Não há como fingir que não foi devastador perder dois, três, talvez quatro anos reiniciando debates sobre temas superados, pacificados, resolvidos, à luz de pactos civilizatórios há muito firmados. O Brasil sob Jair Bolsonaro e seu grupo político implodiu qualquer traço de normalidade democrática. Hoje, gastamos tempo que não temos em discussões que, um par de anos atrás, eram completamente irrelevantes. Quase três décadas e meia depois de promulgada a atual Constituição, somos obrigados a lembrar que democracia é inegociável e tem de haver harmonia e independência entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Como numa classe de alfabetização cidadã, temos de explicar que ofender e ameaçar ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) não é liberdade de expressão, mas ataque às instituições.
Mais de meio milênio depois da chegada dos colonizadores, a Justiça é chamada a decidir se o direito dos povos indígenas sobre terras que ocupavam antes de o Brasil ser Brasil terminou com a entrada em vigor da última Carta Magna. É disso que trata o marco temporal que o STF volta a julgar em 1º de setembro. O mundo todo, boquiaberto, vê a Amazônia ser derrubada e incendiada com a anuência do governo. O debate se apequena quando a ministra da Mulher quer impor a maternidade a uma criança de 11 anos, que engravidou de um estupro; ou determina que meninas vestem rosa, e meninos azul.
Quando a pandemia completou um ano, Ana Paula Lisboa, amiga querida, colunista no Segundo Caderno, expressou num encontro virtual o espanto com a polêmica brasileira sobre uso de máscara como medida não farmacológica para conter a transmissão da Covid-19. Ela vive em Luanda, capital angolana, há quatro anos e contou que lá máscara não é tema de debate: “As pessoas usam”. No Brasil, um quarto da população completamente imunizada, variante Delta do coronavírus em acelerada multiplicação, e o presidente da República cobra do ministro da Saúde o uso facultativo da proteção. Diariamente, repetimos que haver mais de 577 mil pessoas mortas pela pandemia é inaceitável.
Nos dois anos e meio do atual governo, fomos levados a explicar por que brasileiros como Elza Soares, Martinho da Vila, Benedita da Silva, Gilberto Gil, Zezé Motta, Conceição Evaristo são dignos de reconhecimento pela Fundação Cultural Palmares. E a reagir à inclusão do Palácio Gustavo Capanema, joia da arquitetura modernista, numa lista de imóveis da União a ser privatizados. É cansativo lidar com gestores públicos que não sabem a diferença entre bem imobiliário e patrimônio histórico; desprezam a relevância da cultura, das artes, do carnaval.
Cá estamos a produzir estudos e resgatar evidências de que flexibilizar o acesso a armas de fogo não diminuiu a violência, aumentou. Estamos em 2021 fazendo pessoas submetidas à tortura, à brutalidade do regime militar revisitar suas dores, exumar seus mortos para provar que houve ditadura no Brasil de 1964 a 1985. Temos de repetir que o Estado é laico e que Forças Armadas a ele se subordinam.
Somos impelidos a ensinar ao ministro da Economia que pobres não podem se alimentar de sobras; inflação de 7% é jogo perigoso para um país engolfado pelo desemprego, pela informalidade, pela fome; 52% de aumento na bandeira tarifária que onera a conta de luz é uma barbaridade. Precismos ensinar ao titular da Educação que crianças com deficiência têm de ir à escola, educação é direito constitucional de todos os brasileiros, e universidade não é para poucos.
Sairemos exauridos, minúsculos. E com muito trabalho pela frente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário