segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Brasil no púlpito


Bolsonaro aparelha máquina estatal à moda do PT

Sob Jair Bolsonaro, o governo organiza os preenchimentos dos chamados cargos de confiança guiando-se por uma estranha lógica: invoca o aparelhamento promovido pelas administrações do PT para justificar o aparelhamento a ser feito pela nova gestão. Horroriza-se tanto com a ocupação predatória do Estado que deseja alastrá-la. Pratica o que abomina. Considera a ideologização do serviço público tão inaceitável que pretende impor sua própria ideologia.


Não ocorreu ao novo governo a ideia de realizar concursos públicos ou processos seletivos baseados em currículos —algo que permitisse a aferição não da ideologia, mas do mérito intelectual e funcional de cada candidato. Ou seja: diante da possibilidade de produzir algo realmente novo, o governo preferiu repetir velhas práticas. Na última quarta-feira, o ministro Onyx Lorenzoni (Casa Civil) iniciou a “limpeza” de sua pasta, exonerando 320 ocupantes de cargos comissionados.

Onyx chamou a demissão coletiva de “despetização”. Deu de ombros para o fato de que seu antecessor na Casa Civil não foi um petista, mas Eliseu Padilha, do MDB de Michel Temer. Na sexta-feira, em sua primeira reunião ministerial, Bolsonaro referiu-se à canetada de Onyx como um “exemplo” a ser seguido por todos os ministros. “Não há nenhum sentido termos num governo com o perfil do nosso pessoas que defendem outra lógica, outro sistema político”, diz o chefe da Casa Civil.

No Brasil, a alternância de poder virou um outro nome para aquilo que Cazuza chamou de “museu de novidades”. Os devotos de Bolsonaro que aplaudem o reaparelhamento estatal querem apagar a diferença entre o certo e o errado para que tudo se resolva no plano de uma reciprocidade abjeta, num torneio de predadores dividido apenas entre os direitistas que defendem o seu direito de usurpar as repartições públicas e os esquerdistas que querem retomar as trincheira$ perdidas.

Onyx diz não excluir a hipótese de recontratar um ou outro assessor exonerado. O critério da “competência” se dilui em meio a outros requisitos: “Vai ser feita uma análise de quem é que indicou, como é que chegou ao posto.” A despeito da referência petista, Onyx enxerga o Brasil do ciclo pós-redemocratização como um um país rendido a um imaginário regime comunista hipertrofiado.

“A sociedade brasileira decidiu, por maioria, dar um basta nas ideias socialistas e comunistas que, por 30 anos, nos levaram a esse caos que vivemos hoje —de desemprego, de desestruturação do Estado, de insegurança das famílias, de má prestação do serviço de saúde e de escola que, em vez de educar doutrina. A sociedade fez uma escolha muito clara. E nos cabe respeitar.”

Autoconvertido em porta-voz da sociedade, Onyx talvez se surpreendesse se encomendasse uma pesquisa para saber o que pensa o brasileiro cuja opinião ele imagina ecoar. Sem bilheteria, como se sabe, não há circo. E quem está em dia com suas obrigações tributárias não há de conviver bem com a ideia de financiar a remontagem de um velho espetáculo, que reserva à plateia o papel de boba. A usurpação de cargos públicos não tem ideologia.

Josias de Souza

Mentiras salvam!

 Um povo pouco informado acredita no primeiro demagogo que aparece, engole suas mentiras como pílulas salvadoras e, por cegueira ou por carência, segue o caminho de seu próprio infortúnio
Lya Luft

Os novos populistas se aproveitam da necessidade de reconhecimento

Quando no século XIX era construído o nacionalismo alemão, que tanta potência chegaria a adquirir com o tempo, uma boa opção para soldar os laços entre os seguidores da nova causa era conseguir que se inscrevessem numa academia ou num clube de excursionistas. Ali, ao longo dos treinos e entre um passeio e outro, era fácil introduzir algumas atividades rituais para reforçar os vínculos de solidariedade e estabelecer possíveis estratégias de sedução. A camaradagem, o fato de participarem juntos de uma mesma tarefa ou rotina, as canções que celebram os traços próprios, a tarefa envolvente de um esforço físico, a percepção imediata de fazer parte de algo que extrapola o mais imediato: todo esse arsenal de elementos facilitou a construção de um projeto comum sem a necessidade de enfatizar especialmente as ideias. Estas importavam, claro, mas quase sempre eram mais um pano de fundo, como uma cantiga simples que a pessoa nem sequer escuta com atenção, pois a partir de um certo momento sabe que a carrega dentro de si. Era disso que se tratava, de se reconhecerem como iguais e ao mesmo tempo diferentes dos outros —dos que ficaram de fora. A eficácia da estratégia foi indiscutível. É que faz frio sob a intempérie, e dá medo caminhar sozinho pelo mundo. Além disso, não há nada melhor em tempos adversos do que se reconhecer dentro de algo maior, que empurra, que propõe um sentido, que garante ilusões e fortalezas que não encontraríamos em outro lugar.


Aquela época ficou para trás, mas o que permanece imperturbável é o medo. Um medo de baixa intensidade, às vezes indefinível e vago, indecifrável, o medo de ficar de fora. Quando se fala da crise que atinge hoje a democracia, com frequência olhamos para o período entre guerras do século XX, para a ascensão fulgurante de ideologias mobilizadoras e radicais que propunham desferir um golpe no velho mundo podre das elites, permitindo que de suas cinzas brotasse o homem novo. É verdade que aquela época pode dar muitas pistas, salvando todas as distâncias, a propósito das ameaças que presenciamos na atualidade: o despontar de líderes messiânicos, a consolidação de um rebanho fiel que os aplaude e lhes dedica seu voto, a força dessa cola que procede dos nacionalismos e da xenofobia para alimentar as causas imaginárias que os sustentam, as mensagens falsas que oferecem soluções fáceis para problemas complexos.

“Como é possível” —eis a pergunta que se repete— “que possam comprar tantos simplismos numa realidade cada vez mais inabarcável e, com frequência, incompreensível?” É então quando se fala da eficácia das novas tecnologias para colocar a propaganda específica no lugar adequado e manipular e modelar as ideias dos usuários das redes sociais.

A ênfase costuma ser feita nas ideias e nas mensagens. A resposta a essa guinada inquietante, que está destruindo lentamente a democracia por dentro, costuma ser a de combater as mentiras, trazer à tona todas as falsidades, desmontar os enganos. Mas esse caminho nem sempre funciona. Dá a impressão de que se fala num deserto para os que já estão convencidos de que existe um problema, um grave problema: uma parte cada vez maior dos cidadãos sentiu-se seduzida pela melodia entoada pelos atuais flautistas de Hamelin (os Trump, Putin, Xi Jinping, Erdogan, Bolsonaro, Maduro, Orbán, Salvini...) e decidiu segui-los. Um dia chegarão à beira, como no conto, e cairão no abismo.

Por isso, talvez, seja preciso buscar a essência do que ocorre não tanto nas ideias e nas mensagens, nem tampouco na possibilidade de manipular para mobilizar uma longa procissão de cândidos fiéis. A resposta talvez esteja em outra coisa. Quem sabe, na melodia. Ou seja: numa atmosfera, num clima de relações, no sentido sutilmente gerado pela repetição de certas rotinas. É ali onde opera o medo de ficar de fora. E onde surge a necessidade, cada vez mais urgente, de reconhecimento.

Um like nas redes sociais é um aceno a uma reivindicação. E pode ser um primeiro passo para sair da intempérie. Se durante o século XIX foram necessárias as academias e as associações de montanhistas para gerar uma rede de cumplicidades entre as pessoas que buscavam o calor de uma tarefa comum, hoje a web facilita as coisas de maneira extraordinária. Nela você pode encontrar os seus cúmplices. E o que por fim sela as afinidades com eles não são tanto as ideias ou, se preferir, a construção de um discurso mais ou menos articulado, e sim os rituais, a repetição de gestos, de anedotas, de referências. “O único real, essencial, necessário e eterno da religião é o cerimonial e a liturgia”, escreveu Eça de Queiroz no século XIX; “o artificial, complementar, dispensável e transitório é a teologia e a moral”. Se isso é verdade para as religiões, tanto mais será para os oratórios políticos do nosso tempo. Os habitantes do século XXI já não comparecem às paróquias para encontrar o calor de um cerimonial ou uma liturgia. Encontram-nos em seus celulares a cada momento. É ali onde toca a melodia dos novos flautistas de Hamelin. E uma melodia não se combate com argumentos —e esse é certamente o problema mais grave de nossas democracias atuais.

