruína dos partidos, do Direito e da lei e dos erros detalhados da liberdade e dos privilégios dos que os consumaram para si. Bilionário exibido e entrosado permite supor que no Brasil é possível conciliar tudo isso com a graça eficaz da autoridade que se orienta pelo princípio de legitimidade operacional que visa, de tempos em tempos, a tornar tudo controverso e paradoxal. Vem dos juízes purificadores o phátos das vozes e sentenças espantosas que temos que suportar. Uns não estão nem aí, outros são o “aí”.
A eleição é um grito de alerta. O feudalismo de donos do inconsciente coletivo nos espreita. Riqueza fácil, campanha cara e maus candidatos são irmãos gêmeos da carne que corta, dinheiro apreendido, medidas provisórias, emendas parlamentares, tribunais de faz de conta, jogos de azar, liminar encomendada. Olhando bem certas regras que fazem alguns tipos prosperarem, observamos que um é o outro revelado em suas atitudes cujos traços estão aí na realidade da vida das instituições. Eles são um outro de si mesmo. Há outros náufragos que navegam pelas ondas da política e da justiça do interesse, mudam de lado com as marés e se aquecem pelo calor corrosivo do poder.
O individualismo triunfante deve ser visto como freio à igualdade social geral. Está evidente a prosperidade de pessoas bizarras, coaches, influencers – evacuadores de regra, diria meu avô português – que impedem as instituições de se expressarem por sua história.
Assim como a qualidade de rico e de cultura não se adquire com riqueza ou poder, a grandeza do titular de certos cargos e fortunas costuma inspirar mais piedade do que respeito.
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