Na guerra actual , encontramo-nos na curiosa situação de a nossa campanha de propaganda por meio de difusão de atrocidades ter sido largamente efectuada antes do início da guerra e sobretudo pelos esquerdistas , que normalmente se orgulham da sua incredulidade. Durante o mesmo período, a direita responsável pelas atrocidades de 1914-18, olhava para a Alemanha nazi e recusava-se terminantemente a ver no país qualquer mal. Depois, assim que rebentou a guerra, foram os pró-nazis de ontem quem começou a repetir histórias de horror, enquanto os antinazis se puseram de súbito a questionar se a Gestapo existia realmente. Esta atitude não se devia apenas ao Pacto Germano-Soviético. Devia-se em parte ao facto de até 1939 os esquerdistas terem acreditado, erradamente, que a Grã- Bretanha e a Alemanha jamais entrariam em guerra, o que lhes permitia serem simultaneamente antibritânicos e antigermânicos; e em parte à propaganda de guerra oficial, cuja chocante hipocrisia e pretensão se superioridade moral tendem a levar a classe pensante a identificar-se com o inimigo. Parte do preço que pagámos pelas sistemáticas mentiras de 1914-18 foi a exagerada reacção germanófila que se seguiu. Entre 1918 e 1933, nos círculos de esquerda , éramos vaiados se sugeríssemos que a Alemanha tivera alguma responsabilidade pelo deflagrar da guerra. Em todas as denúncias do Tratado de Versalhes que ouvi durante esses anos, penso que nem por uma vez ouvi perguntar, e muito menos discutir a questão: " O que teria acontecido se tivesse sido a Alemanha a ganhar ?" O mesmo sucede com as atrocidades. A verdade, sente-se, torna-se mentira quando é o nosso inimigo a pronunciá-la. Recentemente, reparei que as mesmas pessoas que engolem todo e qualquer relato de horror a respeito de japoneses em Nanquim em 1937, recusam dar crédito a relatos similares a respeito de Hong Kong em1942. Havia até uma certa tendência a acreditar que as atrocidades de Nanquim se haviam tornado , por assim dizer , retrospectivamente falsas pelo facto de o governo britânico ter chamado agora a tenção para elas.
Mas infelizmente a verdade sobre atrocidades é muito pior do que o facto de serem objecto de mentiras e transformadas em propaganda. A verdade é que elas acontecem. O facto que amiúde se invoca como motivo de cepticismo -o de que os mesmíssimos relatos de horror tendem a reaparecer em todas as guerras - apenas torna mais provável que esses relatos sejam verdadeiros. Claramente, trata-se de fantasias muito comuns, e a guerra fornece o ensejo de as pôr em prática. Além disso, e apesar de já não estar na moda dizê-lo , não há grandes dúvidas de que aquilo a que podemos chamar , grosso modo, os " brancos" cometem muitas e mais graves atrocidades do que os "vermelhos". Não existe a menor dúvida , por exemplo, a respeito do comportamento dos japoneses na China. Tal como não há a menor dúvida a respeito da longa lista de selvajarias fascistas cometidas na Europa durante os últimos dez anos . O volume de testemunhos é enorme e uma respeitável proporção deles provém da imprensa e rádio alemãs. Estas coisas aconteceram realmente e é isso que temos de ter em mente. Aconteceram, apesar de Lord Halifax ter dito que aconteceram. As violações e morticínios nas cidades chinesas, as torturas nas caves da Gestapo, os professores idosos judeus atirados para fossas, o metralhamento de refugiados nas estradas espanholas - tudo isto aconteceu, e não é menos real pelo facto de o Daily Telegraph o ter descoberto de repente, com cinco anos de atraso.
George Orwell, "Ensaios Escolhidos"
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