sábado, 28 de agosto de 2021

Pensamento do dia

 


Basta de agosto: primavera já!

“O Rio amanheceu cantando / toda a cidade amanheceu em flor/ os namorados vão pra rua em bandos / porque a primavera é a estação do amor.”

Amanheci com a voz de Dalva de Oliveira na cabeça cantando os versos de Braguinha, mas eles não me levaram a esse tempo de ventura que não vivi, mas ao próximo setembro, por todos os motivos que tenho para esperá-lo, para antecipar a chegada da primavera. Ao menos como metáfora.

É a esperança que a vacinação continue avançando, que cada um faça o que tem que ser feito, que aos poucos a vida volte a florescer depois da devastação da peste, é o que o mundo espera. É o que sempre acontece depois de guerras e epidemias. Embora no Brasil tudo seja mais difícil, com a economia em frangalhos, transformado em um pária internacional, sob ameaças de um golpe de Estado que ou vira uma ditadura ou uma inconcebível guerra civil (entre o Exército e a Polícia Militar?), ou fica como mais uma bravata irresponsável para tentar intimidar a oposição, o Congresso e o Judiciário. E incendiar suas legiões de fanáticos e suas milícias digitais, que as pesquisas estimam em torno 25% da população. Não é pouca gente. Mas é bem menos que os 65% que rejeitam Bolsonaro. Seria uma novidade: um golpe da minoria contra a maioria absoluta.


Quem consegue imaginar os comandantes das Forças Armadas, com 30 anos de estudos e serviços, apoiando uma ditadura do Jair? O que aconteceria se Bolsonaro tivesse poder para fazer o que quer sem o Congresso e o STF para atrapalhar? É só lembrar algumas de suas tentativas subversivas que foram barradas por tribunais, pela Câmara e pelo Senado. Sem controle, teria obrigado os estados a tratamento da Covid-19 com cloroquina e ivermectina, não teria comprado as vacinas porque não acreditava nelas, submeteria o Brasil a uma imunidade de rebanho como se fosse gado em que alguns têm que morrer para a sobrevivência da manada. Proibiria lockdowns e isolamentos. Por ignorância e má-fé proibiria o trabalho remoto. ( “O presidente da Petrobras que eu demiti ficou dez meses em casa sem trabalhar”). Liberaria a venda de armas para milícias populares inspiradas nas brigadas chavistas. Obrigaria os presidentes dos três poderes a abrir suas sessões com uma oração. Teria nomeado o filho Eduardo embaixador em Washington e arquivado todos os processos contra o filho Flávio. Teria fechado a TV Globo e aposentado metade do Supremo para substitui-los por “gente nossa”, seguindo a receita de Hugo Chávez de minar a democracia por dentro, corrompendo as instituições.

O curioso é que ao mesmo tempo em que é demonizado pelo bolsonarismo como comunista, o bolivariano virou um modelo para o capitão, que está tentando se tornar uma espécie de Chávez de baixo coturno, mas sem a inteligência, o carisma e a coragem do coronel.

Qual pesadelo pode ser pior: um chavismo de esquerda ou de direita?

Triunfo eleitoral, cada vez mais distante, sempre foi o plano B de Bolsonaro

Munique tornou-se, desde setembro de 1938, um nome polissêmico. A capital da Baviera alemã passou a evocar “apaziguamento” e, ainda, “traição”. No Brasil de hoje, Munique é Brasília, desde que o comando do Exército recusou-se a punir Eduardo Pazuello. Dependendo da conclusão do caso do coronel Aleksander Lacerda, logo será São Paulo.

No Rio de Janeiro, em 23 de maio, Bolsonaro pronunciou um discurso subversivo, em ato de rua. Ao seu lado, no palanque, estava Pazuello, que também discursou. Duas semanas depois, uma nota do Exército comunicou o arquivamento do processo administrativo instaurado contra o general da ativa.

Munique: Neville Chamberlain e Édouard Daladier entregaram os Sudetos a Adolf Hitler. Brasília: Paulo Sérgio de Oliveira jogou à lata de lixo o Regulamento Disciplinar do Exército que proíbe manifestações públicas políticas de militares de ativa.