Um medalhão em Saramandia

O escritor carioca Machado de Assis publicou o conto Teoria do Medalhão em 1881, no jornal Gazeta de Notícias . A trama é simples: Janjão está completando 21 anos, a maioridade naquela época. Logo depois do jantar de comemoração do aniversário, o jovem é chamado pelo pai para uma daquelas conversas definitivas sobre o futuro.

Em resumo, o pai aconselha o filho a ser o que ele mesmo não conseguira: um medalhão. O que seria isso? Basicamente, o medalhão é “grande e ilustre, ou pelo menos notável”. Para chegar ao auge entre os 45 e os 50 anos, período em que o medalhão geralmente desabrocha, Janjão deveria se preparar desde cedo, aparelhando o espírito para evitar o perigo das ideias próprias.

Dentre diversas dicas para que o status de medalhão seja alcançado, o pai de Janjão ressalta a importância da linguagem. Cito: “podes empregar umas quantas figuras expressivas, a hidra de Lerna, por exemplo, a cabeça de Medusa, o tonel das Danaides, as asas de Ícaro, e outras, que românticos, clássicos e realistas empregam sem desar, quando precisam delas. Sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocardos jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo para os discursos de sobremesa, de felicitação, ou de agradecimento. Caveant consules é um excelente fecho de artigo político; o mesmo direi do Si vis pacem para bellum ”.

Por fim o pai sugere que o medalhão não chegue a nenhuma conclusão que já não tenha sido chegada por outros, mas faça isso de forma aparentemente original, e evite os riscos da ironia, coisa de “céticos e desabusados”.


Ao escrever o conto Machado satirizava uma turma da sociedade aristocrática e bacharelesca que misturava, nas mesmas proporções, mediocridade e pedantismo. Os medalhões difundiam ideias rasteiras recheadas de citações, tentavam impressionar os populares com demonstrações de conhecimento das coisas do povo e, ao mesmo tempo, comover os eruditos com axiomas clássicos, enfiando três ou quatro máximas em outras línguas para arrematar.

A Teoria do Medalhão me veio à memória quando escutei o discurso de posse do novo chanceler brasileiro, Ernesto Araújo. A linguagem do medalhão estava toda ali: citação em grego de versículo do Evangelho de São João, citação da banda Legião Urbana em música com versos de Camões, citação em latim do brasão da Ordem de Rio Branco, referências a Tarcísio Meira, Raul Seixas e José de Alencar, menção a uma série de ficção científica e, para arrematar, a Ave Maria em Tupi, de acordo com a tradução do padre José de Anchieta. No meio do sarapatel, ataques ao globalismo, exortações ao caráter libertador de Bolsonaro e saudações aos governos conservadores de direita da Europa.

Confesso que, até me recordar da Teoria do Medalhão, comecei a considerar o arrazoado do ministro similar aos discursos que dois personagens de Dias Gomes faziam nas novelas Saramandaia e Roque Santeiro : os professores Aristóbulo Camargo e Astromar Junqueira. Versos, citações em latim, adjetivos em profusão, citações históricas eram comuns aos homens das letras, sempre vestidos de preto, criados por Dias. Registre-se que Aristóbulo e Astromar, nos intervalos entre um discurso e outro, viravam lobisomens.

Outro detalhe chama atenção no discurso do chanceler. Em alguma medida, ele parece ir em direção oposta à comunicação do governo. Enquanto o presidente e outros assessores buscam construir imagens populares de pessoas comuns, com sucesso, o chanceler aparece com fumos de erudição, saca do colete dezenas de autores, arremata tudo isso com sentenças bíblicas em línguas clássicas e, dando uma de Policarpo Quaresma, enfia no meio um tupi-guarani suspeito.

O discurso do chanceler, digno de um medalhão bem sucedido, sugere duas possibilidades: uma delas é a da confirmação da atemporalidade da obra de Machado de Assis. O Bruxo do Cosme Velho, ao diagnosticar a sua época, permanece atual. O que escreveu em 1881 continua irretocável em 2019; coisa que só faz afirmar o preto do Morro do Livramento como um gigante das letras. A outra possibilidade é a de que o chanceler de 2019 seja um exemplo bem acabado de brasileiro de 1881.

A minha impressão é a de que elas não se excluem: o escritor do século XIX continua vivendo no século XXI. O chanceler do século XXI continua vivendo no século XIX.
Luiz Antonio Simas
(Leia aqui o conto Teoria do Medalhão)