quinta-feira, 1 de abril de 2021

Bolsonaro: Mau militar, bom miliciano

O capitão Jair Bolsonaro deixou o Exército depois de ser absolvido em um tribunal militar, mas nem por isso evitou a porta dos fundos. É um episódio revelador. Nos anos 80, foi acusado de planejar a explosão de bombas em quartéis, na Academia Militar das Agulhas Negras e na adutora do Guandu, responsável pelo abastecimento de água no Rio de Janeiro. Mesmo com depoimentos e laudos demonstrando sua participação no caso, foi liberado pelo Superior Tribunal Militar. Assim, pôde construir uma carreira política como porta-voz dos interesses das baixas patentes.

Em sua lida no Congresso, o deputado-capitão se fez acompanhar por figuras como o ex-policial militar e faz-tudo Fabrício Queiroz. Durante anos, rendeu homenagens a — e empregou nos gabinetes da família Bolsonaro — parentes de PMs acusados de envolvimento com as milícias do Rio de Janeiro, entre os quais o agora famoso matador de aluguel Adriano da Nóbrega. Milícias, nunca é demais lembrar, são grupos de policiais que se desviam de sua função para cometer crimes e impor suas próprias leis à margem do Estado.

Nada disso era segredo para o generalato. Já nos anos 90, Ernesto Geisel classificou Bolsonaro como um mau militar, alguém “completamente fora do normal” para a carreira. O ex-presidente e general dizia acreditar que, à medida que o país se desenvolvesse, a interferência do Exército na política diminuiria.


Geisel não viveu para ver o engajamento dos militares na campanha de Bolsonaro. Ao subir a rampa do Planalto, o capitão tinha a seu lado o general Hamilton Mourão e outros sete fardados, em ministérios normalmente ocupados por civis. Desde então, dezenas de militares da ativa e da reserva foram nomeados para o segundo escalão, e mais de 2.500 aceitaram cargos na administração pública.

Enquanto buscava cooptar a nata da instituição militar, Bolsonaro governava para as baixas patentes e para as milícias. Nos últimos dois anos, tentou fazer passar no Congresso leis que facilitam a posse de armas e ampliam as situações em que um policial pode matar sem ser punido. Nada disso incomodou as Forças Armadas. Para os militares, milícias e segurança pública são um não assunto, coisa menor, de polícia, e não de Exército.

Os militares se consideravam contemplados pelos cargos e pela defesa que o presidente sempre fez de sua atuação no período da ditadura. Havia alinhamento, também, em pontos doutrinários considerados cruciais, como o conservadorismo nos costumes e a soberania do Brasil sobre a Amazônia. Quando cobrados por alguma barbaridade professada pelo capitão, os generais diziam, à miúda, que eram apenas bravatas sem consequência. E se empenhavam em explicar que quem se envolvia na política eram as pessoas, nunca a instituição.

Ou os generais tinham perdido a capacidade de análise, ou preferiram acreditar no que mais lhes convinha. Mais de uma vez, o capitão demonstrou não só com palavras, mas com gestos, julgar que o Exército lhe devia respaldo para além de suas funções constitucionais. Desde o início da pandemia, toda vez que se viu em apuros, Bolsonaro ameaçou com uma revolta dos fardados.

O roteiro se repetiu nesta semana. Ao mesmo tempo que o capitão demitia toda a cúpula da Defesa, seus acólitos tentavam emplacar uma narrativa falsa para inflamar as polícias estaduais. A morte de um PM de Salvador, depois de atirar contra colegas num surto psicótico, foi travestida, nas redes bolsonaristas, de ato heroico de revolta contra o distanciamento social. Derrotado nessa questão no Supremo Tribunal Federal, Bolsonaro apelou ao Congresso que lhe desse poderes para interferir nos governos estaduais. Perdeu de novo.

O último capítulo da crise mostra que, por superestimar também sua ascendência sobre as Forças Armadas, o presidente deu a elas a chance de confrontá-lo. Não é um detalhe que, antes de ser demitidos, os comandantes tenham deixado vir a público a intenção de entregar os cargos em protesto contra a mão pesada de Bolsonaro. Além disso, o Alto-Comando do Exército conseguiu alçar à chefia o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira — que implantou regras de distanciamento social no Exército e foi apontado como um dos pivôs da irritação de Bolsonaro com o ex-ministro da Defesa.