O “chavismo de direita” de Bolsonaro, na precisa expressão de Rodrigo Maia, subverte a ordem democrática na tentativa de dissolver a fronteira legal que separa os homens em armas da atividade política. O triunfo eleitoral, horizonte cada vez mais distante, sempre foi o plano B do presidente. Seu plano A é um golpe de Estado: a submissão do Judiciário e do Congresso ao “meu Exército”.

O “meu Exército” bolsonarista não é o Exército brasileiro, mas uma milícia nucleada por militares amotinados. A agitação subversiva no interior das Forças Armadas ainda não ganhou tração, apesar do espaço aberto pelo apaziguamento do comandante do Exército. Nas polícias militares, porém, ergue-se um Partido Bolsonarista cujos contornos delineiam-se com nitidez às vésperas dos atos golpistas de 7 de Setembro.

Nas quase 400 mensagens que publicou em agosto, o militante bolsonarista Aleksander Lacerda, que veste uniforme de coronel da PM, insultou reiteradamente o governador paulista e o presidente do Senado. Mas, sobretudo, convocou seus “amigos” —ou seja, os 5.000 policiais de sete batalhões que comandava— aos atos subversivos.

Não são gestos de um solitário desvairado, mas lances de uma estudada provocação. Lacerda testava os limites, investigava a firmeza da coluna vertebral de João Doria. Sua conclusão provisória é que São Paulo pode ser Munique.

“Ele tem de ser severamente punido sob o ponto de vista administrativo e sob o ponto de vista penal-militar. Se não, vamos instalar a balbúrdia na instituição”, alertou o coronel Glauco Carvalho, ex-comandante de policiamento da capital do estado.

Doria, porém, preferiu classificar o comportamento de Lacerda como “inadequado” e afastá-lo de seu comando, entregando-o à Corregedoria da PM. A “balbúrdia” está a apenas um tiro de distância.

O STJ (Superior Tribunal de Justiça) já firmou entendimento de que governadores têm a prerrogativa de expulsar oficiais da PM, via processo administrativo, sem prejuízo de julgamento pela Justiça Militar. Contudo, em São Paulo, o apaziguamento começa a fazer seu curso. Simulando cegueira, Doria descreveu a conclamação de Lacerda ao motim como um “fato pontual”.

Enquanto o governador praticamente encerrava o assunto, a facção bolsonarista da PM paulista organizava caravanas de ônibus de policiais que, à paisana, pretendem participar das manifestações do 7 de Setembro.

“A solução do problema da Tchecoslováquia é o prelúdio de um acordo mais amplo pelo qual toda a Europa pode encontrar a paz”, declarou Chamberlain ao retornar de Munique. Segundo a teoria do apaziguamento, a paz vale a traição. Trump e Biden aplicaram a tese ao Talibã, assinando um acordo pelo qual o governo afegão libertou 5.000 combatentes inimigos, que retornaram de imediato ao campo de batalha.

“Vocês tiveram a escolha entre guerra e desonra. Escolheram a desonra, e terão a guerra”, fulminou o sucessor de Chamberlain. Cabul caiu 16 meses após o acordo. Hitler atacou um ano após Munique.

Um golpe em marcha

Bolsonaro não se preparou para governar, sua intenção desde o início foi produzir as condições para uma ruptura institucional, numa espécie de saudosismo de 1964. Tais condições pareciam ser uma radicalização nas pautas morais e reacionárias e a construção de uma narrativa, na qual o miliciano que ocupa a presidência, estaria sendo impedido de governar pela interferência de outros poderes, o Legislativo e o Judiciário.

As coisas não aconteceram como imaginava o presidente de extrema direita por alguns motivos. Em primeiro lugar, a ruptura institucional que levaria a um governo de força necessitaria de dois apoios essenciais: o grande capital e as Forças Armadas. Temos afirmado que em nenhum desses polos o presidente teria um respaldo homogêneo. A grande burguesia monopolista se divide entre a manutenção do presidente, que opera sua pauta, e a necessidade de afastá-lo porque o mandatário e suas intenções rupturistas criam uma grande instabilidade, que prejudica o bom andamento da mesma pauta. As Forças Armadas transformaram-se em avalista do presidente, uma espécie de garantia ao grande capital e aos outros poderes de que o presidente se manteria no cercadinho da institucionalidade apesar de suas bravatas. Os militares são mais que avalistas, participam diretamente do governo e tem demonstrado que seus interesses extrapolam o corporativismo e se aproximam de interesses econômicos e políticos que compartilham com o bolsonarismo.

Este jogo de forças produziu um pacto protagonizado pelos militares, o Judiciário e o Legislativo que manteve até agora o miliciano. O descontrole da pandemia, os desvios e desmandos na vacinação e a Comissão Parlamentar de Inquérito jogaram água no moinho daqueles que querem ao afastamento do presidente, ou desgastá-lo para buscar uma alternativa em 2022. O problema é que quanto mais o cerco se fecha, mais o presidente ameaça uma ruptura. A grande questão é, portanto, se o miliciano no governo tem ou não condições de desfechar seu golpe e efetivá-lo na formação de um governo de força, mesmo sem o apoio ou respaldo integral do grande capital, que parece preferir uma continuidade institucional que o favorece e não parece ameaçada em 2022.


Esta não é uma questão tão simples. Acredito que a resposta tem que partir de duas constatações: primeiro, o presidente tem meios de iniciar uma ruptura e provocar uma fratura com consequências imprevisíveis; segundo, talvez, o golpista não tenha apoio para efetivar o golpe em um novo governo fundado numa institucionalidade de exceção.

Vamos nos deter, primeiramente, no plano que parece estar em andamento e verificar se os recursos disponíveis permitem a aventura golpista. O presidente tem demonstrado ser incontrolável, isto é, os que defendem a continuidade do pacto tendem a perder espaço para a polarização que colocara em rota de colisão os que estão com Bolsonaro e os que estão contra ele. Paralelamente, o governo de extrema direita acentuará as tensões e a narrativa de uma conspiração, convocando sua base social e política para checar as forças que dispõe. Por enquanto, e isto pode mudar, o governo dispõe dos votos necessários para barrar um processo de impedimento na Câmara dos Deputados. No entanto, diante de um relatório final da CPI que, ao que se supõe, indica o indiciamento do presidente por um certo número de delitos, pode haver um deslocamento desta camada fisiológica que não guarda nenhuma coerência a não ser com sua própria sobrevivência.

Ao nosso ver, o isolamento do presidente e a possibilidade de deposição são os gatilhos para o plano já em andamento. Caso sobreviva ao impedimento, o pretexto seria a mítica possibilidade de fraude nas eleições na ausência de um voto impresso. Seja como for, a ameaça de ruptura permanece como uma ameaça constante. Como dissemos, a aparência da figura tosca e aparvalhada no ato de governar não pode obscurecer a capacidade do conspirador e dos meios que dispõe para agir.

Assusta-me a confiança que os setores políticos, incluindo aí a centro esquerda que acomodou-se ao campo institucional da ordem burguesa, tem na solidez de um regime político que aponta sérios indícios de corrosão eminente. Tal postura esta na base da inação que espera que o calendário e as eleições de 2022 chegue como solução redentora, independente do atual presidente chegar ou não em pé no pleito.

Essa convicção trabalha apenas com alguns fatores, todos eles no campo da institucionalidade, até porque ela mesma – a centro esquerda – escolheu esse campo e abdicou de qualquer outra via de enfretamento e de busca pelo poder do Estado. Entretanto, este recuo e a abdicação ao uso da força foram unilaterais. As classes dominantes nunca o fizeram, certamente a extrema direita nunca o fez. As classes dominantes e suas personificações políticas, midiáticas, jurídicas, operam um sofisticado esquema que navega dentro e fora da institucionalidade e mesmo da legalidade, estão sempre preparadas e dispõe de recursos para garantia da ordem. Quando acreditaram ser necessário operaram um golpe fundado em uma escandaloso casuísmo jurídico, seja pelo pretexto das pedaladas que afastaram a presidente eleita em 2014 ou a farsa jurídica que afastou o ex-presidente Lula da disputa eleitoral de 2018.

