Tal como nos contos de fada em que, obviamente, acreditamos quando pensamos em controlar tudo, esses plebeus desejam viver aristocraticamente tendo a liberdade e o direito de jogar. De investir em números, bichos, times, gols ou o que mais apareça, assim como os capitalistas e políticos “aplicam” e especulam nas bolsas de valores, esse coração do sistema econômico em que vivemos. Esse mercado autorregulado — visto por Karl Polanyi como rematada loucura — que hoje governa governos.
Jogo rima com povo e com a carência que, na vida diária, se transforma em ambição, vício ou volúpia de enriquecimento rápido. Aquelas “tacadas” que surgem também nas “rachadinhas” e nos múltiplos privilégios de quem ficou “por cima da carne-seca” por meio da ética da amizade e do jamais criticado e de um eficiente exemplo das infalíveis credenciais do familismo. Sabemos disso, mas, como nobres-reacionários, fingimos não saber que o jogo, como a “boa vida”, não se destina a um “todo mundo” igualitário.
Onde não se joga? Que é a vida senão um jogo? Uma partida sem vencedores porque somos, pasmem, os mandões e poderosos mortais. Numa visada profunda, todas as vidas perdem tanto quanto ganham, mas não deixam de, esperançosamente, apostar em pessoas, negócios
Qual é o ganho no jogo acadêmico e intelectual brasileiro, dentro de um mundo em que o grande lance é “subir na vida” a qualquer preço, como rico ou político, e virar doutor e professor? Fui alertado sobre isso quando verifiquei que alguns dos meus interlocutores do sertão brasileiro não podiam acreditar que eu pesquisava a vida social de “índios”. Para alguns — ou quem sabe todos —, eu procurava ouro, urânio ou diamantes!
Não tenho nada contra esclarecer sobre o jogo nesses cassinos digitais e difíceis de controlar da internet. Minha avô materna, Emerentina, tinha motivo para ter afinidade com o jogo. Ela perdeu o marido assassinado e enterrou muitos filhos. Mas enfrentou o inesperado com outro inesperado: o jogo que oferecia o golpe do enriquecimento numa sociedade em que trabalho ainda é castigo. Uma terra que até hoje não se envergonha de seus abismos sociais e trata seus pobres como “povo” ou “massa”, como um bolo dependente de bolsas-esmola que não devem ser gastas com apostas, porque só os esclarecidos e ricos podem jogar.
Hoje a internet faz o que o jogo do bicho fez na virada no século XIX para o XX. Ela digitalizou e, com isso, popularizou os cassinos, abrindo a todos a vantagem e, mais que isso, o conforto de jogar a qualquer hora, dia e lugar. O susto nacional é, portanto, o susto de um sistema fechado, burro e reacionário com mais um perturbador universalismo. O alarme contra o jogo dos plebeus é a reação de um sistema avesso à mobilidade, à liberdade e à igualdade. Essa estrutura formalista e aristocrática não pode ver o jogo como esperança de subir na vida por apostas (ou investimentos), tal como fazem nossos democráticos governantes, que, aristocraticamente, moram em palácios.
Sem consciência de cidadania, continuaremos tentando progredir na ilusão de que as leis têm mesmo o poder mágico de realizar progresso e corrigir a sociedade e seus costumes. Como se uma abolição jurídica do vício, da ambição e do ideal de enriquecer sem trabalho pudesse ser inibida sem determinação gigantesca num país fabricado por uma aristocracia escravocrata.
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