Para os códigos da caserna, foram reações enfáticas. Mas estão longe de ser atos de heroísmo. A história mostra que, por mais que não queiram admitir, os militares são sócios da obra bolsonarista. Sob o pretexto de não atuar na política, silenciaram diante da falta de compostura institucional, das mortes e do desgoverno criado por Jair Bolsonaro. Se reagiram agora, é porque até mesmo seus largos limites foram ultrapassados. Antes assim.

Quem sabe os militares passem a cortar na raiz as bravatas golpistas, ajudando a fortalecer a democracia. E o vaticínio de Geisel ao final acabe se cumprindo, ainda que por linhas tortas.

Brasil virou furacão

 


Bolsonaro despertou no brasileiro o que ele tem de pior

A verdade é que a popularidade do presidente Jair Bolsonaro já deveria ter desmoronado há muito tempo, mas ainda resiste como atestam as pesquisas. O que explica isso? Arrisco um palpite: ele despertou o que existe de pior em cada um de nós. E milhões de brasileiros deixaram transbordar o que antes escondiam.

O desprezo pela vida alheia, por exemplo. Desde que eu sobreviva à pandemia, pouco me importa quantos morram. Como disse Bolsonaro: morrerão os que tiverem de morrer, principalmente os mais fracos, doentes, incapazes de resistir a uma mera gripezinha que em dezembro, como ele previu, estava no finalzinho.

A ambição dos que tentam extrair vantagens de tudo é outro exemplo. Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, patrocina a aprovação de um projeto para que empresários possam comprar vacinas, se imunizarem e imunizarem seus empregados, despesas que seriam abatidas do Imposto de Renda.

A justificativa de Lira, um deputado a serviço de quem lhes paga as contas: se está difícil para o Ministério da Saúde vacinar todo mundo, que a iniciativa privada o faça. Um funcionário de fábrica vacinado graças ao seu patrão, afirmou Lira, será uma pessoa a menos a ser vacinada pelo poder público.

Em parte alguma do mundo isso acontece. A Rainha da Inglaterra só foi vacinada quando chegou a sua vez. De resto, a escassez de vacinas é geral. Só os governos responsáveis foram capazes de se antecipar ao aumento da demanda comprando vacinas para além do necessário. Não foi o caso do governo do ex-capitão.


Outro exemplo: a indisposição de uma sociedade por excelência individualista em obedecer ordens baixadas em nome do bem comum. É por isso que tantos dão razão a Bolsonaro quando ele diz que as pessoas devem fazer o que quiserem, ir aonde quiserem, mesmo que se contaminem e contaminem os próximos.

É por esses motivos, e também porque o presidente acredita que procedendo assim garante as chances de se reeleger no ano que vem, que o Brasil bate recordes de mortes pela Covid. Março, que terminou ontem, foi o pior mês de toda a pandemia, superando julho do ano passado que detinha o título macabro.

Mesmo assim, sentiremos saudades de março a confirmarem-se as previsões de que este mês de abril para os brasileiros será o pior das nossas vidas até aqui. Isso não impede que o presidente da República e os que compartilham suas ideias sigam indiferentes à tragédia que ainda não ganhou seus contornos definitivos.

O comitê recém-criado para coordenar as ações do governo federal no combate ao vírus revela-se inócuo. Do que adianta o ministro da Saúde defender tardias e limitadas medidas de isolamento se na mesma hora, em outro evento oficial, Bolsonaro prega o contrário, recomendando a todas as pessoas que circulem à vontade?

O procurador-geral da República, Augusto Aras, pediu ao Supremo Tribunal Federal que suspenda decretos municipais e estaduais que proíbem a realização de cultos, missas e outras atividades religiosas de caráter coletivo. Alegou que a assistência espiritual é essencial para muitas pessoas enfrentarem a pandemia.

Essencial é que fiquem em casa todos que puderem ficar. E que mesmo em casa, não façam reuniões familiares. No Distrito Federal, hospitais não têm como acomodar os corpos de vítimas da Covid, e cemitérios distribuem senhas entre famílias que desejam enterrar seus mortos dada à falta de covas em número suficiente.

O Ministério da Saúde reduziu quase à metade o número de doses de vacinas que estariam disponíveis em abril. O neurocientista Miguel Nicolelis, professor da universidade Duke, nos EUA, adverte no jornal El País: “Estamos a poucas semanas de um ponto de não retorno da crise do coronavírus no Brasil”.

O que isso pode significar, de acordo com ele: mais de 4.000 e até 5.000 mortes diárias e um total de 500.000 vítimas em julho. O que mais o preocupa é a possibilidade de um colapso funerário. Se isso ocorrer, “veremos corpos abandonados pelas ruas em espaços abertos e o uso de valas comuns para enterros coletivos”.

Se você não acredita nisso, acha um exagero, ou pensa que nada o afetará, esteja certo: você é um bolsonarista enrustido e não sabe.

Bolsonaro e a escada do caos

Jair Bolsonaro se alimenta do caos. Ele precisa da confrontação, da provocação e da contradição. O conflito constante é seu motor. Já era assim durante o tempo dele como militar de baixo escalão, quando planejou detonar uma bomba na lavanderia de uma caserna para obter um soldo mais alto.

A coisa continuou quando, no começo dos anos 90, ele se tornou o deputado cuja marca registrada era insultar outros cidadãos, sobretudo da esquerda ou de minorias, desejar-lhes morte, violência e tortura. Repetidamente em sua carreira, Bolsonaro defendeu a ditadura militar brasileira e, sem inibições, expressou fantasias totalitárias.

Como presidente, aperfeiçoou o método da quebra de tabu. Desde a posse, em janeiro de 2019, ele e seus filhos, assim como um círculo de deputados, assessores e propagandistas fiéis, bombardeiam o país semanalmente com novos descalabros, mentiras, provocações e ameaças. Elas não são a exceção, mas sim a regra.

Esse método serve para criar uma sensação constante de estado de exceção. "O caos é uma escada", diz Petyr Baelish, o sinistro conselheiro dos poderosos da série Game of Thrones. Esse é o princípio do bolsonarismo: na escada do caos agitado por ele próprio, ele quer subir cada vez mais e ampliar seu poder.

É por essa ótica que se deve ver a renúncia forçada dos três chefes das Forças Armadas brasileiras. Como tantas vezes nos últimos anos, diversos observadores, sobretudo correspondentes estrangeiros, falam de "caos no Brasil" e perguntam como interpretar a coisa toda. Alguns já anunciam o breve fim da presidência Bolsonaro, tendo perdido o apoio dos militares.

A leitura mais costumeira afirma: generais corajosos se opuseram a Bolsonaro para protestar contra sua tentativa de instrumentalizar as Forças Armadas para seus fins políticos. Ele teria pretendido empregar o Exército contra os lockdowns antipandemia decretados pelos governadores, além de ter contado com mais cobertura na eterna luta com o Supremo Tribunal Federal, que barra alguns de seus intentos mais radicais.

Com a tomada de posição conjunta, os líderes do Exército, Marinha e Aeronáutica teriam agora demonstrado que as Forças Armadas não são um instrumento bolsonarista, mas sim do Estado, e que estão firmemente plantados no solo da Constituição democrática. Até mesmo a esquerda brasileira exultou diante dessa suposta sensatez dos generais.


Na verdade, por trás dos acontecimentos se oculta a lógica interna do bolsonarismo, a do agravamento constante da crise. Em meio à pior fase da pandemia – uma média de cerca de 3 mil brasileiros morre a cada dia de covid-19 – Bolsonaro invoca um conflito com os máximos escalões militares, por supostamente não serem suficientemente fiéis ao regime.

Não é uma ruptura com os militares, em si, mas sim com os velhos senhores do Supremo Comando. Ao mesmo tempo, é um sinal para que os escalões mais jovens, mais baixos e também mais politicamente radicais, se atrelem mais firme ao presidente. "Esta é a tua chance", é a mensagem aos oficiais cujo entusiasmo por Bolsonaro era, desde o início, maior do que o dos generais, para quem o capitão da reserva era antes um bizarro estranho no ninho.

O cancelamento dos três chefes de armas aponta, ao mesmo tempo, para uma radicalização ainda maior do bolsonarismo. Para ele, já não basta mais procurar seus inimigos do lado de fora, ou seja, na esquerda. Agora é excluído quem não seja suficientemente bolsonarista.