Por seu lado, o bolsonarismo que dirige sua intencionalidade na ruptura, centra suas preocupações na aglutinação de recursos de força. Acobertado pelo pacto que lhe deu uma sobrevida institucional, o miliciano se aproveita dos termos do pacto para manter-se enquanto prepara essa ruptura. E como ela estaria sendo construída?

Para seu intento o bolsonarismo precisa de um certo apoio popular e de esquemas armados. É verdade que, no que tange à popularidade, o presidente perdeu espaço, mas arrisco dizer que o núcleo central do apoio de massas do bolsonarismo ainda sobrevive. O pacto que pretendia controlá-lo golpeou não mais que superficialmente as máquinas de fake news e os meios de manipulação em massa, por exemplo, em certos setores evangélicos. Ao lado disso, existe o apoio das milícias, de parte dos aparatos policiais e de segmentos das Forças Armadas.

Na lógica do miliciano, o país está dividido e a crise gera condições de polarização e confronto que serão decididas pela força. Na famosa reunião ministerial que se tornou pública, o presidente insistiu na ideia do armamento de setores da população, claramente vinculando esse armamento à defesa da população contra uma ditadura. Agora convoca seus apoiadores para sair em defesa daquilo que ele denomina de um “contragolpe”, reforçando a narrativa segundo a qual estaria em marcha um golpe do judiciário para afastá-lo.

Um dado deve ser considerado neste possível cenário. Houve um enorme crescimento no número de registros de armas no Brasil no atual governo, que, como sabemos, tentou sempre que pôde facilitar o acesso às armas. O número de registros de armas na Polícia Federal passou de 637.972 pedidos em 2017 para 1.056.670 pedidos em 2019 e 1.279.941, em 2020. Só no Distrito Federal, esses pedidos de registros saltaram de 35.693 para 236.296, num crescimento de 562%. Os pedidos de registro, que em 2018 eram de 46 armas por dia, saltaram para 378 pedidos diários em 2019. Sabemos que ao lado dos pedidos legais dos chamados cidadãos de bem, as milícias tem outras fontes de armamento, como parece indicar o arsenal descoberto na casa vizinha à do presidente em seu condomínio no Rio.

Ao meu ver, isto significa que a convicção de certos segmentos políticos de que o golpe estaria descartado pela falta de respaldo político (seja no Parlamento ou no grande capital), ou pela ação do poder judiciário como guardião de uma ordem constitucional estabelecida, apresenta-se como uma grossa ingenuidade. Os que planejam golpes devem levar em conta respaldos políticos, mas sabem que a ação de força é decisiva. Creio que o bolsonarismo aposta nesse cenário e na ideia de que, uma vez dada a partida para uma confrontação armada, econseguirá o apoio que lhe falta. Existe a possibilidade do blefe, isto é, o bolsonarismo não contaria com o apoio que alardeia nas milícias, corporações policiais e nas Forças Armadas. No entanto, para seu intento, bastaria que segmentos destas corporações se movessem e que os demais não tivessem disposição em promover a resposta armada em defesa de uma ordem política em ruínas.

Resta a posição dos interesses econômicos dominantes. Acredito que o grande capital, por ora, opera na intencionalidade de manter a ordem política e institucional vigente, no entanto não podemos desconsiderar a variada gama de formas políticas aos quais estes interesses se acomodam. O grande capital se desenvolveu satisfatoriamente durante a Ditadura Militar inaugurada em 1964, sobreviveu à sua queda e encontrou um terreno favorável à acumulação durante a transição controlada e sob tutela militar, e mesmo no máximo desenvolvimento de uma democracia limitada nos governos do PT. Por que não buscaria entender-se com um governo de extrema direita à cabeça de um Estado forte se este acabasse por se impor pela força? O capital não tem princípios, tem interesses.