Já foi assim com diversos ex-ministros, sendo os exemplos mais notórios os ex-chefes de pasta da Justiça Sérgio Moro e da Saúde Henrique Mandetta. Hoje, eles são vistos no movimento bolsonarista como traidores e infiltrados pela esquerda.

A ação de faxina continua agora com os veteranos militares. Quem expresse crítica ou hesitação é isolado e condenado como herege pelos tribunais bolsonaristas nas redes sociais. Desse modo, o bolsonarismo se encurrala cada vez mais – o que não é o prenúnco de nada de bom: o movimento deve se tornar mais paranoico, mais incalculável e mais perigoso.

Do outro lado dos turbulentos acontecimentos da semana corrente, estão os militares, que são saudados de todos os lados com atestados de responsabilidade político-estatal, mesmo por parte das forças esquerdistas e moderadas. Mas a verdade é que as Forças Armadas até hoje fomentam o circo bolsonarista.

Segundo o Tribunal de Contas, mais de 6 mil militares têm cargos no governo – mais da metade do que sob o presidente Michel Temer, que começou com a nomeação em massa dos uniformizados. Outra estimativa chega a 342 militares nos postos mais altos e mais bem pagos da já gigantesca maquinaria governamental de Brasília.

Eles estão por toda parte, do palácio presidencial aos órgãos ambientais, passando pelo Ministério da Saúde, e comandam quase um terço das firmas estatais. Não é sem motivo que observadores comparam o quadro ao da Cuba ou da Venezuela, onde numerosas empresas estão nas mãos dos militares.

Por isso não se pode falar de um racha entre as Forças Armadas e Bolsonaro. Nos pontos políticos fundamentais, reina consenso: a interpretação da ditadura militar como revolução necessária para deter o comunismo; o total rechaço de um processamento judicial da ditadura; o prosseguimento da ocupação e exploração da Amazônia, também das reservas indígenas; e, claro, a entrega dos cargos lucrativos aos homens de uniforme.

Portanto a explicação das renúncias dos chefes militares é menos uma questão de diferenças de opinião fundamentais do que de considerações táticas. Os militares procuram se distanciar da catastrófica política de Bolsonaro na crise do coronavírus.

Até alguns dias atrás, essa política ainda era codefinida pelo general Eduardo Pazuello, enquanto ministro da Saúde. Agora os generais parecem ter notado que, em algum momento, poderão ser responsabilizados pelos cerca de 3 mil brasileiros mortos diariamente.

Sobretudo os conservadores queriam ver, até agora, os militares como força equilibradora no governo Bolsonaro. Ao contrário dos ideólogos (malucos) encabeçados pela ministra da Família Damares Alves, e do ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo (agora afastado), os uniformizados teriam um efeito moderador e procurariam soluções pragmáticas.

Essa lenda não é mais sustentável desde a pandemia de covid-19. O Brasil está diante de uma catástrofe do sistema de saúde pela qual é o próprio culpado. As Forças Armadas aparentemente agora querem fazer de conta que não têm qualquer responsabilidade por isso. Para Bolsonaro, a confusão resultante é a chance de ocupar com seus acólitos cargos importantes no aparato militar.

O caos é uma escada. Por ela se sobe, até que se despenca. A escada de Bolsonaro balança, mas ele ainda continua subindo.

Corretor da matança


Essa política de isolamento, toque de recolher, supressão do direito de ir e vir extrapola em muito até mesmo um Estado de Sítio. Apelo a todas as autoridades do país que revejam essa política e permitam que o povo vá trabalhar
Jair Bolsonaro

Bolsonaro entre seus fantasmas

O país passou o dia 31 de março cercado de fantasmas do passado, que o presidente convocou e aos quais vive agarrado. Assombrou a democracia com uma crise militar plantada num dia emblemático, quando todos viviam um momento dilacerante da pandemia. O Brasil não sabe mais onde enterrar seus mortos, o ministro da Saúde pede para se “racionar” o oxigênio, hospitais fecham emergências por incapacidade de atendimento e Jair Bolsonaro nos atormenta.

Foi patética a apresentação dos novos comandantes. Toda a cena — na verdade, todo o episódio — lembrava os piores momentos da ditadura. O país não foi informado sobre o que levou o presidente a demitir o ministro da Defesa e os três comandantes das Forças. A democracia exige transparência dos atos do setor público. O general Braga Netto fez um discurso em cadência castrense, curto e ambíguo. Os três se perfilaram como na frente de um pelotão e saíram sem dar palavras. Toda a cerimônia durou 2 minutos e 30 segundos. Isso depois de uma Ordem do Dia cheia de mentiras sobre os fatos históricos.


O que Bolsonaro quis com tudo isso? Ele criou esse estridente ruído no 31 de março, data que venera, deliberadamente. Os militares da ativa garantem aos seus interlocutores que as Forças Armadas continuarão evitando a politização nos quartéis. Mas, para Bolsonaro, não importa o que é, e sim o que parece ser. Ele quis dar a impressão de que pode fazer o que quiser com o “seu” Exército, “suas” Forças Armadas. Ele quer que acreditem que elas estão alinhadas a ele.

Bolsonaro é comandante em chefe das Forças Armadas, como foram Dilma Rousseff, Lula, Fernando Henrique e Michel Temer. Como me disse um general esta semana, “prestamos as homenagens ao cargo, mas é absurdo pensar em alinhamento ao governo em si”. Bolsonaro quer mostrar que está tudo controlado, porque isso deixa a sua turba exultante, e os adversários, acuados. Os extremistas que o seguem, como lobotomizados, tinham sofrido um revés. A demissão de Ernesto Araújo foi imposta a Bolsonaro pelo Senado. Para não parecer derrotado, ele criou uma crise militar.

O alvo dele era o general Edson Pujol. Ele queria uma vassalagem digital que Pujol não quis dar, mas que o Brigadeiro Batista Jr., o novo comandante da Aeronáutica, já oferece. Ativo na rede social, o brigadeiro tem postagens identificadas com os bolsonaristas. Havia um outro problema com Pujol. A inveja de Bolsonaro. Segundo explicação de quem está bem perto do presidente: “É briga antiga. Pujol é um destaque inconteste pois além de excelente aluno realizou todos os cursos operacionais. Alia o físico ao intelecto.” Bolsonaro fracassou na carreira militar, como se sabe. E fracassa como presidente porque, na explicação de um general que conviveu com ele, falta ao presidente qualquer “noção institucional”. Bolsonaro não entendeu a função de cada instituição ou cada órgão de governo.

Os brasileiros estão morrendo aos milhares. Ontem foram 3.950, novo recorde diário. Somos, há vários dias, o país onde mais se morre por Covid-19. A pandemia está fora de controle. O Brasil vive dor excruciante. A culpa maior é de Bolsonaro. Essa última crise, artificial e desnecessária, foi criada por ele no momento em que o país virou uma aberração diante do mundo. Trocar comandantes das Forças Armadas no meio de uma pandemia é o retrato de um país caótico. E ele insiste. Ontem, logo depois da primeira reunião do comitê de coordenação para o enfrentamento da Covid, o presidente apareceu dizendo que era preciso mandar “o povo trabalhar”.

No discurso, Braga Netto disse que o dia era histórico. Segundo o ministro, as “Forças Armadas não faltaram no passado e não faltarão agora” e vão garantir “os poderes constitucionais e as liberdades democráticas”. Na Ordem do Dia, Braga Netto havia defendido “celebrar” o “movimento de 64”, que teria garantido “as liberdades democráticas que hoje desfrutamos”. Isso é mentira. Várias mentiras numa ordem só. A verdade: foi um golpe que gerou 21 anos de ditadura e a liberdade de hoje é resultado da luta contra aquele regime. A garantia dessa liberdade vem, claro, da Constituição, à qual as Forças Armadas estão submetidas. Em que democracia do mundo se permite que o governo mande celebrar um golpe militar? Quanta infâmia o país ainda vai tolerar?