Há um golpe em marcha. Ele pode fracassar, pode não passar de um blefe ou pode ser uma vitória de Pirro, na qual o golpista não consegue montar no tigre que pretendia cavalgar. A institucionalidade burguesa pode se antecipar e frustrar a tentativa golpista, afastando o presidente e prendendo os que iniciarem alguma ação mais decisiva de reação. É possível. Mas, até agora, há um golpe em marcha, de um lado os que apostam no conflito e se armam, de outro aqueles que já preparam uma Ação Direta de Inconstitucionalidade para ser enviada a um Supremo Tribunal Federal que pode não mais estar lá para recebê-la.

Brasil pela bola 7

 


Debate que apequena

Democracia é essencialmente o regime do diálogo, da negociação, da busca do consenso, a partir da escolha do povo. É a política do debate. O problema é que há debates que engrandecem democracias e seus atores; outros apequenam. Muita gente acreditou que, ao fim da longa temporada de doença, luto e crises decorrentes da pandemia, o mundo e o Brasil, em particular, sairiam melhores, amadurecidos, fortalecidos. É verdade que organizações da sociedade civil se reaproximaram e assumiram o protagonismo em ações humanitárias de enfrentamento à Covid-19. Está claro que atribuições — à frente, saúde e assistência social — de um Estado intensamente demonizado em anos anteriores foram reconhecidas e, hoje, são cobradas. Mas, ao fim da jornada, sairemos mais exauridos que satisfeitos, mais esfarrapados que aprumados, mais famintos que saciados. Sairemos menores.

Não há como fingir que não foi devastador perder dois, três, talvez quatro anos reiniciando debates sobre temas superados, pacificados, resolvidos, à luz de pactos civilizatórios há muito firmados. O Brasil sob Jair Bolsonaro e seu grupo político implodiu qualquer traço de normalidade democrática. Hoje, gastamos tempo que não temos em discussões que, um par de anos atrás, eram completamente irrelevantes. Quase três décadas e meia depois de promulgada a atual Constituição, somos obrigados a lembrar que democracia é inegociável e tem de haver harmonia e independência entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Como numa classe de alfabetização cidadã, temos de explicar que ofender e ameaçar ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) não é liberdade de expressão, mas ataque às instituições.


Mais de meio milênio depois da chegada dos colonizadores, a Justiça é chamada a decidir se o direito dos povos indígenas sobre terras que ocupavam antes de o Brasil ser Brasil terminou com a entrada em vigor da última Carta Magna. É disso que trata o marco temporal que o STF volta a julgar em 1º de setembro. O mundo todo, boquiaberto, vê a Amazônia ser derrubada e incendiada com a anuência do governo. O debate se apequena quando a ministra da Mulher quer impor a maternidade a uma criança de 11 anos, que engravidou de um estupro; ou determina que meninas vestem rosa, e meninos azul.

Quando a pandemia completou um ano, Ana Paula Lisboa, amiga querida, colunista no Segundo Caderno, expressou num encontro virtual o espanto com a polêmica brasileira sobre uso de máscara como medida não farmacológica para conter a transmissão da Covid-19. Ela vive em Luanda, capital angolana, há quatro anos e contou que lá máscara não é tema de debate: “As pessoas usam”. No Brasil, um quarto da população completamente imunizada, variante Delta do coronavírus em acelerada multiplicação, e o presidente da República cobra do ministro da Saúde o uso facultativo da proteção. Diariamente, repetimos que haver mais de 577 mil pessoas mortas pela pandemia é inaceitável.

Nos dois anos e meio do atual governo, fomos levados a explicar por que brasileiros como Elza Soares, Martinho da Vila, Benedita da Silva, Gilberto Gil, Zezé Motta, Conceição Evaristo são dignos de reconhecimento pela Fundação Cultural Palmares. E a reagir à inclusão do Palácio Gustavo Capanema, joia da arquitetura modernista, numa lista de imóveis da União a ser privatizados. É cansativo lidar com gestores públicos que não sabem a diferença entre bem imobiliário e patrimônio histórico; desprezam a relevância da cultura, das artes, do carnaval.

Cá estamos a produzir estudos e resgatar evidências de que flexibilizar o acesso a armas de fogo não diminuiu a violência, aumentou. Estamos em 2021 fazendo pessoas submetidas à tortura, à brutalidade do regime militar revisitar suas dores, exumar seus mortos para provar que houve ditadura no Brasil de 1964 a 1985. Temos de repetir que o Estado é laico e que Forças Armadas a ele se subordinam.

Somos impelidos a ensinar ao ministro da Economia que pobres não podem se alimentar de sobras; inflação de 7% é jogo perigoso para um país engolfado pelo desemprego, pela informalidade, pela fome; 52% de aumento na bandeira tarifária que onera a conta de luz é uma barbaridade. Precismos ensinar ao titular da Educação que crianças com deficiência têm de ir à escola, educação é direito constitucional de todos os brasileiros, e universidade não é para poucos.

Sairemos exauridos, minúsculos. E com muito trabalho pela frente.

A verdade dividida

A porta da verdade estava aberta
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só conseguia o perfil da meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia os seus fogos.
Era dividida em duas metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era perfeitamente bela.
E era preciso optar. Cada um optou
conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

Carlos Drummond de Andrade, "Contos Plausíveis"

O problema de Bolsonaro é que não aprendeu nada e nada esqueceu

Ou o quadro mental do presidente Jair Bolsonaro é para lá de preocupante como admitem alguns dos seus auxiliares, segundo o jornalista William Waack, apresentador da CNN Brasil, ou Bolsonaro, e somente ele, enxerga alguma vantagem em continuar se comportando do modo ensandecido como o faz.

Antes de viajar a Goiânia para mais uma solenidade militar (foram nove até aqui em agosto), ele recomendou aos devotos com os quais se reúne diariamente à saída do Palácio da Alvorada:

“Tem que todo mundo comprar fuzil, pô. Povo armado jamais será escravizado. Eu sei que custa caro. Tem um idiota: ‘Ah, tem que comprar é feijão’. Cara, se não quer comprar fuzil, não enche o saco de quem quer comprar.”


Mais fuzil, menos feijão – eis a nova receita econômica e institucional do presidente. O que pretende com isso? Apenas estimular os instintos mais primitivos dos seus fiéis seguidores para não perdê-los? Desviar a atenção do aumento do custo de vida? Ou é só mais uma prova do seu desequilíbrio mental?

De agosto de 2020 a agosto que chega ao fim, o preço da energia elétrica aumentou 20,4% contra 9,3% da inflação; o do feijão, 11%; arroz, 37%; gasolina, 39%; diesel, 35%; botijão de gás, 31%. Em julho do ano passado, o brasileiro trabalhou 12 dias para comprar a cesta básica. Em julho deste ano, 14 dias.

Nos tempos antigos, quando não havia pesquisas de opinião pública nem outros meios de se avaliar o humor das pessoas, os políticos mais experientes se limitavam a perguntar: o custo de vida aumentou ou diminuiu? Se diminuiu, o governo ganhará a próxima eleição; se aumentou, perderá. Era simples assim.

E, de certa forma, não deixou de ser. Essa é a âncora mais pesada que Bolsonaro arrasta no momento, e nada indica que deixará de ser até onde a vista alcança. Sem falar de outras: o desemprego; a falta de obras a serem exibidas; o número de mortos e infectados pela pandemia; o desmonte do combate à corrupção; e por aí vai.

A 14 meses das eleições do ano que vem o presidente sem partido, que fracassou na tarefa de construir um para chamar de seu, sequestrado pelo Centrão que lhe toma tudo o que tem para abandoná-lo mais tarde, está a caminho da guilhotina e só conta com uma saída para salvar sua cabeça: o apelo às armas.