Tudo isto aconteceu

(...) Tenho poucas provas directas de atrocidades cometidas na Guerra Civil espanhola. Sei que algumas foram da responsabilidade dos republicanos, e muitas mais (que ainda prosseguem) forma cometidas pelos fascistas. Mas o que me impressionou então, e impressiona ainda, é que se dê ou não crédito a atrocidades unicamente em função de simpatias políticas. Toda a gente acredita nas atrocidades do bando inimigo e recusa acreditar nas atribuídas ao seu, sem se dar ao trabalho de examinar os indícios. Recentemente , uma tabela de atrocidades cometidas entre 1918 e o presente; não houve um único ano em que não se tivessem cometido atrocidades em qualquer lugar do mundo, e dificilmente se encontra um caso em que a esquerda e a direita tivessem dado crédito simultaneamente aos mesmos relatos. Mais estranho ainda é que a qualquer momento a situação pode inverter-se rapidamente e a atrocidade que ontem era dada como absolutamente provada pode hoje ser tida como uma mentira ridícula, simplesmente porque a paisagem política se alterou.


Na guerra actual , encontramo-nos na curiosa situação de a nossa campanha de propaganda por meio de difusão de atrocidades ter sido largamente efectuada antes do início da guerra e sobretudo pelos esquerdistas , que normalmente se orgulham da sua incredulidade. Durante o mesmo período, a direita responsável pelas atrocidades de 1914-18, olhava para a Alemanha nazi e recusava-se terminantemente a ver no país qualquer mal. Depois, assim que rebentou a guerra, foram os pró-nazis de ontem quem começou a repetir histórias de horror, enquanto os antinazis se puseram de súbito a questionar se a Gestapo existia realmente. Esta atitude não se devia apenas ao Pacto Germano-Soviético. Devia-se em parte ao facto de até 1939 os esquerdistas terem acreditado, erradamente, que a Grã- Bretanha e a Alemanha jamais entrariam em guerra, o que lhes permitia serem simultaneamente antibritânicos e antigermânicos; e em parte à propaganda de guerra oficial, cuja chocante hipocrisia e pretensão se superioridade moral tendem a levar a classe pensante a identificar-se com o inimigo. Parte do preço que pagámos pelas sistemáticas mentiras de 1914-18 foi a exagerada reacção germanófila que se seguiu. Entre 1918 e 1933, nos círculos de esquerda , éramos vaiados se sugeríssemos que a Alemanha tivera alguma responsabilidade pelo deflagrar da guerra. Em todas as denúncias do Tratado de Versalhes que ouvi durante esses anos, penso que nem por uma vez ouvi perguntar, e muito menos discutir a questão: " O que teria acontecido se tivesse sido a Alemanha a ganhar ?" O mesmo sucede com as atrocidades. A verdade, sente-se, torna-se mentira quando é o nosso inimigo a pronunciá-la. Recentemente, reparei que as mesmas pessoas que engolem todo e qualquer relato de horror a respeito de japoneses em Nanquim em 1937, recusam dar crédito a relatos similares a respeito de Hong Kong em1942. Havia até uma certa tendência a acreditar que as atrocidades de Nanquim se haviam tornado , por assim dizer , retrospectivamente falsas pelo facto de o governo britânico ter chamado agora a tenção para elas.

Mas infelizmente a verdade sobre atrocidades é muito pior do que o facto de serem objecto de mentiras e transformadas em propaganda. A verdade é que elas acontecem. O facto que amiúde se invoca como motivo de cepticismo -o de que os mesmíssimos relatos de horror tendem a reaparecer em todas as guerras - apenas torna mais provável que esses relatos sejam verdadeiros. Claramente, trata-se de fantasias muito comuns, e a guerra fornece o ensejo de as pôr em prática. Além disso, e apesar de já não estar na moda dizê-lo , não há grandes dúvidas de que aquilo a que podemos chamar , grosso modo, os " brancos" cometem muitas e mais graves atrocidades do que os "vermelhos". Não existe a menor dúvida , por exemplo, a respeito do comportamento dos japoneses na China. Tal como não há a menor dúvida a respeito da longa lista de selvajarias fascistas cometidas na Europa durante os últimos dez anos . O volume de testemunhos é enorme e uma respeitável proporção deles provém da imprensa e rádio alemãs. Estas coisas aconteceram realmente e é isso que temos de ter em mente. Aconteceram, apesar de Lord Halifax ter dito que aconteceram. As violações e morticínios nas cidades chinesas, as torturas nas caves da Gestapo, os professores idosos judeus atirados para fossas, o metralhamento de refugiados nas estradas espanholas - tudo isto aconteceu, e não é menos real pelo facto de o Daily Telegraph o ter descoberto de repente, com cinco anos de atraso.
George Orwell, "Ensaios Escolhidos"