Nunca na história falou-se tanto em 7 de setembro como agora. Os aliados de Bolsonaro dizem que ele quer dar uma demonstração de força para depois negociar uma trégua com os demais poderes da República. A ideia faria sentido se Bolsonaro fosse um político normal, mas ele não aprendeu nada e não esqueceu nada.

Choro ainda é grátis, Guedes

Para o ministro Paulo Guedes, a conta de luz vai aumentar mais, e não adianta nada ficar sentado chorando. Em tempos de inflação descontrolada, mortes aos borbotões e ataques sistemáticos à democracia e ao bom senso, chorar é uma das poucas coisas de graça à disposição do brasileiro.

O resto todo ofertado pelo governo que Guedes insiste em servir tem cobrado um alto preço moral, mental, político e econômico.

É altamente oneroso ter de aguentar uma frase fora de esquadro do ministro da Economia cada vez que a vida real evidencia o descompasso entre o que foi prometido por ele desde 2018 e o que vemos todos os dias no Brasil.


A crise hídrica de agora, que ameaça descambar para crise grave de fornecimento de energia e, consequentemente, para mais um entrave numa já não cumprida retomada econômica, não é uma inevitabilidade contra a qual não adianta chorar, como quer fazer crer o ministro.

Pode ser que, para alguém como ele, o aumento na conta de luz devido ao reajuste da bandeira tarifária não tenha nada demais. “Qual o problema?”, questiona — e o mais grave é que ele parece de fato não entender qual é!

Assim como não vê a escalada autoritária do presidente a que responde nem admite que está sendo empurrado pelo Centrão para a beirinha do precipício fiscal, o ministro agora chega ao cúmulo de fazer pouco do galope dos preços, administrados ou não, e do impacto que isso tem para levar muitos brasileiros (eleitores, ministros) de fato às lágrimas.

O aumento da conta de luz pode significar a diferença entre a pessoa ter dinheiro para pagar o boleto ou não. Assim como a escalada dos combustíveis está deixando em casa o desempregado que já tinha migrado para os serviços de aplicativo de transporte para ter uma renda. Muitas vezes o que esse “engenheiro, advogado que está dirigindo Uber”, categoria que já mereceu o desprezo de Milton Ribeiro, outro colega de Guedes desconectado da realidade da pasta que dirige, tira com uma corrida não compensa o que despende para encher o tanque. Mas qual o problema, não é mesmo? Vai ficar chorando em casa?

Enquanto Guedes e também Bolsonaro dão de ombros para a economia real — o primeiro porque vem sendo acossado pelo segundo para dar um jeito de parir a fórceps um programa de renda que salve seu couro nas urnas, e o segundo porque está todo dia tramando um golpe contra a democracia — , a crise hídrica galopou sem que houvesse um plano consistente de enfrentamento. O governo deixou de fazer seu trabalho, e o brasileiro que chore. E lute.

Na crise energética de 2001, igualmente um ano pré-eleitoral, Fernando Henrique Cardoso enfrentou um desgaste político enorme com o risco de apagão, mas entregou um racionamento para consumidores privados e públicos, empresariais e domésticos. Quem não economizasse pagava mais.

Foi criado um superministério para comandar o racionamento, comandado por Pedro Parente. O resultado foi que o apagão não veio.

Ganha um voto impresso emoldurado quem se lembrar de uma reunião que o fanfarrão Bolsonaro tenha organizado entre as várias pastas ligadas ao problema para equacionar a crise hídrico-energética e oferecer um plano que evite o colapso. Ele está muito ocupado redigindo pedidos de impeachment de ministros do Supremo em primeira pessoa e conclamando a população para um ato no Sete de Setembro, cujo objetivo sub-reptício é provocar a depredação ou invasão das sedes dos demais Poderes e fornecer uma desculpa esfarrapada para um autogolpe com base na deturpação do artigo 142 da Constituição. Prioridades, pessoal. Qual o problema de a energia ficar um pouco mais cara enquanto quem foi eleito para governar se ocupa com balbúrdia? Chorões, vocês, hein?